quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Popper e a ambiguidade da falsificação: apresentação do problema + dois exemplos (teorias newtoniana e darwiniana)

Karl Popper (1902 — 1994), um dos principais filósofos da ciência do século XX.
Popper propõe um critério de demarcação da ciência, o qual pode ser entendido como uma definição da mesma. Esse critério é a falseabilidade. Um sistema de enunciados é científico se e somente se é falsificável/testável/refutável.

No entanto, como esse critério deve ser aplicado? A falsificação é frequentemente ambígua, e a definição acima não nos diz nada sobre quando e o que falsificar. Daí a necessidade, para Popper, de regras metodológicas. Ele afirma:

Importa distinguir claramente entre falseabilidade e falsificação. Introduzimos a falseabilidade apenas como um critério aplicável ao caráter empírico de um sistema de enunciados. Quanto à falsificação, deveremos introduzir regras especiais que determinarão em que condições um sistema há de ser visto como falseado.” (LDPC, p. 91)

Mas em que consiste a ambiguidade da falsificação? Quando os cientistas estão a testar teorias, de modo a descobrir se previsões decorrentes da teoria são corroboradas ou não pela experiência, esse teste é sempre realizado em condições especificadas e com a ajuda de hipóteses auxiliares. Disso decorre que uma teoria não é testada isoladamente, mas em conjunto com outros enunciados. O que está em teste, portanto, é um sistema mais amplo de enunciados. Podemos dizer que esse sistema é composto pela teoria (T), por condições iniciais (CI) e por hipóteses auxiliares (HA). Se o experimento construído para testar a teoria fornecer dados que refutam a previsão esperada (P), como escolher o componente do sistema a falsificar? É um problema com a teoria ela mesma, com os instrumentos de medida, com o desenho experimental? Nisso consiste a ambiguidade da falsificação. Podemos expressá-la da seguinte forma:

1) (T) ^ (CI) ^ (HA) (P)
2) (~P)
:.  (~T) v (~CI) v (~HA) v (~T ^ ~CI) v (~T ^ ~HA) v (~CI ^ ~HA)

Essa ambiguidade da falsificação se torna um problema para Popper na medida em que a principal virtude de seu projeto era evitar a “ambiguidade da verificação” inerente aos empiristas lógicos e, mais amplamente, a todos que interpretavam a ciência como uma atividade que utiliza juízos indutivos. Se a verificação não era conclusiva, tampouco o é a refutação. Essa ambiguidade enfraquece o projeto de Popper no sentido de que a racionalidade científica não poderia se acomodar a simples recorrências do modus tollens. Mesmo que essa racionalidade envolva um processo hipotético-dedutivo, este não lança luz sobre o que se deve refutar. Esse processo, portanto, não é suficiente para explicar o modo como se dá (e deveria se dar) a refutação. Essa lacuna precisa ser preenchida por “regras” adicionais. Popper apresenta algumas regras, tais como se utilizar o mínimo possível de hipóteses ad hoc, e que essas hipóteses façam mais do que apenas salvar a teoria, devendo trazer novas predições. Mas uma série de problemas com essas regras vão enfraquecendo seu projeto ainda mais, até que de um início bastante claro e normativo, suas propostas acabam ficando mais vagas e menos normativas. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que podemos reconhecer o trabalho árduo de Popper e dos empiristas lógicos, podemos também nos perguntar se o trabalho do primeiro não mostrou limitações tão fortes quanto o dos segundos.

Dois exemplos.
1. A teoria newtoniana previa uma órbita para o planeta Urano que não era corroborada pelas observações astronômicas. Os newtonianos – e praticamente toda a comunidade de especialistas – não rejeitaram a teoria de Newton. Em vez disso, postularam (na versão dos convencionalistas; conjecturaram, na versão dos popperianos) a existência de fatores que perturbariam a órbita de Urano. Tal foi o caso de Adams e Leverrier que, por volta de 1845, atribuíram a discordância da observação com a teoria pela presença de outro planeta (Netuno), o que posteriormente foi evidenciado. No entanto, é preciso levar em conta que essa conjectura não era testável naquele momento. Isso nos permite pôr em dúvida se tal hipótese (ad hoc) é legítima na atividade científica. Retrospectivamente, vemos que o apego à teoria newtoniana permitiu o avanço no conhecimento sobre a trajetória de Urano, além de inúmeros outros avanços. Mas esse apego nem sempre é virtuoso. Não deve fazer parte do ethos científico salvar uma teoria frente a toda e qualquer observação que lhe é contrária. Isso torna as teorias imunes aos dados empíricos. Nesse momento, o que estamos a fazer não é mais ciência. No entanto, como estabelecer critérios de legitimidade para o compromisso com uma teoria? Jogar a teoria fora frente à primeira anomalia também não parece ser a atitude mais sensata. A dificuldade de responder a essa questão decorre justamente da ambiguidade da falsificação.

2. A teoria darwiniana incorpora um gradualismo na modificação de espécies, no processo chamado especiação. Darwin argumenta em favor desse gradualismo a partir da imperfeição dos registros fósseis. Para que um fóssil seja preservado, são necessárias muitas condições ótimas. Por isso apenas uma pequena amostra dos seres que viveram sobre a Terra estão preservados em fósseis. Além disso, outras muitas condições são necessárias para que o fóssil seja encontrado e incorporado ao conhecimento científico. Darwin se utilizou disso para defender seu gradualismo, que era contradito pelos registros fósseis. Não se encontrava nos fósseis a mudança gradual prevista pela teoria darwiniana. Nesse sentido, em que medida a argumentação de Darwin é legítima? Sua teoria deveria ter sido falseada pela falta de evidências fósseis em seu favor? Em retrospectiva, vemos que o apego à teoria darwiniana foi extremamente fecundo. Boa parte dessa teoria é aceita pelos cientistas atualmente (e não há dúvidas consistentes quando à ocorrência do processo evolutivo), mas não há um compromisso tão forte, como tinha Darwin, com o gradualismo.

Permitam-me continuar com esse exemplo, mas no intuito de abordar outras questões, as quais tem a ver com os rumos da biologia evolutiva. Hoje em dia o número de fósseis registrados pela ciência é muito maior e sua interpretação é muito mais robusta. Pode se dizer com maior razoabilidade que nem sempre as linhagens passam por um processo contínuo de pequenas modificações. A taxa de modificação irá depender de diversos fatores, e não é preciso um compromisso teórico sobre a velocidade das modificações para reconhecer o potencial que teve a teoria darwiniana. Da mesma forma, podemos reconhecer a fecundidade da Síntese Moderna da Evolução (formulada nos anos 30 e 40) sem comprometermo-nos com toda sua arquitetura teórica. Esta pressupõe o gradualismo darwiniano e inclui um externalismo (o organismo é passivo no processo; sofre a pressão evolutiva) e um genecentrismo (o gene como unidade primordial de herança). Ninguém deveria negar o papel crucial que teve a Síntese Moderna; mas, frente aos novos achados empíricos e a novas articulações teóricas, é difícil defender que essa perspectiva deva continuar sendo o paradigma da biologia evolutiva. O momento atual coloca aos biólogos (e filósofos) reflexões mais profundas sobre a estrutura teórica da evolução e sua relação com os dados empíricos. Esse momento requer mais do que solucionar mini problemas no interior do paradigma da Síntese Moderna; requer reflexões sobre os pressupostos da Síntese à luz da biologia contemporânea; requer o debate crítico e público entre especialistas a respeito de como avançar nas propostas teóricas da biologia evolutiva. Para quem quiser pensar mais a fundo sobre essas questões, deixo um artigo (de 2015) que considero fundamental: