quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Quando os biólogos podem prejudicar a popularização do conhecimento evolutivo


A interface religião/evolução tem passado por alguns fatos marcantes nos últimos dias. O papa Francisco declarou que as teorias da evolução e do Big Bang não são incompatíveis com os postulados bíblicos [1]. Para ele, a evolução da natureza não se opõe à noção de criação. Tangenciando o mesmo tema, ocorrerá na próxima semana o primeiro Congresso Brasileiro de Design Inteligente. Esse evento procura marcar a consolidação da teoria do design inteligente (TDI) no Brasil e tem como uma das metas que essa “teoria” seja ensinada nas escolas brasileiras [2].

Além da óbvia relação entre esses dois acontecimentos, eles estão muito mais ligados do que parece. E isso por conta de alguns biólogos. A crença de que a teoria evolutiva não pode ser aceita e/ou compreendida corretamente por aqueles que acreditam em entidades sobrenaturais está se tornando cada vez mais comum entre os evolucionistas. Para alguns biólogos, deve ser um pré-requisito para a apreensão correta da teoria evolutiva que o sujeito aceite pessoalmente apenas explicações materiais dos fenômenos no mundo.




Biólogos como Richard Dawkins procuram endurecer o posicionamento em prol da evolução, afirmando que não é possível que uma pessoa adquira alguma forma de compatibilidade entre o conhecimento sobre a evolução da vida e suas crenças Teístas. Jerry Coyne, um expoente evolucionista, chegou a publicar no site de Dawkins uma critica à declaração do papa, afirmando que a posição oficial do Vaticano sobre a evolução é explicitamente não-científica, uma vez que é “uma combinação da teoria evolutiva moderna e do criacionismo bíblico” [3].

O problema é que Dawkins e Coyne confundem a necessidade da teoria evolutiva ser materialista com a impossibilidade de alguém pessoalmente adquirir uma forma de compatibilidade entre o pensamento evolutivo e suas crenças Teístas. Sem dúvida, os biólogos devem lutar para que a teoria evolutiva mantenha-se materialista, longe de qualquer tendência Teísta. Um evolucionismo Teísta é inconcebível na comunidade científica. Mas isso não decorre que determinado sujeito não possa compreender e aceitar a teoria evolutiva caso tenha crenças Teístas. Vale lembrar que uma  espécie de compatibilização pessoal entre esses “dois mundos” foi alcançada por importantes evolucionistas, como o próprio Darwin e o geneticista Theodosius Dobzhansky. Independente disso, esses autores não deixaram de defender o materialismo na ciência.

A declaração do papa, dessa forma, é não-cientifica pelo simples motivo de que ela não se propõe a ser. A ciência é materialista, o papa não. Coyne deveria respeitar a lucidez do papa e entender que assim como a teoria evolutiva pode ser independente da religião, a crença em um ser criador pode ser uma dimensão distinta da aceitação da teoria evolutiva. É claro que a evolução preconiza que nossa espécie é um simples produto da evolução natural das formas de vida ao longo do tempo, não sendo diferente dos outros organismos; mas é justamente por esse motivo que Coyne deveria entender a necessidade existencial que alguns humanos possuem em acreditar em um criador, pois seria plausível desse comportamento ser um (sub) produto da nossa evolução [4].

Por isso, o foco dos evolucionistas deve ser em mostrar que religião e ciência ocupam status diferentes e não em usar a evolução como um ateísmo militante.

Atacando o problema errado


Tal endurecimento pode levar a algumas consequências indesejadas. Se biólogos populares como Dawkins e Coyne insistirem em divulgar para aqueles que desejam saber mais sobre evolução que é necessário despir-se de suas crenças Teístas para um entendimento/aceitação correto do pensamento evolutivo, eles podem isolar previamente do discurso evolutivo as pessoas que não concebem sua vida sem essas crenças. Os dados mais recentes indicam que os católicos no Brasil seriam cerca de 130 milhões. Os evangélicos chegam a cerca de 39 milhões, um número enorme; isso tudo sem contar a infinidade de outras religiões que o Brasil possui [5]. 

                           

Se essas pessoas forem informadas que apenas podem entrar “no mundo” do conhecimento evolutivo se deixarem para trás suas aspirações Teístas, certamente muitos desses não vão querer saber do evolucionismo. Dessa forma, elimina-se a possibilidade de uma popularização efetiva das ideias evolutivas. O próximo passo perigoso é que iniciativas pseudo-científicas tomem o lugar do discurso evolutivo, como o design inteligente está tentando fazer.

Por isso, o foco dos evolucionistas não deveria ser no sentido de um ateísmo militante, mas em desestimular iniciativas como o design inteligente, que invadem o materialismo da evolução com crenças criacionistas. Essa “teoria” preconiza que a ação de uma mente inteligente é a melhor inferência para a criação do Universo e da Vida. Ocorre que praticamente toda a comunidade de biólogos rechaça a TDI e considera que o evolucionismo acumula evidências há mais de 150 anos [6]. Além de ser rechaçado por praticamente toda a comunidade cientifica mundial, a TDI no Brasil é levada por pesquisadores que simplesmente não podem fazer uma avaliação correta dos dados evolutivos, sendo composto principalmente de químicos e engenheiros [2]. Autoridade cientifica não é algo que se empresta entre áreas diferentes. Um químico tem uma compreensão limitada de evolução assim como um biólogo tem de química analítica, não podendo tomar emprestada a autoridade de seu campo para outras áreas da ciência. Esses autores simplesmente propagam sua ignorância e acreditam que o conhecimento evolutivo aceito por toda a comunidade de biólogos deve dar espaço para suas crenças pessoais que não passaram pelo escrutínio da comunidade científica.


Isso se torna mais grave na medida em que a evolução biológica pode ser considerada um eixo central da biologia. Por isso, o ensino do design inteligente no Brasil pode ser um desastre ao ensino científico, pois evita que um conhecimento evolutivo criterioso seja ensinado, o qual é um eixo central para todo o conhecimento biológico [7]. 

O ensino básico é uma seleção de conhecimentos estabelecidos pela comunidade científica. Não há razões para incluir teorias praticamente não aceitas pela comunidade de biólogos no ensino de biologia, como a de que o HIV não é a causa da AIDS [8], a teoria do macaco aquático [9] e o próprio design inteligente. Se ocorrer do design inteligente começar a crescer no Brasil e chegar às escolas, esse prejuízo também está na conta dos biólogos ateus-militantes.


Referências


[1] http://www.theguardian.com/world/2014/oct/28/pope-says-evolution-and-creation-both-right

[2] http://www.designinteligentebrasil.com.br

[3] http://richarddawkins.net/2014/10/stop-celebrating-the-popes-views-on-evolution-and-the-big-bang-they-make-no-sense/

[4] Para mais informações a respeito: http://evolution.binghamton.edu/religion/

[5] Bizzo; Gow; Pereira. Evolução e religião: O que pensam jovens estudantes brasileiros. Ciência Hoje, Janeiro/Fevereio, 2013.

[6] http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_scientific_bodies_explicitly_rejecting_Intelligent_design; http://www.sbg.org.br/ManisfestoCriacionismo.html

[7] Smocovitis, V, B. Unifying Biology: The Evolutionary Synthesis and Evolutionary Biology. Princeton University Press, 1996.

[8] http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-47142008000100010&script=sci_arttext

[9] Hardy, A. Was man more aquatic in the past. New Scientist, 17, 1960.







7 comentários:

  1. Ótimo texto.

    Se crenças Teístas são incompatíveis com o pensamento evolutivo o Ateísmo também é. Ambos não baseados em crenças e fé. A única posição compatível seria o Agnosticismo. Compartilho da visão do Gould que religião e ciência ocupam status diferentes. O Papa com suas recentes declarações se manteve no seu campo/área, o que não acontece no caso do design Inteligente.

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  2. Excelente texto!!!

    Evolucionismo tem que ser materialista, evolucionista não.

    "Se ocorrer do design inteligente começar a crescer no Brasil e chegar às escolas, esse prejuízo também está na conta dos biólogos ateus-militantes."

    Pegou pesado aí, hehehe, mas completamente certo!

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  3. Ótimo texto! Essa necessidade de mudança de foco de críticas foi descrita brilhantemente, bem como a responsabilidade daqueles que não a vêem. Mas se me permite, o uso da palavra autoridades no meio científico não me agrada. Pois, diferentemente do catolicismo, em que a palavra do papa é veredito final - seja ela qual for, na ciência há especialistas. Suas palavras não são de imposição, mas sim argumentativas.
    Abraços.

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    1. Valeu! Ah, e o termo autoridade aqui não é no sentido de um veredito final, mas de que os participantes de uma comunidade cientifica sabem avaliar melhor o conhecimento da área. Dessa forma é uma "autoridade epistêmica". Abraço

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  4. Muito bom o texto, Leonardo!

    Este é um daqueles assuntos que são antigos e atuais ao mesmo tempo. Já vem de longa data e continua gerando polêmicas.

    Em relação a tua forte conclusão de que "se ocorrer do design inteligente começar a crescer no Brasil e chegar às escolas, esse prejuízo também está na conta dos biólogos ateus-militantes." Realmente concordo em boa parte com essa conclusão, principalmente se estes "biólogos ateus-militantes" consideram que para aceitar a evolução biológica é preciso ser ateu. Além de falso, isso é realmente um desserviço para a divulgação da ciência. Só não sei se eu iria tão longe quanto ao ateísmo militante por si só. Acho que um biólogo ateu-militante que reconhece que é possível ser teísta e aceitar a evolução não está fazendo este desserviço. Eu penso que o ateísmo militante frequentemente é bastante exagerado, mas o questionamento aos diferentes teísmos ainda me parece válido.

    A meu ver, o prejuízo do avanço do Design Inteligente pode ser colocado na conta de pelo menos quatro fatores:

    1. biólogos ateus-militantes que consideram a crença num ser superior e o aceite da evolução biológica como incompatível (foi o que tu destacou no texto);
    2. falta de um compromisso ético dos cientistas para com a divulgação da ciência;
    3. falta de um compromisso ético dos cientistas em denunciar as pseudociências;
    4. o fato de a educação não ser nem de longe uma prioridade política de nossos governantes.

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