sábado, 31 de outubro de 2015

Thomas Kuhn e a invisibilidade das revoluções científicas

“Se a história fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência que atualmente nos domina.


Segue abaixo um interessante trecho do capítulo 10 de A Estrutura das revoluções científicas (Kuhn, 1962).

Tentei até aqui descrever as revoluções através de ilustrações: tais exemplos podem multiplicar-se ad nauseam. Mas é claro que a maior parte das ilustrações, que foram selecionadas por sua familiaridade, são habitualmente consideradas, não como revoluções, mas como adições ao conhecimento científico. Poder-se-ia considerar qualquer ilustração suplementar a partir dessa perspectiva e é provável que o exemplo resultasse ineficaz. Creio que existem excelentes razões para que as revoluções sejam quase totalmente invisíveis. Grande parte da imagem que cientistas e leigos têm da atividade científica criadora provém de uma fonte autorizada que disfarça sistematicamente — em parte devido a razões funcionais importantes — a existência e o significado das revoluções científicas. Somente após o reconhecimento e a análise dessa autoridade é que poderemos esperar que os exemplos históricos passem a ser plenamente efetivos. Além disso, embora este ponto só possa ser completamente desenvolvido na conclusão deste ensaio, a análise aqui exigida começará a indicar um dos aspectos que mais claramente distingue o trabalho científico de qualquer outro empreendimento criador, com exceção, talvez, da Teologia.

Quando falo de fonte de autoridade, penso sobretudo nos principais manuais científicos, juntamente com os textos de divulgação e obras filosóficas moldadas naqueles. Essas três categorias — até recentemente não dispúnhamos de outras fontes importantes de informação sobre a ciência, além da prática da pesquisa — possuem uma coisa em comum. Referem-se a um corpo já articulado de problemas, dados e teorias e muito frequentemente ao conjunto particular de paradigmas aceitos pela comunidade científica na época em que esses textos foram escritos. Os próprios manuais pretendem comunicar o vocabulário e a sintaxe de uma linguagem científica contemporânea. As obras de divulgação tentam descrever essas mesmas aplicações numa linguagem mais próxima da utilizada na vida cotidiana. E a Filosofia da Ciência, sobretudo aquela do mundo de língua inglesa, analisa a estrutura lógica desse corpo completo de conhecimentos científicos. Embora um tratamento mais completo devesse necessariamente lidar com as distinções muito reais entre esses três gêneros, suas semelhanças são o que mais nos interessam aqui. Todas elas registram o resultado estável das revoluções passadas e desse modo põem em evidência as bases da tradição corrente da ciência normal. Para preencher sua função não é necessário que proporcionem informações autênticas a respeito do modo pelo qual essas bases foram inicialmente reconhecidas e posteriormente adotadas pela profissão. Pelo menos no caso dos manuais, existem até mesmo boas razões para que sejam sistematicamente enganadores nesses assuntos.

No Cap. 1 observamos que uma confiança crescente nos manuais ou seus equivalentes era invariavelmente concomitante com a emergência do primeiro paradigma em qualquer domínio da ciência. No capítulo final deste ensaio, argumentaremos que a dominação de uma ciência amadurecida por tais textos estabelece uma diferença significativa entre o seu padrão de desenvolvimento e aquele de outras disciplinas. No momento, vamos simplesmente assumir que, numa extensão sem precedentes em outras áreas, os conhecimentos científicos dos profissionais, bem como os dos leigos, estão baseados nos manuais e em alguns outros tipos de literatura deles derivada. Entretanto, sendo os manuais veículos pedagógicos destinados a perpetuar a ciência normal, devem ser parcial ou totalmente reescritos toda vez que a linguagem, a estrutura dos problemas ou as normas da ciência normal se modifiquem. Em suma, precisam ser reescritos imediatamente após cada revolução científica e, uma vez reescritos, dissimulam inevitavelmente não só o papel desempenhado, mas também a própria existência das revoluções que os produziram. A menos que tenha experimentado pessoalmente uma revolução durante sua vida, o sentido histórico do cientista ativo ou do leitor não-especializado em literatura de manual englobará somente os resultados mais recentes das revoluções ocorridas em seu campo de interesse.

Deste modo, os manuais começam truncando a compreensão do cientista a respeito da história de sua própria disciplina e em seguida fornecem um substituto para aquilo que eliminaram. É característica dos manuais científicos conterem apenas um pouco de história, seja um capítulo introdutório, seja como acontece mais frequentemente, em referências dispersas aos grandes heróis de uma época anterior. Através dessas referências, tanto os estudantes como os profissionais sentem-se participando de uma longa tradição histórica. Contudo, a tradição derivada dos manuais, da qual os cientistas sentem-se participantes, jamais existiu. Por razões ao mesmo tempo óbvias e muito funcionais, os manuais científicos (e muitas das antigas histórias da ciência) referem-se somente àquelas partes do trabalho de antigos cientistas que podem facilmente ser consideradas como contribuições ao enunciado e à solução dos problemas apresentados pelo paradigma dos manuais. Em parte por seleção e em parte por distorção, os cientistas de épocas anteriores são implicitamente representados como se tivessem trabalhado sobre o mesmo conjunto de problemas fixos e utilizado o mesmo conjunto de cânones estáveis que a revolução mais recente em teoria e metodologia científica fez parecer científicos. Não é de admirar que os manuais e as tradições históricas neles implícitas tenham que ser reescritas após cada revolução científica. Do mesmo modo, não é de admirar que, ao ser reescrita, a ciência apareça, mais uma vez, como sendo basicamente cumulativa.

Por certo os cientistas não são o único grupo que tende a ver o passado de sua disciplina como um desenvolvimento linear em direção ao ponto de vista privilegiado do presente. A tentação de escrever a histó­ria passada a partir do presente é generalizada e perene. Mas os cientistas são mais afetados pela tentação de reescrever a história, em parte porque os resultados da pesquisa científica não revelam nenhuma dependência óbvia com relação ao contexto histórico da pesquisa e em parte porque, exceto durante as crises e as revoluções, a posição contemporânea do cientista parece muito segura. Multiplicar os detalhes históricos sobre o presente ou o passado da ciência, ou aumentar a importância dos detalhes históricos apresentados, não conseguiria mais do que conceder um status artificial à idiossincrasia, ao erro e à confusão humanos. Por que honrar o que os melhores e mais persistentes esforços da ciência tornaram possível descartar? A depreciação dos fatos históricos está profunda e provavelmente funcionalmente enraizada na ideologia da profissão científica, a mesma profissão que atribui o mais alto valor possível a detalhes fatuais de outras espécies. Whitehead captou o espírito a-histórico da comunidade científica ao escrever: “A ciência que hesita em esquecer seus fundadores está perdida”. Contudo, Whitehead não estava absolutamente correto, visto que as ciências, como outros empreendimentos profissionais, necessitam de seus heróis e reverenciam suas memórias. Felizmente, em vez de esquecer esses heróis, os cientistas têm esquecido ou revisado somente seus trabalhos.

Disso resulta uma tendência persistente a fazer com que a História da Ciência pareça linear e cumulativa, tendência que chega a afetar mesmo os cientistas que examinam retrospectivamente suas próprias pesquisas. Por exemplo, os três informes incompatíveis de Dalton sobre o desenvolvimento do seu atomismo químico dão a impressão de que ele estava interessado, desde muito cedo, precisamente naqueles problemas químicos referentes às proporções de combinação, cuja posterior solução o tornaria famoso. Na realidade, esses problemas parecem ter-lhe ocorrido juntamente com suas soluções e, mesmo assim, não antes que seu próprio trabalho criador estivesse quase totalmente completado. O que todos os relatos de Dalton omitem são os efeitos revolucionários resultantes da aplicação da Química a um conjunto de questões e conceitos anteriormente restritos à Física e à Meteorologia. Foi isto que Dalton fez; o resultado foi uma reorientação no modo de conceber a Química, reorientação que ensinou aos químicos como colocar novas questões e retirar conclusões novas de dados antigos.

Um outro exemplo: Newton escreveu que Galileu descobrira que a força constante da gravidade produz um movimento proporcional ao quadrado do tempo. De fato, o teorema cinemático de Galileu realmente toma essa forma quando inserido na matriz dos próprios conceitos dinâmicos de Newton. Mas Galileu não afirmou nada desse gênero. Sua discussão a respeito da queda dos corpos raramente alude a forças e muito menos a uma força gravitacional uniforme que causasse a queda dos corpos. Ao atribuir a Galileu a resposta a uma questão que os paradigmas de Galileu não permitiam colocar, o relato de Newton esconde o efeito de uma pequena mas revolucionária reformulação nas questões que os cientistas colocavam a respeito do movimento, bem como nas respostas que estavam dispostos a admitir. Mas é justamente essa mudança na formulação de perguntas e respostas que dá conta, bem mais do que as novas descobertas empíricas, da transição da Dinâmica aristotélica para a de Galileu e da de Galileu para a de Newton. Ao disfarçar essas mudanças, a tendência dos manuais a tornarem linear o desenvolvimento da ciência acaba escondendo o processo que está na raiz dos episódios mais significativos do desenvolvimento científico.

Os exemplos precedentes colocam em evidência, cada um no contexto de uma revolução determinada, os começos de uma reconstrução histórica que é regularmente completada por textos científicos pós-revolucionários. Mas nessa reconstrução está envolvido algo mais do que a multiplicação de distorções históricas semelhantes às ilustradas acima. Essas distorções tornam as revoluções invisíveis; a disposição do material que ainda permanece visível nos textos científicos implica um processo que, se realmente existisse, negaria toda e qualquer função às revoluções. Os manuais, por visarem familiarizar rapidamente o estudante com o que a comunidade científica contemporânea julga conhecer, examinam as várias experiências, conceitos, leis e teorias da ciência normal em vigor tão isolada e sucessivamente quanto possível. Enquanto pedagogia, essa técnica de apresentação está acima de qualquer crítica. Mas, quando combinada com a atmosfera geralmente a-histórica dos escritos científicos e com as distorções ocasionais ou sistemáticas examinadas acima, existem grandes possibilidades de que essa técnica cause a seguinte impressão: a ciência alcançou seu estado atual através de uma série de descobertas e invenções individuais, as quais, uma vez reunidas, constituem a coleção moderna dos conhecimentos técnicos. O manual sugere que os cientistas procuram realizar, desde os primeiros empreendimentos científicos, os objetivos particulares presentes nos paradigmas atuais. Num processo frequentemente comparado à adição de tijolos a uma construção, os cientistas juntaram um a um os fatos, conceitos, leis ou teorias ao caudal de informações proporcionado pelo manual científico contemporâneo.

Mas não é assim que uma ciência se desenvolve. Muitos dos quebra-cabeças da ciência normal contemporânea passaram a existir somente depois da revolução científica mais recente. Poucos deles remontam ao início histórico da disciplina na qual aparecem atualmente. As gerações anteriores ocuparam-se com seus próprios problemas, com seus próprios instrumentos e cânones de resolução. E não foram apenas os problemas que mudaram, mas toda a rede de fatos e teorias que o paradigma dos manuais adapta à natureza.

[...] Mais do que qualquer outro aspecto da ciência, esta forma pedagógica determinou nossa imagem a respeito da natureza da ciência e do papel desempenhado pela descoberta e pela invenção no seu progresso.

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