Temos considerável crença no fato de
que a ciência progride. Sabemos hoje mais sobre a natureza do que
sabíamos ontem. A arqueologia, a neurociência, a biologia
molecular, a física de altas energias e tantas outras áreas de
pesquisa são capazes de pôr na mesa seus resultados e convencer
qualquer um de que estão resolvendo problemas reais. Contudo, para o
filósofo britânico Colin McGinn, a filosofia não pode fazer o
mesmo e as causas que ele sugere para isso são ligeiramente
desmotivantes...
Colin McGinn é formado em psicologia
pela Oxford University e seguiu carreira acadêmica em filosofia,
chegando a ocupar um cargo importante na docência (Wilde Reader) da
mesma instituição. Após alguns conflitos com colegas, terminou
como docente na Rutgers University, nos Estados Unidos, onde acredita
estar em um ambiente acadêmico menos contaminado e de ego menos
transbordante. A área de interesse de Colin é a filosofia analítica
e a teoria da mente, mas também escreveu livros importantes em
outras áreas, além de obras de ficção e divulgação. Sua
autobiografia é a obra A Construção do Filósofo, publicada
no Brasil pela editora Record. Apesar de ser uma obra autobiográfica,
trata-se de um livro de divulgação de filosofia, principalmente
filosofia analítica. O autor aborda com bom humor alguns temas
densos dessa área, com discussões sobre Witgenstein e alguns
autores recentes, além de relatar a dificuldade de relação com
alguns de seus colegas em Oxford. Entre uma explosão de deduções e
outra, Colin descontrai e discute seu passageiro (mas intenso) vício
por videogames, sua semelhança física com Anthony Hopkins (com quem
teve a oportunidade de discutir exatamente isso!), além de uma
conversa frustrantemente improdutiva sobre filosofia com Jeniffer
Aniston e outras contingências da vida de filósofo.
Um dos assuntos que interessa Colin é
a metafilosofia, uma espécie de filosofia da filosofia. Uma das
questões trabalhadas pela metafilosofia é o avanço do conhecimento
filosófico. O autor justapõe o avanço das ciências ao da
filosofia e repara que, enquanto as ciências gozam de um evidente
progresso, a filosofia não tem resposta satisfatória para suas
questões primordiais, algumas levantadas há mais de dois mil anos.
Nas palavras do autor:
“Na filosofia, parece que cada
geração repudia os supostos insights da geração anterior, de
modo que não existe um corpo cumulativo de conhecimento filosófico
com o qual todos possam concordar.; os filósofos parecem estar
sempre batendo boca, grosseiramente falando.”
Vejamos algumas
ideias anteriores em metafilosofia para chegar à ideia de Colin.
Platão via a filosofia como a
disciplina que trata das questões num plano etéreo e remoto da
realidade – o mundo das Formas abstratas ou Universais. As questões
da filosofia, no pensamento platônico, são mais profundas do que as
questões da ciência, que investiga somente o mundo empírico das
investigações sensoriais. Dessa forma, faz pouco sentido buscar uma
comparação entre os avanços de diferentes disciplinas, uma vez que
as questões da filosofia são dificilmente tangíveis, pois fazem
morada num mundo ideal.
Outra visão, difundida principalmente
na primeira metade do século XX, é de que a filosofia trata de um
punhado de questões sem sentido algum. Como diz Colin, para alguns
autores alinhados com o positivismo lógico, as questões filosóficas
são equivalentes a questões de “por que as ideias verdes
incolores adormecem violentamente”, ou “qual seria a
altura de ninguém”, ou ainda “o que aconteceria com um
número se você o imergisse na água fria”. São questões mal
formuladas e carentes de qualquer coerência interna. Os defensores
dessa ideia costumavam classificar as sentenças em dois tipos: as
que podem ser verificadas pela experiência (e.g O rei da França
é careca; A massa do elétron é menor que a massa do próton)
e as que são verdadeiras por definição (e.g O rei da França é
homem; As crianças não são adultos).
As questões da filosofia, para os
positivistas lógicos, não pertencem a um tipo nem outro - estão
num universo que deveria ser abandonado pela atividade intelectual.
Seria algo como dizer que a filosofia tradicional é uma grande perda
de tempo.
Wittgenstein
e outros filósofos da linguagem comum seguem uma versão branda
dessa visão, afirmando que os problemas filosóficos surgem da
incompreensão e uso equivocado da linguagem. Questões como “temos
livre arbítrio?” ou “qual a conexão entre mente e corpo?”
seriam, portanto, aberrações de linguagem e não possuem lastro em
realidade alguma.
Uma
terceira maneira de ver isso
tudo é colocando a filosofia como uma versão “imatura” de
ciência. De acordo com esse
pensamento, a ciência
absorveu os problemas que antes eram assunto da investigação
filosófica e os filósofos
atuais preocupam-se somente
com as migalhas do
que foi devorado
pelo monstro investigador científico.
O progresso filosófico, então,
é justamente essa
transformação da filosofia em ciência. Algo nesse sentido foi
defendido por alguns cientistas influentes da
atualidade, como
Neil DeGrasse Tyson e
Lawrence Krauss.
Colin
McGinn representa muito bem o problema que quer tratar ao dizer que
não concorda com nenhuma dessas explicações. Para ele, “[...] os
problemas filosóficos clássicos são perfeitamente significativos,
não são ciência incipiente, e também não estão relacionados com
alguma região remota e sutil da realidade.”
Colin concorda que a filosofia está repleta de questões
antediluvianas ainda não resolvidas, mas sugere uma explicação
distinta para nossa dificuldade em tratá-las: nosso aparato mental
não é adequado para isso. Somos, de um ponto de vista, incapazes de
pensar corretamente sobre esses assuntos. Nas palavras de Colin “É
como tentar quebrar nozes com um aspirador de pó.”.
O
funcionamento da capacidade humana de compreender é um
assunto caro a Colin e seus estudos sofreram influência direta e
indireta de Noam Chomsky, que
já discutia os limites da cognição.
Colin
sugere que nosso modo de
compreender um sistema envolve identificar quais partes o compõem,
como interagem entre si e como o todo se modifica ao longo de algum
processo, algo que ele chama
de estrutura CALM (Combinatorial Atomism with Lawlike
Mappings).
Esse modo de pensar permite
a compreensão de sistemas que possuem partes básicas que compõem
partes mais complexas, em um nível de organização imediatamente
superior. Os sistemas
estudados pela ciência (astronômicos, biológicos e até mesmo
referentes à linguagem) possuem esse tipo de organização
“hierárquica”. É só pensar na física e na biologia e logo
vários exemplos nos inundam
a mente. Podemos
estudar células do fígado e aprender muito sobre o funcionamento do
órgão, assim como podemos estudar a estrutura dos átomos
individuais e
aprender sobre a natureza de certos compostos químicos. Até mesmo
na linguagem essa arquitetura está presente: sentenças são
formadas por palavras que se conectam por regras gramaticais e
sintáticas.
As
questões filósoficas
tradicionais, por outro lado, não se referem a um mundo organizado
dessa maneira; não possuem
essa fluidez de um nível de comprensão para outro. Colin
exemplifica com a questão mente-corpo:
“Considere o modo como a mente
depende do cérebro. O cérebro em si é um objeto espacial complexo,
formado de minúsculas células chamadas neurônios, conectadas por
meio de fibras chamadas dendritos e axônios. A consciência
evidentemente depende da atividade dessas células interagentes: um
grupo particular de células é estimulado e você experimenta,
digamos, uma tonalidade específica de vermelho. De alguma forma a
sua experiência derivou dessas atividades neurais, que são
eletroquímicas por natureza. Mas o modo de derivação envolvido não
se encaixa na estrutura CALM.”
E segue:
“ O problema em si é que a mente consciente não é algo que emerge do cérebro, assim como um todo emerge de suas partes. A consciência não é, aparentemente, uma massa de tecido cerebral com partes fenomenológicas correspondendo às partes da massa. De algum modo o cérebro gera a mente, mas não o faz por meio de simples agregação espacial”
E segue:
“ O problema em si é que a mente consciente não é algo que emerge do cérebro, assim como um todo emerge de suas partes. A consciência não é, aparentemente, uma massa de tecido cerebral com partes fenomenológicas correspondendo às partes da massa. De algum modo o cérebro gera a mente, mas não o faz por meio de simples agregação espacial”
Os
problemas caros à filosofia, então, são aqueles que apresentam
esses “saltos inexplicáveis”, que não seguem a estrutura com
a qual estamos acostumados a
lidar. Como o cérebro gera a mente? Como tomamos nossas decisões?
O comum a todos esses
problemas filosóficos é a presença de uma lacuna que não podemos
preencher, um salto que não somos capacitados a realizar.
Se
for assim, o quê fazer em filosofia? Bom, essa parte eu deixo
para quem quiser ler no livro original e
para os comentários aqui do blogue.
Encerro com um parágrafo de Colin acalmando os ânimos dos mais
frustrados:
“[...] já não sabíamos que as faculdades humanas têm suas limitações? Afinal não sabemos como é ser um morcego, e seria absurdo uma disciplina que pretendesse passar esse conhecimento para estudantes universitários (Experiência de Morcego I), assim como seria um absurdo um curso que ensinasse aos cegos como é (do interior) enxergar cores. […] A realidade pode sobrepujar nossa capacidade de conhecê-la de todas as maneiras possíveis. Seria realmente tão surpreendente assim que a área mais frustrante do empreendimento intelectual humano – o objeto que chamamos “filosofia” - também contenha questões que a princípio não podemos responder? Considerando tudo isso, a existência dessas questões humanamente irrespondíveis não é totalmente previsível? Não somos deuses, afinal de contas; somos organismos que evoluíram recentemente, feitos de materiais de baixíssima tecnologia.”
“[...] já não sabíamos que as faculdades humanas têm suas limitações? Afinal não sabemos como é ser um morcego, e seria absurdo uma disciplina que pretendesse passar esse conhecimento para estudantes universitários (Experiência de Morcego I), assim como seria um absurdo um curso que ensinasse aos cegos como é (do interior) enxergar cores. […] A realidade pode sobrepujar nossa capacidade de conhecê-la de todas as maneiras possíveis. Seria realmente tão surpreendente assim que a área mais frustrante do empreendimento intelectual humano – o objeto que chamamos “filosofia” - também contenha questões que a princípio não podemos responder? Considerando tudo isso, a existência dessas questões humanamente irrespondíveis não é totalmente previsível? Não somos deuses, afinal de contas; somos organismos que evoluíram recentemente, feitos de materiais de baixíssima tecnologia.”
Comentem!
Ótimo texto, Paulo! Muito bom!
ResponderExcluirJá faz um tempo que eu tava querendo ler algo sobre esse livro do Colin McGinn, desde que eu dei uma folhada nele lá na tua estante...
De certa forma, concordo com o autor no sentido de que parece frustrante pensar que não temos capacidade cerebral pra lidar com muitas questões profundas da filosofia (e isso chega a causar um mal-estar do tipo "não posso aceitar isso") enquanto, ao mesmo tempo, isso não deixa de ter um fundo realista se pensarmos na evolução de nossa espécie. De fato, "não somos deuses, afinal de contas; somos organismos que evoluíram recentemente, feitos de materiais de baixíssima tecnologia." e é natural que certas respostas estejam além do alcance da inteligência humana.
Achei interessante as quatro visões que tu colocaste a respeito da metafilosofia: a platônica, a do positivismo lógico e do Wittgenstein, a cientificista e a do McGinn de limitação humana. Fiquei pensando se essa seria a melhor classificação a se fazer, e se teriam outras visões importantes e distintas que poderíamos incluir. Não sei a resposta, fica pra pensarmos...
Essas visões que citei são citadas pelo próprio McGinn no livro e creio que ele as mencionou com a intenção de fornecer somente o necessário de informação para contextualizar a sua hipótese. Desconheço outras visões, mas me parece quase certo que existem.
ExcluirEsse exercício "metafilosófico" aparece em áreas mais específicas da filosofia, como é o caso da ética. A metaética é justamente o exercício filosófico com foco na natureza da ética.. só para dar um exemplo (que muito me agrada): existe a visão emotivista, que diz que os valores éticos são produto de uma reação emocional do tipo "ughh" ou "iê". Quando nos deparamos com situações que não nos agradam, emitimos um juízo de valor com um peso negativo, algo semelhante a quando falamos "ughh" quando experenciamos algo ruim. Já quando nos deparamos com uma situação com a qual concordamos eticamente, emitimos um juízo positivo, algo semelhante a um "iêê". Essa visão ficou conhecida como visão "hurrah/boo" (versão em inglês das interjeições) e acho interessante como ela, apesar de que talvez não seja uma teoria geral da ética, abre espaço para um componente biológico da moralidade, que muito tem a ver com a evolução da socialidade por exemplo. Seria esse um exemplo da filosofia "cedendo" espaço à ciência?
Há pouco tive acesso a um livro do filósofo argentino Mario Bunge publicado em 2012 pela Springer sob o título "Evaluating Philosophies". Tenho o livro em pdf. Posso passar pra quem quiser. Pensei que fosse interessante copiar a Introdução do livro aqui no comentário mesmo, já que tem a ver com o assunto. Já vou pedindo desculpas por não ter traduzido (está em inglês). Penso bastante sobre o que faz escolhermos determinada filosofia e como poderíamos avaliar as distintas filosofias sem sermos injustos.
ResponderExcluirSegue abaixo a Introdução do livro Evaluating Philosophies (Bunge, 2012).
How are philosophies evaluated? This question does not seem to have been investigated in any detail or depth. In any event, there do not seem to be any objective and generally accepted criteria for assessing the merits and flaw of philosophical doctrines. Usually, the adoption of a philosophy does not result from a long and anguished deliberation but, rather, from a combination of predisposition with necessity and opportunity – just as in the case of petty theft.
By contrast, to evaluate a science or a scientific theory scientists use a battery of objective criteria accepted by almost all investigators: clarity, internal consistency, fitness to the relevant empirical data, coherence with the bulk of antecedent knowledge, size of the problems it tackles, ability to answer extant questions, and potential to guide future research. Scientists and philosophers use these criteria and a few others every time the credentials of a new discipline or a theory are questioned. Suffice it to recall the scientific-philosophical controversies ignited by all the scientific breakthroughs during the past five centuries.
Nothing like that happens in philosophy: usually philosophical doctrines are accepted or rejected, fully or in part, without resorting to any clear and objective criteria. The evaluation of philosophical doctrines tends to be intuitive, utilitarian, or even emotive. For example, idealism was the philosophy of the Western establishment during the nineteenth century because it was part of the Counter-Enlightenment. Marx and his followers admired Hegel’s dialectics, despite being hermetic and lacking in empirical support, just because they believed that, as Lenin claimed, it was “the algebra of revolution.” The builders of modern Brazil adopted Comte’s slogan, Order and progress, for it encapsulated the ideal of the enlightened planters.
Neo-Thomism was an attempt to rejuvenate the erstwhile official philosophy of the Catholic Church. In mid-twentieth century, the church considered replacing Thomism with phenomenology, but backtracked because Husserl’s egology replaces God with the self. Mussolini embraced pragmatism because he regarded success as the supreme value; but he did not make it the official philosophy because, under a dictatorship, success is the preserve of the few. Heidegger served Nazism but his Party did no return the favor because existentialism was far too whining and hermetic. Linguistic philosophy attracts people who like clarity but avoid trouble and commitment. And at all times pseudoprofound aphorisms have been more popular than rigorous arguments.
In sum, philosophies, whether genuine or spurious, are not usually adopted because of their conceptual, empirical, or moral merits, but because of tradition, political interests, or even temperament – none of which is a good reason. The present book argues for a precise criterion: A philosophy is worth what it helps learn, act, conserve our common heritage, and get along with fellow humans.
Belo tópico, Paulo!
ResponderExcluirQuando comecei a ler o texto me perguntei se a importância principal da filosofia não seria mais o exercício dela em si, pra botar algum tipo de ordem nas ideias, do que quaisquer conclusões cumulativas, como é o caso da ciência. Depois vi que este raciocínio não responde a outras questões levantadas ao longo do texto.
Me fez lembrar muito o "Como a mente funciona", do Pinker, principalmente porque foi o que li quando comecei a me perguntar como o cérebro gera a mente e por ele também enfatizar a ideia de que nosso cérebro não é um instrumento feito para alcançar todas as respostas, e sim apenas um órgão que auxilia a sobrevivência.
Sim, concordo contigo. Mesmo que as questões primordiais não tenham sido respondidas satisfatoriamente, há todo um "efeito colateral" da filosofia sobre nossa maneira de pensar, e esse efeito carrega um mérito imenso. Uma coisa que eu destacaria como um grande mérito da filosofia é a busca pelas perguntas certas, mesmo que as respostas possam nos decepcionar. Mesmo que não possamos mergulhar no cerne de uma questão, cortar um pedaço de realidade crua e degustar, aprendemos a explorar as questões de diferentes maneiras...
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