terça-feira, 20 de outubro de 2015

O que é a filosofia da ciência? [Parte I de II]



David Papineau
King's College London

A filosofia da ciência pode ser dividida em duas grandes áreas: a epistemologia da ciência e a metafísica da ciência. A epistemologia da ciência discute a justificação e a objetividade do conhecimento científico. A metafísica da ciência discute aspectos filosoficamente problemáticos da realidade desvendada pela ciência. 

Parte I. Epistemologia da ciência
As questões acerca da epistemologia da ciência são em parte as mesmas que as questões acerca do conhecimento em geral. Um tema central é o problema da indução. A indução é o processo que nos leva da observação de casos particulares a conclusões universais como “Todos os corpos caem com uma aceleração constante”. O problema é que estes argumentos não são logicamente válidos. A verdade das premissas particulares não garante a verdade da conclusão universal. Que todos os corpos observados até agora tenham caído com uma aceleração constante não garante que todos os corpos observados no futuro o façam também.

Uma solução popular para o problema da indução deve-se a Karl Popper. Do ponto de vista de Popper, a ciência, para começar, não se baseia na indução. Em vez disso, formula hipóteses, numa atitude conjectural, e depois esforça-se por refutá-las. Popper argumenta que, enquanto tais hipóteses forem falsificáveis (no sentido de haver observações possíveis que as infirmariam), a objetividade da ciência está assegurada.

Os críticos do “falsificacionismo” de Popper queixam-se de que ele não oferece qualquer explicação para a legitimidade das nossas crenças na veracidade das teorias científicas (embora o faça para as crenças na sua falsidade) e, logo, de que ele não consegue resolver o problema da indução. A teoria bayesiana da confirmação proporciona uma solução alternativa para esse problema. Os bayesianos argumentam que as nossas crenças se organizam por graus, e que esses graus de crença obedecem, se se tratar de crenças racionais, ao cálculo de probabilidades. Argumentam então que o teorema de Bayes implica uma estratégia racional para atualizar os nossos graus de crença como resposta a dados novos. Em relação ao problema da indução, esta estratégia implica que o nosso grau de crença numa teoria científica seja aumentado por observações que são prováveis dada a teoria, mas improváveis de outro modo.

Outro problema central na epistemologia da ciência é a possibilidade do conhecimento de inobserváveis como os vírus e os elétrons. Os instrumentalistas negam que as teorias científicas sobre inobserváveis possam ser aceites como descrições verdadeiras de um mundo inobservável. Em vez disso, defendem que tais teorias são, no máximo, instrumentos úteis para gerar previsões observáveis. A eles opõem-se aqueles que adotam o ponto de vista realista de que a ciência pode descobrir, e de fato descobre, verdades sobre inobserváveis.

Alguns instrumentalistas defendem o seu ponto de vista apelando para a subdeterminação das teorias pelos dados. De acordo com esta tese, qualquer conjunto de dados observacionais será sempre compatível com várias teorias mutuamente incompatíveis acerca de inobserváveis, e portanto não pode justificar a escolha de nenhuma delas em particular. Esta ideia pode, por sua vez, ser defendida apelando para a “tese Duhem-Quine”, que diz que, em face de dados aparentemente recalcitrantes, se pode sempre manter uma proposição teórica por meio de ajustamentos em hipóteses auxiliares que sejam parte integrante de toda a teoria. Uma via alternativa para a subdeterminação das teorias pelos dados consiste em observar que, dada qualquer teoria que consiga acomodar os dados observacionais, podemos sempre “cozinhar” uma teoria alternativa que explica os mesmos fatos observacionais.

A doutrina do instrumentalismo assenta na distinção entre o que é observável e o que não é. Esta distinção não está isenta de problemas. Alguns filósofos da ciência, os mais notórios dos quais são T.S. Kuhn e Paul Feyerabend, argumentam que a observação está “contaminada pela teoria”, com o que pretendem dizer que as nossas teorias anteriores influenciam as observações que fazemos e a importância que lhes atribuímos. Daqui inferem que muitas vezes teorias científicas diferentes são “incomensuráveis”, no sentido em que não há nenhum conjunto de proposições observacionais teoricamente neutras que possa fazer decidir entre elas. Um corolário disto, para Kuhn e Feyerabend, é que a verdade científica objetiva não é alcançável mesmo ao nível dos observáveis, quanto mais ao nível dos inobserváveis. Kuhn argumenta que a história da ciência apresenta uma sucessão de “paradigmas”, conjuntos de pressupostos e exemplos representativos que condicionam o modo como os cientistas resolvem problemas e compreendem os dados, e que apenas são substituídos, em “revoluções científicas” ocasionais, quando os cientistas mudam de uma crença teórica para outra.

Nem todos os epistemólogos da ciência aceitam o relativismo epistemológico de Kuhn* e Feyerabend. Muitos deles diriam que mesmo que a fronteira entre os observáveis e os inobserváveis não seja nítida nem imutável, as proposições observacionais básicas podem ainda proporcionar um teste imparcial para as previsões de uma teoria. E outros diriam que, mesmo que as teorias sejam sempre subdeterminadas — no sentido em que qualquer conjunto de dados será sempre compatível com várias teorias diferentes — daí não se segue que não possamos escolher racionalmente entre essas teorias, visto que algumas dessas teorias podem estar mais bem sustentadas por esses dados do que outras.

Há, porém, outro argumento poderoso contra o ponto de vista realista de que as teorias científicas são descrições verdadeiras de uma realidade independente. Reside na versão do passado e obsoleta de tais teorias. Muitas teorias científicas do passado, desde a astronomia ptolomaica até à teoria flogística da combustão, revelaram-se falsas. Assim, parece que deveríamos inferir, por meio de uma “meta-indução pessimista”, que, uma vez que as teorias científicas do passado se revelaram normalmente falsas, as do presente e as do futuro serão também provavelmente falsas.

Em resposta a isto, pode-se argumentar que até mesmo as teorias do passado falsas contêm uma grande componente de verdade, e que portanto se pode esperar que as teorias do presente e do futuro se aproximem da verdade. Além disso, alguns filósofos detectam um padrão de convergência, argumentando que as teorias científicas que se sucedem a outras aproximam-se cada vez mais da verdade. Estas teses pressupõem, contudo, uma noção de “aproximação à verdade”, ou verossimilhança. Veio a revelar-se surpreendentemente difícil atribuir um conteúdo bem determinado a esta noção. As primeiras tentativas para a definir, por parte de Popper e outros, revelaram-se incoerentes, e não é óbvio que uma elucidação satisfatória dessa noção seja possível.

Nos anos 80, alguns filósofos adotaram uma abordagem naturalista em epistemologia da ciência. Em vez de tentarem identificar regras a priori do método científico, inspiraram-se na história da ciência e noutras disciplinas a posteriori para mostrar que estratégias metodológicas constituem de fato meios eficazes para se atingirem objetivos científicos. É possível combinar esta abordagem naturalista com o ponto de vista realista de que o objetivo da formulação de teorias científicas é a descoberta da verdade. Todavia, à luz dos argumentos mencionados acima, muitos filósofos da ciência naturalistas rejeitam a ideia de que a verdade seja um objetivo sensato para a ciência, investigando em vez disso estratégias para se atingirem objetivos teóricos como a simplicidade, o sucesso das previsões e a proficuidade heurística.

* Nota do Adaga: alguns filósofos costumam acusar Thomas Kuhn de relativista, como o fez o autor do presente texto. Gostaríamos de destacar que essa é uma das interpretações possíveis de Kuhn, e que não consideramo-la a mais adequada. Para uma defesa de Kuhn, ver, por exemplo, Objectivity, value judgment and theory choice (Kuhn, 1977). Esse artigo constitui um capítulo do livro The Essencial Tension, obtendo uma tradução para o português em 2011 pela editora unesp.

O texto acima faz parte do Compêndio de Filosofia de Oxford (Oxford Companion to Philosophy). Sua tradução para o português de Portugal foi feita por Pedro Santos e pode ser encontrada por aqui. Baseamo-nos na tradução de Santos mas fizemos algumas modificações: além de adaptar o texto para o português do Brasil, incluímos negritos (e subtítulos na parte II) e optamos por dividi-lo em duas postagens. A metafísica da ciência será abordada na próxima postagem.

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