David Papineau
King's College London
A filosofia da ciência
pode ser dividida em duas grandes áreas: a epistemologia da ciência e a
metafísica da ciência. A epistemologia da ciência discute a justificação e a
objetividade do conhecimento científico. A metafísica da ciência discute
aspectos filosoficamente problemáticos da realidade desvendada pela ciência.
Parte
I. Epistemologia da ciência
As questões acerca da
epistemologia da ciência são em parte as mesmas que as questões acerca do
conhecimento em geral. Um tema central é o problema
da indução. A indução é o processo que nos leva da observação de casos
particulares a conclusões universais como “Todos os corpos caem com uma
aceleração constante”. O problema é que estes argumentos não são logicamente
válidos. A verdade das premissas particulares não garante a verdade da
conclusão universal. Que todos os corpos observados até agora tenham caído com
uma aceleração constante não garante que todos os corpos observados no futuro o
façam também.
Uma solução popular para
o problema da indução deve-se a Karl
Popper. Do ponto de vista de Popper, a ciência, para começar, não se baseia
na indução. Em vez disso, formula hipóteses, numa atitude conjectural, e depois
esforça-se por refutá-las. Popper argumenta que, enquanto tais hipóteses forem
falsificáveis (no sentido de haver observações possíveis que as infirmariam), a
objetividade da ciência está assegurada.
Os críticos do “falsificacionismo” de Popper queixam-se de que ele
não oferece qualquer explicação para a legitimidade das nossas crenças na
veracidade das teorias científicas (embora o faça para as crenças na sua
falsidade) e, logo, de que ele não consegue resolver o problema da indução. A teoria bayesiana da confirmação proporciona uma solução alternativa
para esse problema. Os bayesianos argumentam que as nossas crenças se organizam
por graus, e que esses graus de crença obedecem, se se tratar de crenças
racionais, ao cálculo de probabilidades. Argumentam então que o teorema de
Bayes implica uma estratégia racional para atualizar os nossos graus de crença
como resposta a dados novos. Em relação ao problema da indução, esta estratégia
implica que o nosso grau de crença numa teoria científica seja aumentado por
observações que são prováveis dada a teoria, mas improváveis de outro modo.
Outro problema central
na epistemologia da ciência é a possibilidade do conhecimento de inobserváveis
como os vírus e os elétrons. Os instrumentalistas negam que as teorias científicas sobre
inobserváveis possam ser aceites como descrições verdadeiras de um mundo
inobservável. Em vez disso, defendem que tais teorias são, no máximo,
instrumentos úteis para gerar previsões observáveis. A eles opõem-se aqueles
que adotam o ponto de vista realista de que a ciência pode descobrir, e de fato
descobre, verdades sobre inobserváveis.
Alguns instrumentalistas
defendem o seu ponto de vista apelando para a subdeterminação
das teorias pelos dados. De acordo com esta tese, qualquer conjunto de
dados observacionais será sempre compatível com várias teorias mutuamente
incompatíveis acerca de inobserváveis, e portanto não pode justificar a escolha
de nenhuma delas em particular. Esta ideia pode, por sua vez, ser defendida
apelando para a “tese Duhem-Quine”, que diz que, em face de dados aparentemente
recalcitrantes, se pode sempre manter uma proposição teórica por meio de
ajustamentos em hipóteses auxiliares que sejam parte integrante de toda a
teoria. Uma via alternativa para a subdeterminação das teorias pelos dados
consiste em observar que, dada qualquer teoria que consiga acomodar os dados observacionais,
podemos sempre “cozinhar” uma teoria alternativa que explica os mesmos fatos
observacionais.
A doutrina do instrumentalismo assenta na distinção entre o que é
observável e o que não é. Esta distinção não está isenta de problemas. Alguns
filósofos da ciência, os mais notórios dos quais são T.S. Kuhn e Paul
Feyerabend, argumentam que a observação está “contaminada pela teoria”, com
o que pretendem dizer que as nossas teorias anteriores influenciam as
observações que fazemos e a importância que lhes atribuímos. Daqui inferem que
muitas vezes teorias científicas diferentes são “incomensuráveis”, no sentido
em que não há nenhum conjunto de proposições observacionais teoricamente
neutras que possa fazer decidir entre elas. Um corolário disto, para Kuhn e
Feyerabend, é que a verdade científica objetiva não é alcançável mesmo ao nível
dos observáveis, quanto mais ao nível dos inobserváveis. Kuhn argumenta que a
história da ciência apresenta uma sucessão de “paradigmas”, conjuntos de
pressupostos e exemplos representativos que condicionam o modo como os
cientistas resolvem problemas e compreendem os dados, e que apenas são
substituídos, em “revoluções científicas” ocasionais, quando os cientistas
mudam de uma crença teórica para outra.
Nem todos os epistemólogos
da ciência aceitam o relativismo epistemológico de Kuhn* e Feyerabend. Muitos deles diriam que mesmo que a fronteira entre os
observáveis e os inobserváveis não seja nítida nem imutável, as proposições
observacionais básicas podem ainda proporcionar um teste imparcial para as
previsões de uma teoria. E outros diriam que, mesmo que as teorias sejam sempre
subdeterminadas — no sentido em que qualquer conjunto de dados será
sempre compatível com várias teorias diferentes — daí não se
segue que não possamos escolher racionalmente entre essas teorias, visto que
algumas dessas teorias podem estar mais bem sustentadas por esses dados do que
outras.
Há, porém, outro
argumento poderoso contra o ponto de vista realista de que as teorias
científicas são descrições verdadeiras de uma realidade independente. Reside na
versão do passado e obsoleta de tais teorias. Muitas teorias científicas do
passado, desde a astronomia ptolomaica até à teoria flogística da combustão, revelaram-se
falsas. Assim, parece que deveríamos inferir, por meio de uma “meta-indução
pessimista”, que, uma vez que as teorias científicas do passado se
revelaram normalmente falsas, as do presente e as do futuro serão também
provavelmente falsas.
Em resposta a isto,
pode-se argumentar que até mesmo as teorias do passado falsas contêm uma grande
componente de verdade, e que portanto se pode esperar que as teorias do
presente e do futuro se aproximem da verdade. Além disso,
alguns filósofos detectam um padrão de convergência, argumentando que as
teorias científicas que se sucedem a outras aproximam-se cada vez mais da
verdade. Estas teses pressupõem, contudo, uma noção de “aproximação à verdade”,
ou verossimilhança. Veio a revelar-se surpreendentemente difícil atribuir um
conteúdo bem determinado a esta noção. As primeiras tentativas para a definir,
por parte de Popper e outros, revelaram-se incoerentes, e não é óbvio que uma
elucidação satisfatória dessa noção seja possível.
Nos anos 80, alguns
filósofos adotaram uma abordagem
naturalista em epistemologia da ciência. Em vez de tentarem identificar
regras a priori do método científico, inspiraram-se na
história da ciência e noutras disciplinas a posteriori para
mostrar que estratégias metodológicas constituem de fato meios eficazes para se
atingirem objetivos científicos. É possível combinar esta abordagem naturalista
com o ponto de vista realista de que o objetivo da formulação de teorias
científicas é a descoberta da verdade. Todavia, à luz dos argumentos mencionados
acima, muitos filósofos da ciência naturalistas rejeitam a ideia de que a
verdade seja um objetivo sensato para a ciência, investigando em vez disso
estratégias para se atingirem objetivos teóricos como a simplicidade, o sucesso
das previsões e a proficuidade heurística.
* Nota do Adaga: alguns filósofos costumam acusar Thomas Kuhn de
relativista, como o fez o autor do presente texto. Gostaríamos de destacar que
essa é uma das interpretações possíveis de Kuhn, e que não consideramo-la a
mais adequada. Para uma defesa de Kuhn, ver, por exemplo, Objectivity, value judgment and theory
choice (Kuhn, 1977). Esse artigo constitui um capítulo do livro The
Essencial Tension, obtendo uma tradução para o português em 2011 pela
editora unesp.
O texto acima faz parte do Compêndio de Filosofia de Oxford (Oxford
Companion to Philosophy). Sua tradução para o português de Portugal foi
feita por Pedro Santos e pode ser encontrada por aqui. Baseamo-nos na tradução
de Santos mas fizemos algumas modificações: além de adaptar o texto para o
português do Brasil, incluímos negritos (e subtítulos na parte II) e optamos
por dividi-lo em duas postagens. A metafísica da ciência será abordada na
próxima postagem.
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