King's College London
A filosofia da ciência
pode ser dividida em duas grandes áreas: a epistemologia da ciência e a
metafísica da ciência. A epistemologia da ciência discute a justificação e a
objetividade do conhecimento científico [Parte I, ver aqui]. A metafísica da ciência discute
aspectos filosoficamente problemáticos da realidade desvendada pela ciência
[Parte II, que segue abaixo].
2. Metafísica da ciência
Causalidade
Voltando-nos agora para
a metafísica da ciência, uma questão central é a análise da causalidade.
Segundo David Hume, a
causalidade, enquanto relação objetiva, é apenas uma questão de associação
constante: um acontecimento causa outro se, e só se, os acontecimentos do
primeiro tipo estiverem constantemente associados aos acontecimentos do segundo
tipo. Esta análise gera, contudo, alguns problemas. Primeiro, há a questão da
distinção entre genuínas leis causais da natureza e associações acidentalmente
verdadeiras: ser um parafuso da minha mesa pode muito bem estar constantemente
associado ao fato de ser feito de cobre, sem que seja verdade que esses
parafusos sejam feitos de cobre porque fazem parte da minha
mesa. Em segundo lugar, há um problema quanto à direção da causalidade: como
distinguimos nós as causas dos efeitos, dado que uma associação constante de
acontecimentos do tipo A com acontecimentos do tipo B implica imediatamente a
associação constante de acontecimentos do tipo B com acontecimentos do tipo A?
E, em terceiro lugar, há a questão da causalidade probabilística: será que as
causas têm de determinar os seus efeitos, ou é suficiente que elas estejam
probabilisticamente (e não “constantemente”) associadas a eles?
Explicação
Muitos filósofos da ciência
deste século [séc. XX] preferiram falar acerca de explicação em vez de causalidade. De acordo com o modelo de cobertura por leis,
desenvolvido por Hempel,
um acontecimento particular é explicado se a sua ocorrência puder ser deduzida
da ocorrência de outros acontecimentos particulares com a ajuda de uma ou mais
leis naturais. Mas isto não é muito diferente da análise humeana da
causalidade, e como é de esperar enfrenta essencialmente os mesmos problemas.
Como distinguimos leis de acidentes? Será que às vezes não somos capazes de
deduzir “para trás” — como quando deduzimos a altura do mastro a partir do
comprimento da sua sombra — apesar de não querermos dizer que o comprimento da
sombra explica a altura do mastro? E não haverá casos em que somos capazes de
explicar um acontecimento — o sr. X ter desenvolvido um cancro, por exemplo —
por meio de outro — o facto de ele fumar sessenta cigarros por dia — apesar de
não sermos capazes de deduzir o primeiro do segundo, uma vez que a relação
entre eles é apenas probabilística?
Leis x acidentes
Sobre a questão de
distinguir leis de acidentes, há duas estratégias possíveis. A primeira
permanece fiel ao ponto de vista humeano de que as proposições legiformes não
afirmam nada mais do que a associação constante e tenta então explicar por que
razão algumas asserções que exprimem associações constantes — as legiformes —
são mais importantes do que as outras — as acidentais. A versão mais conhecida
desta estratégia humeana, proposta originalmente por F. P. Ramsey e depois reavivada por David Lewis, argumenta que as
leis são aquelas generalizações verdadeiras que podem ser encaixadas numa
sistematização ideal do conhecimento; ou, na formulação de Ramsey, as leis são
“uma consequência daquelas proposições que tomaríamos como axiomas se
soubéssemos tudo e o organizássemos do modo mais simples possível num sistema
dedutivo”. A estratégia não-humeana alternativa, cujo defensor mais proeminente
é D. M. Armstrong, rejeita
o pressuposto de que as leis não implicam mais do que associações constantes,
postulando em vez disso uma relação de “necessitação” que se verifica entre os
tipos de acontecimentos que estão relacionados de modo legiforme, mas não entre
aqueles que apenas estão associados acidentalmente.
A direção da causalidade
Quanto à questão da
direção da causalidade, o próprio Hume apenas disse que, de entre dois
acontecimentos constantemente associados, o acontecimento anterior era a causa
e o posterior o efeito. Mas há algumas objeções a este uso da assimetria
anterior-posterior para analisar a assimetria causa-efeito. Para começar, é
pelo menos concebível que haja causas que sejam simultâneas com os seus
efeitos, ou mesmo causas que sejam posteriores aos seus efeitos. Além disso,
parece haver boas razões para querer fazer a análise em sentido contrário,
usando a direção da causalidade para analisar a direção do tempo. Se fizermos
isto, iremos querer uma explicação da direção da causalidade que seja
temporalmente independente? Têm sido propostas algumas explicações desse tipo.
David Lewis argumenta que a assimetria da causalidade deriva da “assimetria da
sobredeterminação”: ao passo que a sobredeterminação dos efeitos pelas causas é
muito rara, é perfeitamente normal as causas serem “sobredeterminadas” por um
grande número de encadeamentos de efeitos independentes, cada um dos quais é
condição suficiente para a causa anterior. Outros autores apelaram para uma
assimetria probabilística relacionada para explicar a assimetria causal,
fazendo notar que as diferentes causas de um dado efeito comum são em geral
probabilisticamente independentes umas das outras, mas que os diferentes
efeitos de uma causa comum estão normalmente correlacionados
probabilisticamente.
Determinismo
O advento da mecânica
quântica (e em particular a afirmação empírica da desigualdade de Bell)
persuadiu a maioria dos filósofos da ciência da falsidade do determinismo. De
acordo com isto, procuraram desenvolver modelos de explicação causal segundo os
quais as causas se limitam a tornar prováveis o seus efeitos, em vez de os
determinar. O primeiro destes modelos, influenciado pela análise de Carl Hempel
da explicação “indutivo-estatística” exigia que as causas conferissem aos seus
efeitos uma probabilidade alta. Contudo, embora fumar
inequivocamente cause o cancro, nunca o torna altamente provável. De modo que
os modelos mais recentes apenas exigem que as causas aumentem a
probabilidade dos seus efeitos, mesmo que apenas seja de um valor baixo para um
valor ligeiramente menos baixo. Os modelos de causalidade probabilística
precisam se precaver contra a possibilidade de as associações probabilísticas
entre acontecimentos poderem ser espúrias em vez de genuinamente causais, como
a associação entre o ponteiro de um barômetro baixar e a chuva subsequente. É
uma questão em aberto a de saber se tais associações espúrias podem ser
rejeitadas por meios puramente probabilísticos, ou se é necessário
introduzir-se critérios não probabilísticos.
Probabilidade
A noção de probabilidade
tem interesse filosófico independentemente da sua relação com a causalidade. Há
várias maneiras diferentes de interpretar o cálculo matemático das
probabilidades. As teorias subjetivas da probabilidade, que se desenvolveram a
partir da teoria lógica da probabilidade de J. M. Keynes, encaram as
probabilidades como graus subjetivos de crença. Esta é a interpretação adotada
pelos bayesianos partidários da teoria da confirmação. Contudo, a maior parte
dos filósofos da probabilidade argumentam que precisamos de uma interpretação
objetiva da probabilidade para além desta análise subjetiva. Segundo a teoria
da frequência de Richard von Mises, a probabilidade de um dado tipo de
resultado é o limite da frequência relativa com que ele ocorre em sequências
cada vez mais longas extraídas de uma qualquer “classe de referência” infinita.
Uma dificuldade que se põe à teoria da frequência é a de que ela atribuirá uma
probabilidade diferente a um dado resultado isolado quando esse resultado for
considerado como membro de diferentes classes de referência. Para cancelar esta
consequência, Karl Popper propôs que as probabilidades fossem encaradas como
propensões de cenários experimentais específicos, no sentido em que só as
frequências de classes de referência geradas por repetições do mesmo cenário
experimental deveriam contar como probabilidades genuínas. As versões
posteriores desta teoria das propensões abandonam o apelo a classes de
referência infinitas, tomando simplesmente a probabilidade como uma
característica quantitativa de cenários específicos, que é exibida pelas
frequências nas repetições desses cenários, mas que não pode ser definida em
termos de frequências.
A interpretação
filosófica da probabilidade objetiva está intimamente relacionada com a nossa
compreensão da mecânica quântica moderna. A interpretação da mecânica quântica,
porém, é ainda um problema em aberto na filosofia da física. Tomada à letra, a
mecânica quântica diz que, quando os sistemas físicos são medidos, adquirem
subitamente, para parâmetros observáveis, valores definidos que não tinham
antes. A teoria especifica as probabilidades diferentes desses valores, mas não
pode prever sem margem para dúvida quais serão observados. A reação de Albert
Einstein foi a de que a mecânica quântica tinha de ser incompleta, e que uma
teoria futura acabaria por encontrar as “variáveis ocultas” que efetivamente
determinam os resultados observados. Contudo, a possibilidade de uma teoria
comprometida com tais variáveis ocultas foi concludentemente desacreditada:
John Bell mostrou que qualquer teoria desse gênero conteria previsões
diferentes das da mecânica quântica, e há resultados experimentais que afirmam
essas previsões. Permanece, então, o problema de explicar as medições
quânticas. Medições são, afinal de contas, processos físicos. Contudo, a
mecânica quântica não explica a razão de por que as medições determinam valores
definidos observáveis; apenas o dá “de barato”. É provável que uma compreensão
satisfatória das medições quânticas tenha de aguardar uma interpretação
radicalmente nova da teoria.
Explicação teleológica
Outro aspecto metafísico
da filosofia da ciência é a questão da explicação teleológica. Esta é
basicamente uma questão de filosofia da biologia, visto que é no domínio da
biologia que encontramos os exemplos paradigmáticos da explicação teleológica,
como quando dizemos que a clorofila está presente nas plantas com o fim
de facilitar a fotossíntese. Explicações como esta são filosoficamente
interessantes porque explicam as causas pelos efeitos, e parecem assim ir
contra o modelo habitual que consiste em explicar os efeitos pelas causas. Carl
Hempel argumentou que tais explicações são apenas uma variante da explicação
pelo modelo de cobertura por leis em que o fato usado para explicar — a
fotossíntese — ocorre num momento posterior ao do facto explicado — a
clorofila. Há, porém, contraexemplos a esta proposta e as tentativas de
restringi-la impondo a condição de que os elementos envolvidos façam parte de
um sistema autorregulador revelaram-se problemáticas. A maioria dos filósofos
da ciência favoreceria agora uma abordagem diferente, de acordo com a qual as
explicações teleológicas da biologia são uma forma de explicação causal
disfarçada, nas quais é feita referência implícita a uma hipotética história da
seleção natural durante a qual o elemento em questão — a clorofila — foi
favorecido porque produziu o efeito relevante — a fotossíntese. Alguns
filósofos interrogar-se-iam se estas explicações “para trás” merecem de fato
ser chamadas “teleológicas”, visto que não explicam de fato o presente por meio
do futuro, mas antes por meio de histórias anteriores de seleção; esta questão,
no entanto, é essencialmente terminológica.
Reducionismo
Ciências particulares
como a biologia, a química, a geologia, a meteorologia e assim por diante
levantam a questão do reducionismo. Diz-se que uma ciência pode ser “reduzida”
a outra se as suas categorias puderem ser definidas em termos das categorias da
segunda, e as suas leis explicadas também em termos das leis da segunda. Os
reducionistas argumentam que as ciências formam uma hierarquia na qual as que
estão num nível mais alto podem ser reduzidas às que estão num nível mais
baixo: assim, a biologia pode ser reduzida à fisiologia, a fisiologia à
química, e por fim a química à física.
A questão do
reducionismo tanto pode ser vista histórica como metafisicamente. A questão
histórica é a de saber se a ciência progride tipicamente pela redução das
teorias anteriores às que se lhes seguem. A questão metafísica é a de saber se
as diferentes áreas da ciência descrevem realidades diferentes, ou antes uma
mesma realidade física descrita com diferentes níveis de pormenor. Embora
muitas vezes sejam discutidas simultaneamente, trata-se de duas questões
diferentes. Tomado como uma tese geral, o reducionismo histórico é falso, por
razões relacionadas com a “meta-indução pessimista” discutida acima: embora
haja alguns episódios históricos em que velhas teorias científicas foram
reduzidas a novas, há outros tantos em que as novas mostraram que as velhas
eram falsas, e em que portanto as segundas foram eliminadas e não reduzidas.
Isto não significa, todavia, que o reducionismo metafísico seja falso. Mesmo
que a ciência proceda em direção à verdade total de modo errático, pode haver
razões gerais para se esperar que esta verdade total, quando finalmente for
alcançada, se reduza à verdade física.
Um argumento possível
desse gênero advém da interação causal entre os fenômenos discutidos nas
ciências especiais e os fenômenos físicos. Assim, os fenômenos biológicos,
geológicos e meteorológicos têm todos efeitos físicos; e isto implicaria
aparentemente que eles fossem compostos por elementos físicos. É questionável,
porém, que isto seja suficiente para estabelecer o reducionismo de larga
escala, em vez da tese da identidade-espécime segundo a qual cada acontecimento
específico de tipo especial é idêntico a algum acontecimento físico específico.
Podemos aceitar a identidade-espécime, e mesmo assim rejeitar a identificação
entre tipos especiais e tipos físicos. Se o fizermos, rejeitamos também a tese
reducionista de que todas as leis especiais podem ser explicadas pelas leis
físicas. Em vez disso, defenderemos que há leis especiais sui generis,
padrões que abrangem tipos especiais que variam na sua constituição física, e
que portanto não podem ser explicados apenas por leis físicas.
Bibliografia
· I. Hacking, Representing and
Intervening (Oxford, 1983)
· C. Hempel, Aspects of
Scientific Explanation (Nova Iorque, 1965)
· T. S. Kuhn, The Structure of
Scientific Revolutions (Chicago, 1962)
· E. Nagel, The Structure of
Science (Nova Iorque, 1961)
· K. Popper, The Logic of
Scientific Discovery (Londres, 1950)
· B. Van Fraassen, The
Scientific Image (Oxford, 1980)
O texto acima faz parte
do Compêndio de Filosofia de Oxford (Oxford Companion to Philosophy).
Sua tradução para o português de Portugal foi feita por Pedro Santos e pode ser
encontrada por aqui. Utilizamos essa tradução,
mas fizemos algumas modificações: além de adaptá-la para o português do Brasil,
incluímos os subtítulos e negritos, e optamos por dividi-la em duas postagens.
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