quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Um maconheiro chamado Carl

Hoje é aniversário da minha namorada e vou dar pra ela um pingente com a foto de uma nebulosa. Então estava procurando algumas palavras bonitas do Carl Sagan sobre nebulosas. E foi assim que descobri que ele fumava maconha.

Nada excepcional, diversos cientistas o fazem ou fizeram (Robert Trivers, por exemplo), mas Carl deixou um artigo precioso relatando suas experiências. E foi depois de lê-lo que resolvi escrever.

Sim, é do Carl autor de clássicos como Contato e Cosmos que estou falando.

O artigo em questão foi escrito sob o pseudônimo de "Mr. X" em 1969, quando ele tinha 35 anos, sendo mais tarde publicado no livro Marihuana reconsidered (Grinspoon 1971). O que lhes trago aqui são apenas alguns trechos, com tradução livre, de forma que recomendo a leitura do ensaio integral em "marijuana-uses.com/mr-x".



E assim ele inicia:

"Tudo começou cerca de dez anos atrás, eu tinha alcançado um período consideravelmente mais relaxado na minha vida, um tempo em que eu passei a sentir que havia algo mais para se viver do que a ciência, um tempo de despertar da minha consciência social e amabilidade, um tempo em que eu estava aberto a novas experiências"

Como a maioria, Carl também não "chapou" de primeira:

"Minhas experiências iniciais foram totalmente decepcionantes; não houve efeito algum, e eu comecei a ter uma variedade de hipóteses sobre a Cannabis ser um placebo que funcionava através da expectativa e hiperventilação ao invés de química. Após cerca de cinco ou seis tentativas sem sucesso, no entanto, aconteceu."

Desde então, Carl fumou maconha ocasionalmente até sua morte, em 1996, por pneumonia.
No ensaio podemos encontrar descritos, sem o menor pudor, alguns "tetos" como o seguinte:

Livro de 1971 onde foi publicado o
ensaio de Carl Sagan , sob o pseudônimo
de "Mr. X".
"Eu tive recentemente uma imagem em que duas pessoas estavam conversando, e as palavras que eles estavam dizendo se formavam e desapareciam em amarelo acima de suas cabeças, em cerca de uma frase  por batimento cardíaco. Deste modo, foi possível seguir a conversação. Ao mesmo tempo, uma palavra ocasionalmente aparecia em letras vermelhas, entre os amarelos acima de suas cabeças, perfeitamente no contexto da conversa; mas se alguém se lembrasse dessas palavras vermelhas, ele enunciaria um conjunto completamente diferente de frases, penetrantemente críticas daquela conversa"

Mas o cientista ocupa grande parte do texto falando de benefícios maiores, como o senso artístico:

"A experiência com cannabis tem melhorado muito o meu apreço pela arte, um assunto que eu nunca tinha apreciado muito antes. A compreensão da intenção do artista que eu posso conseguir quando estou "alto" às vezes continua para até quando estou sóbrio. Esta é uma das muitas fronteiras humanas que a cannabis me ajudou a atravessar."

E também:

"Uma melhora muito semelhante na minha apreciação da música ocorreu com a cannabis. Pela primeira vez eu fui capaz de ouvir as partes separadas de uma harmonia de três partes e a riqueza do contraponto. Depois disso descobri que os músicos profissionais podem facilmente tocar muitas partes separadas simultaneamente em suas cabeças, mas esta foi a primeira vez para mim."

E, claro, aquele momento de prazer extraordinário (não, ainda não é sobre sexo):

"O prazer da comida é amplificado; emergem sabores e aromas que por algum motivo nós normalmente parecemos estar muito ocupados para notar. Eu sou capaz de dar toda a minha atenção para a sensação. Uma batata terá uma textura, um corpo, e sabor como o de outras batatas, mas muito mais."

E agora sim:

"Cannabis também aumenta o prazer do sexo - por um lado dá uma sensibilidade apurada, mas, por outro lado adia o orgasmo: em parte por me distrair com a profusão de imagens que passa diante dos meus olhos. A duração do orgasmo parece prolongar muito, mas esta pode ser a experiência usual de expansão do tempo que vem com o fumo de cannabis."

Em outro trecho, Carl Sagan fala do que talvez tenha sido o mais próximo que tenha chegado de uma experiência mística/religiosa:

"Eu não me considero uma pessoa religiosa, no sentido usual, mas há um aspecto religioso em algumas 'chapadas'. A sensibilidade em todas as áreas me dá um sentimento de comunhão com os meus arredores, animados e inanimados."

Sabe aqueles insights geniais que tu tens quando está alto? Do tipo que se costuma dizer "uou, é isso que eu nunca tinha compreendido antes!" ou "dá pra fazer um filme, ou escrever um livro!". E aí no dia seguinte, se for lembrado, já não parece mais tão genial. Carl nos dá uma perspectiva otimista a respeito desses momentos:

"Há um mito sobre tais 'tetos': o usuário tem uma ilusão de grande insight, mas ele não sobrevive ao escrutínio da manhã. Estou convencido de que isto é um erro, e que os insights devastadores alcançados durante a 'chapadeira' são percepções reais; o problema principal é colocar essas idéias em uma forma aceitável para o 'eu' bem diferente que somos quando estamos sóbrios no dia seguinte."

"Eu descobri que insights razoavelmente bons podem ser lembrados no dia seguinte, mas somente se algum esforço tiver sido feito para registrá-las de outra maneira. Se eu escrever o insight ou dizê-lo a alguém, então eu me lembro sem ajuda na manhã seguinte; mas se eu apenas digo para mim mesmo que eu tenho que fazer um esforço para lembrar, eu nunca consigo."

Mais adiante no texto, Carl relata, sem detalhes, alguns insights que teve escrevendo com sabão durante o banho com sua esposa, primeiro, e que no futuro utilizou em diversas ocasiões:

"Eu descobri que a maioria dos insigths que tenho quando estou alto são sobre questões sociais, uma área de conhecimento criativo muito diferente daquela pela qual eu sou geralmente conhecido. Lembro-me de uma ocasião, tomando um banho com a minha esposa enquanto chapado, em que eu tive uma idéia sobre as origens e invalidades do racismo em termos de curvas de distribuição de Gauss. Foi um ponto óbvio de alguma forma, mas raramente falado. Eu desenhei as curvas em sabão na parede do chuveiro, e fui escrever a ideia. Uma ideia levou a outra, e no final de cerca de uma hora de trabalho extremamente difícil eu descobri que eu tinha escrito onze ensaios curtos sobre uma ampla gama de temas biológicos sociais, políticos, filosóficos e humanos. Devido a problemas de espaço, não posso entrar em detalhes sobre estes ensaios, mas de acordo com todas as indicações externas, tais como reações públicas e comentários de especialistas, eles parecem conter insights válidos. Eu usei-os em discurssos de formatura da universidade, palestras públicas e em meus livros."

Mas Carl também contrasta estas percepções altamente intuitivas com o seu lado cético e analítico de cientista:

"Eu tenho uma percepção muito apurada de que estes sentimentos e percepções, escritos casualmente, não resistiriam ao escrutínio crítico habitual que é o meu suporte em jogo como um cientista. Se eu encontrar na parte da manhã uma mensagem de mim mesmo da noite anterior me informando que há um mundo que nos cerca, que nós mal sentimos, ou que podemos nos tornar um com o universo, ou mesmo que alguns políticos são homens desesperadamente assustados, eu posso tender a descrer; mas quando estou 'alto' eu sei sobre essa descrença. Então eu tenho uma fita na qual convenço-me a levar a sério tais comentários. Eu digo "Ouça com atenção, seu filho da puta da manhã! Este material é real! Tento mostrar que a minha mente está trabalhando com clareza."

Pra finalizar, sobre a legalização:

"Espero que este tempo não esteja muito distante; a ilegalidade da cannabis é ultrajante, um impedimento à plena utilização de uma droga que ajuda a produzir a serenidade e o discernimento, sensibilidade e companheirismo tão desesperadamente necessários neste mundo cada vez mais louco e perigoso."


Espero que tenham gostado de conhecer este "outro" Carl Sagan, que na minha opinião é exatamente o mesmo de sempre: um apaixonado pela vida e pela descoberta.

...

Hoje é quarta, e eu dedico este texto aos meus amigos mais próximos.


Referências:

http://marijuana-uses.com/mr-x/
http://www.huffingtonpost.com/2014/01/03/carl-sagan-smoked-pot_n_4538374.html

4 comentários:

  1. Baita texto, André! Muito bom!

    Divulgar esse outro Carl é bem importante pras pessoas se darem conta de que é o mesmo indivíduo do "Cosmos" e de "O Mundo assombrado pelos demônios -- a ciência vista como uma vela no escuro". Um grande cientista que fumou maconha até o fim de sua vida. É legal porque é uma desmistificação do uso da maconha sendo contada por um cara como o Carl Sagan. Ele consegue trazer detalhes impressionantes. Fiquei imaginando que se o Darwin também fosse maconheiro teríamos uma riqueza ainda maior de descrições dos 'tetos', visto que o Darwin registrava tudo que fazia! hehe

    Gostei bastante da parte final do teu texto, quando tu disse que este "outro" Carl, na tua opinião, "é exatamente o mesmo de sempre: um apaixonado pela vida e pela descoberta."! Enquanto o preconceito faz com que muitas pessoas achem ser inconciliável ser maconheiro e cientista, tu mostrou que isso pode ter um mesmo pano de fundo -- a paixão pela vida e pela descoberta. Acho que esse artigo do Carl Sagan nos permite fazer essa conclusão tranquilhamente. E isso é muito interessante!

    Gostei também da 1ª citação que tu fez, que é o início do artigo:

    "Tudo começou cerca de dez anos atrás [com 25 anos], eu tinha alcançado um período consideravelmente mais relaxado na minha vida, um tempo em que eu passei a sentir que havia algo mais para se viver do que a ciência, um tempo de despertar da minha consciência social e amabilidade, um tempo em que eu estava aberto a novas experiências".

    Me identifiquei com essa parte! hehe. To fazendo com que a ciência seja uma parte bem menor das minhas atividades e dedicando mais tempo pra novas experiências que envolvam uma consciência social -- vivências, trabalhos coletivos (mutirões), aspectos relacionados não só à análise social, mas à transformação social, etc.

    To tentando buscar o melhor equilíbrio entre vida pessoal, militância, trabalho manual e trabalho intelectual. Acho que esse "despertar da consciência social", como disse o Sagan, tá cada vez mais forte pra mim e é bem interessante pra ver que nem tudo é ciência.

    Baita texto! Grande abraço do teu amigo Cráudio

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  2. Valeu Craudião!!

    É isso aí, a ciência é fascinante, mas isso é porque a vida é fascinante, e tem muito mais na vida do que ciência. Tamo junto nessa de que equilibrar atividades bem diferentes (sociais, manuais, etc.) é um bom caminho. E o caminho é bom por si, independente de qualquer fim.

    Abraço!

    P.S.: Darwin chapado seria sensacional.

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