terça-feira, 4 de novembro de 2014

Human Universe: Licença poética, até onde é válido?

Apeman

Spaceman



Venho acompanhando os novos e aclamados documentários científicos da rede BBC que, na já antiga levada do Professor David Attenborough, hoje são apresentados pelo professor Brian Cox – Físico britânico e pesquisador da Royal Society University. Ao longo dos anos, Cox vem substituindo este respeitável biólogo de 88 anos com seu carisma e excelente didática.



Nessa nova série chamada Human Universe, Cox apresenta-nos a mais moderna abordagem sobre a evolução a partir do nosso ponto de vista: humanidade. Esperava eu que já tínhamos superado a ideia de evolução como uma narrativa linear, da archaea aos astronautas, como apresentam os clássicos documentários sobre o tema – crítica bem argumentada pelo editor Senior da Nature Henry Gee em seu artigo no The Guardian. De qualquer forma, todo investimento em divulgação científica é bem-vindo.




Licença poética a parte, em determinada cena, Cox alinha vários crânios de tamanhos diferentes, datados de épocas distintas, como se houvesse um progresso para o aumento do cérebro, associando paralelamente a mudança climática constatada. Ele não chega a explicitar, contudo, deixa aberto para interpretações errôneas. Beirando perigosamente a uma evolução guiada. Porque não, oras, explicitar, da mesma forma, que poderia ter ocorrido com qualquer outro órgão, ou ainda a extinção da espécie.
Mas isso é apenas um jogo de palavras, um detalhe sobre o que é um problema maior. Cox fala, soando ardidamente como Jacob Bronowski, da nossa singularidade como espécie; tão incríveis, única espécie capaz de fazer as coisas que fazemos, em virtude de atributos como a linguagem e a escrita. Cox vira seu olhar desfocado, quase como um garoto curioso, para admiração dos céus, para as profundezas da antiguidade, o crescimento das sociedades e tudo mais. Não me entendam mal, Carl Sagan o fazia com a mais bela poesia – hoje revisitada pelo também carismático Neil DeGrasse Tyson, mas Cosmos merece um post completo.

É tão óbvio que chega a ser arrogante; a afirmação de que a singularidade que nos torna espécie. Girafas são únicas em fazer o que elas fazem. Não temos a visão do Squilla mantis (um camarão capaz de enxergar uma gama inimaginável de cores), ou a percepção térmica de cobras, eletromagnética de tubarões, etc. Cada espécie é única em virtude de seus próprios atributos – que é melhor, a ponto de ser, bom… uma espécie! Os seres humanos são apenas uma espécie entre muitas, porém com a felicidade de ter o órgão crucial para um entendimento de suas próprias origens. Para postular os seres humanos como algo especial de alguma forma qualitativa é chamado excepcionalismo humano, e isso é invariavelmente colorido pela subjetividade. É claro que pensamos que somos especiais, porque nós que estamos entregando o prêmio.


Mas por que você nunca deve alinhar uma série de crânios (os quais são possivelmente primos) e dizer que um era o antepassado do outro? Considerando que poderia ser assim, é impossível testar ou falsificar esta afirmação. Os seres humanos representam um galho em um arbusto repleto destes, cada um representando uma espécie, viva ou extinta. A partir disso, fica claro que os seres humanos não estão no topo de uma escada de criação, acima dos macacos e abaixo dos anjos, naturalmente superior a todas as outras espécies.

Todos nós reconhecemos que os cães domésticos são muito inteligentes, criaturas sociais. No entanto, nós não os consideramos criaturas dotadas do tal autorreconhecimento, da mesma forma que (achamos que) somos, porque eles não podem reconhecer o seu reflexo em um espelho. Antropocentrismo tolo. Este teste – o chamado teste de autorreconhecimento no espelho – está direcionado para criaturas com a visão como senso primário. Cães geralmente têm uma visão muito ruim, mas isso é mais do que compensado pelo seu olfato, que ultrapassa a nossa sensibilidade em pelo menos cem vezes. Isto significa que os cães podem identificar aromas muito mais fracos do que podemos detectar, e também distinguir entre aromas. Então, por que não submetê-los, e a nós também, ao teste do autorreconhecimento de cheiro? Experimente cheirar um poste de luz e argumentar que sua atualização no Facebook é mais complexa.

Brian Cox termina o episódio com uma cena brilhante; ele e sua equipe viajam até o Cazaquistão para filmar a reentrada da sonda russa que prestava suport a estação espacial. Cox trazia consigo uma ponta de lança de obsidiana, confeccionada por ele mesmo, e a coloca diante da sonda – Apeman to Spaceman. Entendo a importância da licença poética necessária para atrair publico; contudo, conceitos primordiais, axiomas para as teorias vigentes devem ser apresentados a fim de construir uma sequencia coerente.

Referências:

http://www.bbc.co.uk/programmes/p0276pc3


http://www.theguardian.com/science/blog/2014/oct/14/brian-coxs-human-universe-presents-a-fatally-flawed-view-of-evolution?CMP=fb_gu

5 comentários:

  1. Encantamento é importante pra popularização da ciência, mas não pode vir antes da compreensão. Claro que pra quem tem um conhecimento além do elementar de evolução, documentários com esse tom são ok. Mas quando se trata de população leiga, o risco de mal entendimento (progresso e direcionalidade na evolução, além da falácia da "espécie superior") é uma realidade preocupante.

    P.S.: Excelente a parte do cachorro/visão/consciência! Nunca tinha pensado dessa forma nesse tema.

    Baita texto!

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    1. Obrigado André. Concordo contigo, tenho a impressão de que nos documentários mais modernos a preocupação com a fotografia, belas imagens e efeitos visuais estão na frente do conteúdo em si. Novamente colocando a pergunta, a atratividade deve vir a frente da compreensão? É preferível ter um número maior de pessoas buscando ciência ou um número menor mas com um entendimento pleno? É discutível.

      Abraços.

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  2. Wow! Fantástica análise. Eu particularmente gosto muito da didática do Cox, acho que ele consegue cativar muito o publico. Não por nada ele é a nova aposta da BBC. Acho que esse 'risco' que o André comentou até faz parte. Na minha opinião, melhor um pequeno jogo de palavras e analogias, mesmo com um pequeno equivoco, que sirva a atrai mais ainda a curiosidade para o entendimento do que carregar um tema com uma precisão científica restrita a especialistas. :)
    Abraços

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    1. Obrigado Josmael. Acabei repetindo tua idéia na resposta pro André hahah. Mas é isso aí, não chutando o balde pra documentários anti-científicos, quanto mais pessoas se interessarem pelo assunto, melhor. Se de alguma forma divulgação assim instigar a curiosidade do público para buscar mais informações sobre o assunto, entendo como missão cumprida.

      Abraços.

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  3. É, essa visão "progressista" com o homem como ápice da evolução já foi comum até mesmo entre os grandalhões como Simpson e outros. Também é a ressalva que os religiosos fazem à teoria da evolução: aqueles que aceitam, tendem a aceitá-la com a condição de que o homem continue tendo um lugar especial e que o processo evolutivo tenha sido, de certa forma, guiado inteligentemente até o surgimento da humanidade.

    Muito interessante essa observação sobre o antropocentrismo nos testes de autorreconhecimento... faço coro com o André ao dizer que nunca tinha pensado nisso dessa maneira. Dando uma olhada ligeira e wikipédica encontrei gente que já tentou realizar testes de autorreconhecimento usando outros canais. Deixo aqui a história de um cara que tentou testar autorreconhecimento no seu próprio cachorro através do cheiro da urina. Leitura bem interessante e descontraída: http://www.psychologytoday.com/blog/canine-corner/201107/does-my-dog-recognize-himself-in-mirror

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