quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A natureza no ocidente e no zen (cuidado, texto holístico!)

Quando você está assistindo a uma dança, por acaso interrompe o dançarino para perguntar-lhe "e agora aonde é que você vai e qual é, exatamente, a significação de todos esses movimentos"? Não. Isso é coisa de cientista. Isso de analisar minuciosamente as partes. Acontece que muitas vezes essas "partes" não são mais significativas do que os metros o são para uma tábua, ou do que os quilos são para um saco de farinha. Talvez sejam um pouco mais verdadeiros: as ondas como partes do mar.




"O entendimento da natureza através do pensamento é algo como tentar reproduzir o contorno de uma caverna com o auxílio de uma lanterna com um facho de luz muito fino. O facho de luz e a série de pontos por ele iluminados devem ser guardados de memória e é com base nesse registro que o aspecto geral da caverna tem de ser reproduzido. Na prática, portanto, o cientista deve forçosamente usar sua intuição para apreender o conjunto da natureza, mesmo sem acreditar nela. Deve sempre deter-se para comparar a visão intuitiva com o fino e brilhante facho do pensamento analítico."

Quem fala acima é Alan Watts em "O homem, a mulher e a natureza", no capítulo "A ciência e a natureza". O principal divulgador do zen-budismo no ocidente (também guru da contracultura nos 70's) tráz neste livro um contraste: a relação homem-natureza no ocidente e no oriente - mais especificamente, na filosofia de vida do zen-budismo.

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Pensando bem, não há muito mais o que dizer. Era isso, pessoal.



Tudo bem, um pouco mais do livro:

"As palavras, antes de nomes próprios, são elementos de classificação e, assim, contribuem para agravar a impressão de que o mundo é uma multiplicidade incoerente, desorganizada, pois quando dizemos o que alguma coisa é, a identificamos com uma classe; não há outro modo de dizer-se o que isto ou aquilo são sem classificá-los. Mas isso consiste simplesmente em separá-los de tudo o mais, em destacar suas características diferenciais como o mais importante.[...] Em tal situação, sinto o mundo como algo com que devo estabelecer relação e não como aquilo com que tenho relação."

Modelagem de "sistema complexo"
Pode-se dizer, contudo, que a ciência está evoluindo justamente no sentido de direcionar cada vez mais seus olhos para as relações. No século XIX a moda era classificar tudo, literalmente, catalogar a natureza, vide Humboldt e sua obsessão por encontrar um tipo de "plano da natureza" seguindo este caminho, não sendo a toa o ambicioso nome do seu livro: "Cosmos". 

Hoje, muita ênfase é dada aos processos de origem, funcionamento e modificação de entidades, sejam quais forem. E mais recentemente, algumas das novidades (tidas como) mais promissoras da ciência priorizam abordagens integrativas, como a área de "sistemas complexos", aplicada em escalas que vão de moléculas à ecossistemas.

O cientista, contudo, sendo humano antes de tudo, sempre "compreende aquela inter-relação através de outros meios, além da análise e do pensamento gradual. Na prática, ele confia consideravelmente na intuição, um processo intelectual cujos passos são inconscientes, que não parece funcionar segundo o modo doloroso e linear de pensar em uma coisa de cada vez e que, portanto, pode apreender simultaneamente campos inteiros de pormenores inter-relacionados". (Grafo meu).

Notem também a atualidade do discurso de Watts em 1958:

“Vem sendo, portanto, geralmente aceito que, para se ter uma pesquisa mais criadora, os homens de ciência devem ser credores de confiança e estimulados a deixar suas mentes divagarem de forma não sistemática e sem a preocupação de obter resultados. 

Qualquer semelhança com o recente movimento da Slow Science é mera coincidência.

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Kuan é a expressão chinesa para "contemplação sem palavras".

Penso que um pouco mais de kuan na vida daqueles que se dizem tão curiosos e apaixonados pela natureza, muitos dos quais cientistas, não deve fazer mal. E esta prática nem precisa estar tão longe do trabalho.

Por fim, me pergunto e lhes pergunto: como seria a ciência se, ao longo, da história, tivéssemos sido mais abertos para o pensamento oriental?


Ou, melhor, como nos pareceria a natureza?

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Alan Watts
“Para um certo tipo de cultura, a ‘verdade sobre a natureza’ consiste, portanto, na explicação verbal ou reconstrução do mundo, considerada esta como um sistema de leis que o precede ou lhe é subjacente, a exemplo da concepção mental de um projeto pelo arquiteto antes da construção da casa. Para um outro tipo, é a própria natureza, experimentada diretamente em silêncio mental e que no zen-budismo é denominada de wu-nien ou ausência de pensamento. Assim, nas culturas orientais, raramente encontramos os conflitos entre religião e natureza tão característicos do Ocidente. Pelo contrário, a melhor arte budista e taoista da China e do Japão não se preocupa, como se poderia supor, com temas formalmente religiosos, mas antes com paisagens e com pássaros, árvores, pedras e plantas. E mais ainda, a doutrina zen aplica-se diretamente à jardinagem e a um estilo de arquitetura que deliberadamente faz a integração da casa com seu ambiente natural, o que simultaneamente inclui o homem e admite a natureza. Isso, e não imagens de Buda, é o que realmente exprime o conhecimento da realidade.”

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Todas as citações deste texto são do livro "O homem, a mulher e a natureza" 
Alan Watts 1958

7 comentários:

  1. Bem, não é de hoje que a nossa cultura e ciência não são nativas. Inicialmente importamos a todo o fazer e entender europeu, agora em maior medida dos norte-americanos. Classificar a oriental como melhor ou qualquer outro adjetivo talvez seja bem complicado. Mas, gosto de qualquer espaço que permita apreciar as duas imagens acima. Isso me recorda o céu estrelado, aliás faz tempo que não o vejo, primeiro olho aquele céu hipnotizante, uma beleza e percepção que os vídeos ainda não estão conseguindo reproduzir, ainda que já tem sala de cinemas chegando bem perto, depois daquele choque visual, vem uma agonia prazerosa de entender o que está lá, como estamos aqui, como tudo isso esta relacionado. Aí preciso da ciência para entender isso, mas apenas com ela, tira o colorido da imaginação. Preciso de algo que mantenha lugar para esses dois sentimentos, contemplativo e investigativo. :)

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    1. É bem por aí que eu vejo a coisa, Josmael. De fato, acho não só complicado como também desnecessário classificar uma como melhor que outra. São complementares, e devem ser usadas em momentos diferentes.

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  2. Bom tema, André!

    Realmente concordo que a intuição é deixada de lado quando se fala sobre ciência sendo que, na verdade, ela tem um papel importantíssimo no início do processo.

    Acho que isso é, em boa parte, uma carga que herdamos do positivismo lógico. Por exemplo, Reichenbach, um importante proponente do neopositivismo, disse o seguinte:

    "O ato de descoberta escapa à análise lógica: não há regras lógicas que poderiam ser aplicadas à construção de uma máquina de descobrir. Não é tarefa do lógico explicar as descobertas científicas; tudo o que ele pode fazer é analisar a relação entre fatos dados e uma teoria que lhe é apresentada para ser explicada."

    E isso era uma justificação para o neopositivismo. Tinha-se a ideia de que a filosofia da ciência deveria ser tratada inteiramente na sua dimensão lógica. Demorou um pouco pra que aspectos pragmáticos e históricos fossem vistos como importantes a uma análise filosófica da ciência.

    De qualquer maneira, já que o texto não fez esta ressalva, aproveito pra fazer: a intuição é importante para as descobertas e ideias em vários campos, inclusive na ciência; porém, precisamos diferenciar intuição de intuicionismo. Nenhum problema com a intuição, mas todos com o intuicionismo (hehe).

    O intuicionismo filosófico é uma variedade de irracionalismo, e considera a intuição como superior tanto à experiência quanto à razão. Além disso, é a epistemologia inerente ao holismo. A ciência e a tecnologia -- e até mesmo o conhecimento comum e a práxis -- não são intuicionistas, porque dão grande importância à experiência e a razão.

    Mas a intuição é importantíssima, principalmente na primeira etapa da formação de conceitos. Inclusive, o próprio aprendizado (aquisição de experiência) e a razão podem fortalecer a intuição. Podemos ver que vários "insights", embora não provenham de processos "algoritmizáveis", não saem completamente do nada, de modo que a própria razão e a experiência prévia podem contribuir para eles. Ou seja, é possível desenvolver-se um "sentimento intuitivo", mesmo que ele seja altamente falível.

    Uma última ressalva: o resultado destes "insights" tidos a partir da intuição podem ser melhor formulados de modo racional posteriormente. Mesmo que o processo do "insight" não possa ser racionalizado, o seu resultado em princípio poderia. Um exemplo é a criação de conceitos ou de relações entre estes que não tinham sido vistas anteriormente como importantes, e que são feitas a partir de um "insight". Metáforas estão nesse tipo de exemplo. A ideia de seleção artificial, que ajudou Darwin a pensar na seleção natural ou a ideia de um jogo de palavras cruzadas, que ajudou a epistemóloga Susan Haack a pensar em aspectos importantes do processo científico, etc. A questão é que, se estamos buscando a verdade sobre alguma questão, é sempre interessante formularmos nossos interesses e nossos resultados da forma mais clara possível e, portanto, racionalizar esses conceitos e relações se torna um processo altamente importante. A intuição (como no caso da criação de metáforas) frequentemente são importantes no início do processo investigativo, mas nunca podem ser o fim: não basta em si mesma.

    Como de costume, falei de mais! hehe

    Um abraço

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    1. Belas observações, Cláudio. Mas, contrapondo um pouco tua ênfase no início do processo investigativo, acho que a intuição tem papel importante também depois, pra se chegar a possíveis "quadros gerais" do problema, aquelas coisas que se bota na discussão do artigo, bem no final, hehehe. Nunca vou esquecer que o Pigliucci me perguntou se eu tinha uma "great picture" dos meus resultados do doutorado, e eu percebi que não tinha, ainda, e agora sempre me pergunto se já tenho. Acho que a intuição, fortalecida pelo aprendizado, como tu muito bem colocou ali, vai ser fundamental pra isso. Mas, também, saindo um pouco do escopo daquilo que vai pros artigos, defendo essa contemplação sem palavras (com o mínimo de razão e de questionamentos) em outros momentos, não só no trajeto de uma pesquisa. Porque, afinal, a gente quer acima de tudo entender um pouco da natureza, não é isso? Os "papers" são só uma lasquinha do que a gente obtém a partir da observação nessa vida maravilhosa... hehehe. Abraço!

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    2. Pois é, mas não sei se poderíamos chamar de "intuição" esse processo que constrói quadros gerais de um problema. Acho que seria mais um esforço de síntese, em contraposição ao esforço de análise que são mais comuns nos trabalhos científicos. Penso que esse esforço de esquematização de nossos resultados (que é mais comum em trabalhos de revisão) provém bem mais da razão e da experiência do que da intuição.

      E, com certeza, essa intuição é importantíssima não só na pesquisa científica. Eu deveria ter enfatizado no comentário anterior que ela "não basta em si mesma" no âmbito da investigação, mas fora desse âmbito não precisa ser assim. Quando estamos interessados apenas na contemplação de algo, não precisamos racionalizar isso, porque o objetivo não é a busca de como esse "algo" funciona.

      Quanto àqueles elementos menos sistematizados que são escritos mais no final de um artigo, nas discussões, entendo que eles ainda podem ser entendidos como exemplos da importância da intuição para o processo inicial de investigação. Isso porque eles são elementos que podem ajudar numa pesquisa futura, não sendo fim em si mesmos.

      E concordo, os "papers" são apenas uma lasquinha -- mais ou menos como o matambre numa costela! hehehe

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  3. De quando será que data essa divisão entre pensamento "ocidental" e pensamento "oriental"? A ciência que chamamos "ocidental" é, em grande parte, fruto das descobertas e do esforço intelectual de povos árabes, que além de avançar significativamente em muitas áreas da ciência, foram uma espécie de guardião do conhecimento num período em que a Europa estava, digamos, pouco capacitada... além disso, os árabes já tinham contato com hindus, persas, bizantinos e chineses, inclusive traduzindo obras importantes desses povos.
    Será realista essa divisão entre ocidentais "analíticos" e orientais "intuitivos"?

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    1. Acho que essa polarização rígida como tu colocou no final, Paulo, é mais uma manifestação da obsessiva necessidade de categorização do nosso pensamento, hehe. Além do mais, sabemos que este oriente do Watts já não existe há séculos (contudo, o pensamento sim, em alguns lugares). Pois é, tu falou dos árabes, mas talvez filosoficamente o sistema deles seja muito mais ocidentalizado, mesmo tendo havido contato com obras do lado de lá... Por que foi ou não absorvido esse pensamento, devem ser questões históricas bem enoveladas. Mas acho que nunca é tarde pra se rever esses percursos...

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