sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Sobre nozes e aspiradores de pó: Colin McGinn e o progresso filosófico


Temos considerável crença no fato de que a ciência progride. Sabemos hoje mais sobre a natureza do que sabíamos ontem. A arqueologia, a neurociência, a biologia molecular, a física de altas energias e tantas outras áreas de pesquisa são capazes de pôr na mesa seus resultados e convencer qualquer um de que estão resolvendo problemas reais. Contudo, para o filósofo britânico Colin McGinn, a filosofia não pode fazer o mesmo e as causas que ele sugere para isso são ligeiramente desmotivantes...




Colin McGinn é formado em psicologia pela Oxford University e seguiu carreira acadêmica em filosofia, chegando a ocupar um cargo importante na docência (Wilde Reader) da mesma instituição. Após alguns conflitos com colegas, terminou como docente na Rutgers University, nos Estados Unidos, onde acredita estar em um ambiente acadêmico menos contaminado e de ego menos transbordante. A área de interesse de Colin é a filosofia analítica e a teoria da mente, mas também escreveu livros importantes em outras áreas, além de obras de ficção e divulgação. Sua autobiografia é a obra A Construção do Filósofo, publicada no Brasil pela editora Record. Apesar de ser uma obra autobiográfica, trata-se de um livro de divulgação de filosofia, principalmente filosofia analítica. O autor aborda com bom humor alguns temas densos dessa área, com discussões sobre Witgenstein e alguns autores recentes, além de relatar a dificuldade de relação com alguns de seus colegas em Oxford. Entre uma explosão de deduções e outra, Colin descontrai e discute seu passageiro (mas intenso) vício por videogames, sua semelhança física com Anthony Hopkins (com quem teve a oportunidade de discutir exatamente isso!), além de uma conversa frustrantemente improdutiva sobre filosofia com Jeniffer Aniston e outras contingências da vida de filósofo.

Um dos assuntos que interessa Colin é a metafilosofia, uma espécie de filosofia da filosofia. Uma das questões trabalhadas pela metafilosofia é o avanço do conhecimento filosófico. O autor justapõe o avanço das ciências ao da filosofia e repara que, enquanto as ciências gozam de um evidente progresso, a filosofia não tem resposta satisfatória para suas questões primordiais, algumas levantadas há mais de dois mil anos. Nas palavras do autor:

“Na filosofia, parece que cada geração repudia os supostos insights da geração anterior, de modo que não existe um corpo cumulativo de conhecimento filosófico com o qual todos possam concordar.; os filósofos parecem estar sempre batendo boca, grosseiramente falando.”

Vejamos algumas ideias anteriores em metafilosofia para chegar à ideia de Colin.

Platão via a filosofia como a disciplina que trata das questões num plano etéreo e remoto da realidade – o mundo das Formas abstratas ou Universais. As questões da filosofia, no pensamento platônico, são mais profundas do que as questões da ciência, que investiga somente o mundo empírico das investigações sensoriais. Dessa forma, faz pouco sentido buscar uma comparação entre os avanços de diferentes disciplinas, uma vez que as questões da filosofia são dificilmente tangíveis, pois fazem morada num mundo ideal.

Outra visão, difundida principalmente na primeira metade do século XX, é de que a filosofia trata de um punhado de questões sem sentido algum. Como diz Colin, para alguns autores alinhados com o positivismo lógico, as questões filosóficas são equivalentes a questões de “por que as ideias verdes incolores adormecem violentamente”, ou “qual seria a altura de ninguém”, ou ainda “o que aconteceria com um número se você o imergisse na água fria”. São questões mal formuladas e carentes de qualquer coerência interna. Os defensores dessa ideia costumavam classificar as sentenças em dois tipos: as que podem ser verificadas pela experiência (e.g O rei da França é careca; A massa do elétron é menor que a massa do próton) e as que são verdadeiras por definição (e.g O rei da França é homem; As crianças não são adultos). As questões da filosofia, para os positivistas lógicos, não pertencem a um tipo nem outro - estão num universo que deveria ser abandonado pela atividade intelectual. Seria algo como dizer que a filosofia tradicional é uma grande perda de tempo.
Wittgenstein e outros filósofos da linguagem comum seguem uma versão branda dessa visão, afirmando que os problemas filosóficos surgem da incompreensão e uso equivocado da linguagem. Questões como “temos livre arbítrio?” ou “qual a conexão entre mente e corpo?” seriam, portanto, aberrações de linguagem e não possuem lastro em realidade alguma.

Uma terceira maneira de ver isso tudo é colocando a filosofia como uma versão “imatura” de ciência. De acordo com esse pensamento, a ciência absorveu os problemas que antes eram assunto da investigação filosófica e os filósofos atuais preocupam-se somente com as migalhas do que foi devorado pelo monstro investigador científico. O progresso filosófico, então, é justamente essa transformação da filosofia em ciência. Algo nesse sentido foi defendido por alguns cientistas influentes da atualidade, como Neil DeGrasse Tyson e Lawrence Krauss.

Colin McGinn representa muito bem o problema que quer tratar ao dizer que não concorda com nenhuma dessas explicações. Para ele, “[...] os problemas filosóficos clássicos são perfeitamente significativos, não são ciência incipiente, e também não estão relacionados com alguma região remota e sutil da realidade.” Colin concorda que a filosofia está repleta de questões antediluvianas ainda não resolvidas, mas sugere uma explicação distinta para nossa dificuldade em tratá-las: nosso aparato mental não é adequado para isso. Somos, de um ponto de vista, incapazes de pensar corretamente sobre esses assuntos. Nas palavras de Colin “É como tentar quebrar nozes com um aspirador de pó.”.

O funcionamento da capacidade humana de compreender é um assunto caro a Colin e seus estudos sofreram influência direta e indireta de Noam Chomsky, que já discutia os limites da cognição.

Colin sugere que nosso modo de compreender um sistema envolve identificar quais partes o compõem, como interagem entre si e como o todo se modifica ao longo de algum processo, algo que ele chama de estrutura CALM (Combinatorial Atomism with Lawlike Mappings). Esse modo de pensar permite a compreensão de sistemas que possuem partes básicas que compõem partes mais complexas, em um nível de organização imediatamente superior. Os sistemas estudados pela ciência (astronômicos, biológicos e até mesmo referentes à linguagem) possuem esse tipo de organização “hierárquica”. É só pensar na física e na biologia e logo vários exemplos nos inundam a mente. Podemos estudar células do fígado e aprender muito sobre o funcionamento do órgão, assim como podemos estudar a estrutura dos átomos individuais e aprender sobre a natureza de certos compostos químicos. Até mesmo na linguagem essa arquitetura está presente: sentenças são formadas por palavras que se conectam por regras gramaticais e sintáticas.

As questões filósoficas tradicionais, por outro lado, não se referem a um mundo organizado dessa maneira; não possuem essa fluidez de um nível de comprensão para outro. Colin exemplifica com a questão mente-corpo:

“Considere o modo como a mente depende do cérebro. O cérebro em si é um objeto espacial complexo, formado de minúsculas células chamadas neurônios, conectadas por meio de fibras chamadas dendritos e axônios. A consciência evidentemente depende da atividade dessas células interagentes: um grupo particular de células é estimulado e você experimenta, digamos, uma tonalidade específica de vermelho. De alguma forma a sua experiência derivou dessas atividades neurais, que são eletroquímicas por natureza. Mas o modo de derivação envolvido não se encaixa na estrutura CALM.”

E segue:

“ O problema em si é que a mente consciente não é algo que emerge do cérebro, assim como um todo emerge de suas partes. A consciência não é, aparentemente, uma massa de tecido cerebral com partes fenomenológicas correspondendo às partes da massa. De algum modo o cérebro gera a mente, mas não o faz por meio de simples agregação espacial”

Os problemas caros à filosofia, então, são aqueles que apresentam esses “saltos inexplicáveis”, que não seguem a estrutura com a qual estamos acostumados a lidar. Como o cérebro gera a mente? Como tomamos nossas decisões? O comum a todos esses problemas filosóficos é a presença de uma lacuna que não podemos preencher, um salto que não somos capacitados a realizar.

Se for assim, o quê fazer em filosofia? Bom, essa parte eu deixo para quem quiser ler no livro original e para os comentários aqui do blogue. Encerro com um parágrafo de Colin acalmando os ânimos dos mais frustrados:

“[...] já não sabíamos que as faculdades humanas têm suas limitações? Afinal não sabemos como é ser um morcego, e seria absurdo uma disciplina que pretendesse passar esse conhecimento para estudantes universitários (Experiência de Morcego I), assim como seria um absurdo um curso que ensinasse aos cegos como é (do interior) enxergar cores. […] A realidade pode sobrepujar nossa capacidade de conhecê-la de todas as maneiras possíveis. Seria realmente tão surpreendente assim que a área mais frustrante do empreendimento intelectual humano – o objeto que chamamos “filosofia” - também contenha questões que a princípio não podemos responder? Considerando tudo isso, a existência dessas questões humanamente irrespondíveis não é totalmente previsível? Não somos deuses, afinal de contas; somos organismos que evoluíram recentemente, feitos de materiais de baixíssima tecnologia.”

Comentem!

5 comentários:

  1. Ótimo texto, Paulo! Muito bom!
    Já faz um tempo que eu tava querendo ler algo sobre esse livro do Colin McGinn, desde que eu dei uma folhada nele lá na tua estante...
    De certa forma, concordo com o autor no sentido de que parece frustrante pensar que não temos capacidade cerebral pra lidar com muitas questões profundas da filosofia (e isso chega a causar um mal-estar do tipo "não posso aceitar isso") enquanto, ao mesmo tempo, isso não deixa de ter um fundo realista se pensarmos na evolução de nossa espécie. De fato, "não somos deuses, afinal de contas; somos organismos que evoluíram recentemente, feitos de materiais de baixíssima tecnologia." e é natural que certas respostas estejam além do alcance da inteligência humana.

    Achei interessante as quatro visões que tu colocaste a respeito da metafilosofia: a platônica, a do positivismo lógico e do Wittgenstein, a cientificista e a do McGinn de limitação humana. Fiquei pensando se essa seria a melhor classificação a se fazer, e se teriam outras visões importantes e distintas que poderíamos incluir. Não sei a resposta, fica pra pensarmos...

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    1. Essas visões que citei são citadas pelo próprio McGinn no livro e creio que ele as mencionou com a intenção de fornecer somente o necessário de informação para contextualizar a sua hipótese. Desconheço outras visões, mas me parece quase certo que existem.

      Esse exercício "metafilosófico" aparece em áreas mais específicas da filosofia, como é o caso da ética. A metaética é justamente o exercício filosófico com foco na natureza da ética.. só para dar um exemplo (que muito me agrada): existe a visão emotivista, que diz que os valores éticos são produto de uma reação emocional do tipo "ughh" ou "iê". Quando nos deparamos com situações que não nos agradam, emitimos um juízo de valor com um peso negativo, algo semelhante a quando falamos "ughh" quando experenciamos algo ruim. Já quando nos deparamos com uma situação com a qual concordamos eticamente, emitimos um juízo positivo, algo semelhante a um "iêê". Essa visão ficou conhecida como visão "hurrah/boo" (versão em inglês das interjeições) e acho interessante como ela, apesar de que talvez não seja uma teoria geral da ética, abre espaço para um componente biológico da moralidade, que muito tem a ver com a evolução da socialidade por exemplo. Seria esse um exemplo da filosofia "cedendo" espaço à ciência?

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  2. Há pouco tive acesso a um livro do filósofo argentino Mario Bunge publicado em 2012 pela Springer sob o título "Evaluating Philosophies". Tenho o livro em pdf. Posso passar pra quem quiser. Pensei que fosse interessante copiar a Introdução do livro aqui no comentário mesmo, já que tem a ver com o assunto. Já vou pedindo desculpas por não ter traduzido (está em inglês). Penso bastante sobre o que faz escolhermos determinada filosofia e como poderíamos avaliar as distintas filosofias sem sermos injustos.

    Segue abaixo a Introdução do livro Evaluating Philosophies (Bunge, 2012).

    How are philosophies evaluated? This question does not seem to have been investigated in any detail or depth. In any event, there do not seem to be any objective and generally accepted criteria for assessing the merits and flaw of philosophical doctrines. Usually, the adoption of a philosophy does not result from a long and anguished deliberation but, rather, from a combination of predisposition with necessity and opportunity – just as in the case of petty theft.

    By contrast, to evaluate a science or a scientific theory scientists use a battery of objective criteria accepted by almost all investigators: clarity, internal consistency, fitness to the relevant empirical data, coherence with the bulk of antecedent knowledge, size of the problems it tackles, ability to answer extant questions, and potential to guide future research. Scientists and philosophers use these criteria and a few others every time the credentials of a new discipline or a theory are questioned. Suffice it to recall the scientific-philosophical controversies ignited by all the scientific breakthroughs during the past five centuries.

    Nothing like that happens in philosophy: usually philosophical doctrines are accepted or rejected, fully or in part, without resorting to any clear and objective criteria. The evaluation of philosophical doctrines tends to be intuitive, utilitarian, or even emotive. For example, idealism was the philosophy of the Western establishment during the nineteenth century because it was part of the Counter-Enlightenment. Marx and his followers admired Hegel’s dialectics, despite being hermetic and lacking in empirical support, just because they believed that, as Lenin claimed, it was “the algebra of revolution.” The builders of modern Brazil adopted Comte’s slogan, Order and progress, for it encapsulated the ideal of the enlightened planters.

    Neo-Thomism was an attempt to rejuvenate the erstwhile official philosophy of the Catholic Church. In mid-twentieth century, the church considered replacing Thomism with phenomenology, but backtracked because Husserl’s egology replaces God with the self. Mussolini embraced pragmatism because he regarded success as the supreme value; but he did not make it the official philosophy because, under a dictatorship, success is the preserve of the few. Heidegger served Nazism but his Party did no return the favor because existentialism was far too whining and hermetic. Linguistic philosophy attracts people who like clarity but avoid trouble and commitment. And at all times pseudoprofound aphorisms have been more popular than rigorous arguments.

    In sum, philosophies, whether genuine or spurious, are not usually adopted because of their conceptual, empirical, or moral merits, but because of tradition, political interests, or even temperament – none of which is a good reason. The present book argues for a precise criterion: A philosophy is worth what it helps learn, act, conserve our common heritage, and get along with fellow humans.

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  3. Belo tópico, Paulo!
    Quando comecei a ler o texto me perguntei se a importância principal da filosofia não seria mais o exercício dela em si, pra botar algum tipo de ordem nas ideias, do que quaisquer conclusões cumulativas, como é o caso da ciência. Depois vi que este raciocínio não responde a outras questões levantadas ao longo do texto.

    Me fez lembrar muito o "Como a mente funciona", do Pinker, principalmente porque foi o que li quando comecei a me perguntar como o cérebro gera a mente e por ele também enfatizar a ideia de que nosso cérebro não é um instrumento feito para alcançar todas as respostas, e sim apenas um órgão que auxilia a sobrevivência.

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    1. Sim, concordo contigo. Mesmo que as questões primordiais não tenham sido respondidas satisfatoriamente, há todo um "efeito colateral" da filosofia sobre nossa maneira de pensar, e esse efeito carrega um mérito imenso. Uma coisa que eu destacaria como um grande mérito da filosofia é a busca pelas perguntas certas, mesmo que as respostas possam nos decepcionar. Mesmo que não possamos mergulhar no cerne de uma questão, cortar um pedaço de realidade crua e degustar, aprendemos a explorar as questões de diferentes maneiras...

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