terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Os danos de se ignorar a natureza social da ciência

Em julho de 2017, a filósofa Sara Weaver publicou o artigo "The harms of ignoring the social nature of science" numa das mais importantes revistas de epistemologia e filosofia da ciência, a Synthese.

Resolvi traduzir livremente o seu resumo e palavras-chave, além de apresentar uma sistematização do artigo em forma de tópicos, de modo a ir além do simples resumo e possibilitar ao/à leitor(a) brasileiro(a) um contato mais próximo com o texto. Quem quiser ler o artigo original em inglês, é só baixá-lo com a ajuda dos russos (http://sci-hub.bz/ou http://sci-hub.la/). Não pretendo aqui fazer uma avaliação do artigo, mas apenas colocá-lo para leitura e possível debate.


OS DANOS DE SE IGNORAR A NATUREZA SOCIAL DA CIÊNCIA

Resumo
Neste artigo, argumento que os filósofos da ciência têm a obrigação de reconhecer e se engajar na natureza social das ciências que avaliam, se essas ciências são moralmente relevantes. Ciência moralmente relevante é ciência que possui risco de prejudicar humanos, não-humanos ou o meio ambiente. Meu argumento e a abordagem que desenvolvo são informados por uma análise da literatura da filosofia da biologia sobre a crítica da psicologia evolutiva (EP), o estudo da evolução da psicologia humana e do comportamento. A partir desta literatura, discutirei dois métodos diferentes de crítica científica. O primeiro eu chamo de abordagem de "detecção da verdade (truth-detectional)". Aqueles que adotam essa abordagem estão prioritariamente preocupados com a verdade das afirmações da EP, como verdade que pode ser determinada por evidências. O segundo eu chamo de abordagem de "dimensão social (socio-dimensional)". Aqueles que adotam essa abordagem falam sobre a produção e a verdade das afirmações da EP, mas dentro de um quadro social. Nessa abordagem, a legitimidade e a legitimidade percebida das afirmações da EP não são separadas dos processos institucionais e sociais e dos valores que levam à sua produção. Eu mostro que a abordagem de detecção da verdade arrisca prejudicar a sociedade e a filosofia da ciência, mas que a abordagem de dimensão social evita esses danos. Os filósofos da ciência, portanto, deveriam adotar uma abordagem de dimensão social para a avaliação da ciência moralmente relevante.

Palavras-chave: Ciência e valores. Filosofia da ciência socialmente relevante. Psicologia evolutiva. Filosofia feminista da ciência.

Segue abaixo uma tentativa de esboço do texto em forma de tópicos.

1 INTRODUÇÃO

- Filosofia da ciência socialmente relevante (socially relevant philosophy of science, SRPOS).

- A SRPOS tem potencial para gerar benefícios à sociedade, à ciência e à filosofia da ciência.

- Dois tipos de crítica da ciência: abordagem de detecção de verdade (truth-detectional approach) e abordagem de dimensão social (social-dimensional approach).

- Estudo de caso com críticas à psicologia evolutiva (EP), exemplificando os dois tipos de abordagem mencionados acima.

2 A ABORDAGEM DE DETECÇÃO DA VERDADE (THE TRUTH-DETECTIONAL APPROACH)

- A autora foca em três pontos que são base para a crítica à EP: (i) pesquisa evolutiva conduzida com padrões inferiores, (ii) com valores epistêmicos problemáticos e (iii) com implicações sociais perniciosas.

- Esses três pontos serão desenvolvidos com base nas críticas fornecidas por Buller (2005), Richardson (2007) e Gould (1997a, b).

2.1 Pesquisa evolutiva inferior: problema com teoria, métodos e análise de dados

- Teoria: Problema do adaptacionismo (privilegiar explicações de adaptação para o comportamento humano é muito limitado).

Primeiro, negligencia explicações concorrentes, e bastante bem sucedidas, das ciências sociais. Muitos comportamentos que os psicólogos evolutivos apontam como sendo adaptações tem sido explicados em termos de causas do desenvolvimento e sociais (causas que nem sempre podem ser rastreadas até o ambiente adaptativo do Pleistoceno).

Segundo, o foco indevido nas explicações por adaptação bloqueia a pesquisa em outros mecanismos de evolução. Aqui Gould destaca a importância dos “spandrels”. Muitos dos comportamentos que os psicólogos evolutivos apontam como adaptações podem de fato ser “spandrels”.

- Métodos: Engenharia reversa. Evidências extras (independentes e diretamente históricas) são necessárias para complementar esse método. No entanto, são ignoradas por psicólogos evolutivos.

- Análise de dados: Exemplos em que os psicólogos evolutivos deixam de registrar complicações relevantes ou contradições em seus dados e sobre-generalizam suas conclusões.

2.2 Problemas com valores epistêmicos: ênfase exagerada na simplicidade e no poder explicativo do design.

- valores cognitivos ou epistêmicos são aqueles valores em uma ciência que são conducentes à verdade.

Simplicidade

- Gould (1997a) critica o entendimento altamente simplista dos psicólogos evolutivos em relação à teoria evolutiva.

- Simplicidade de teoria tem sido considerada epistemicamente valorosa por diferentes razões.

- A crítica de Gould para a simplicidade extrema nas explicações da EP tem como base o adaptacionismo.

Design

- Buller (2005) argumenta que o valor que os psicólogos evolutivos colocam em descobrir e explicar o design está ultrapassado.

- Ele cita Godfrey-Smith (1999) que se refere à ênfase que a EP dá à adaptação como um “vestígio teórico” do argumento da teologia natural do design.

- Buller dirá que “não há nada na natureza das coisas que diz que deveríamos explicar o design complexo como sendo mais importante do que”, por exemplo, evolução não adaptativa, extinção, ou a diversidade de organismos.

- Então, para Buller, sobrevalorizar o design limita o que o psicólogo evolutivo pode saber sobre a natureza dos organismos.

2.3 Implicações sociais perniciosas

- Gould e Richardson sugerem aos leitores que muitas das afirmações perniciosas na EP podem ser rejeitadas, uma vez que não são apoiadas por evidência apropriada.

- Richardson utiliza o ponto normativo de Philip Kitcher (1985) de que quando as conseqüências negativas de aceitar alguma conclusão são grandes, e a conclusão é ela própria incerta, então devemos exigir padrões de evidência mais elevados antes de abraçá-la. (Richardson, 2007, p. 34)

- Se levarmos essa afirmação a sério, os padrões de evidência da EP devem ser no mínimo os mesmos da biologia evolutiva animal. Mas Richardson entende que os padrões da EP são inferiores e, assim, conclui que as implicações perniciosas da EP são infundadas.

- Gould compara a EP à psicanálise freudiana para mostrar que as duas possuem graves problemas epistêmicos e que, por isso, suas implicações perniciosas devem ser rejeitadas.

- Richardson e Gould mantém que a evidência e sua conexão com a verdade deveria ter a "palavra final". Nos dois casos, a razão para negar as implicações perniciosas provém de problemas epistêmicos (como inadequação empírica, sobre-simplificação, etc.).

- Em resumo, a análise dos trabalhos específicos de Buller, Gould e Richardson mostram uma abordagem crítica à EP que a autora chama “abordagem de detecção de verdade” (truth-detectional approach).

- O que conecta essas três categorias de críticas (2.1, 2.2 e 2.3) é uma preocupação com a verdade das afirmações da EP, uma vez que pode ser asserida pela evidência que os psicólogos evolutivos oferecem ou podem oferecer.

3 A ABORDAGEM DE DIMENSÃO SOCIAL (THE SOCIAL-DIMENSIONAL APPROACH)

- Nessa seção, a autora esboçará a crítica da EP tal como realizada por Dupré (2001, 2012), Meynell (2012) e Travis (2003) que, nesses trabalhos específicos, fazem o que ela chama de abordagem de dimensão social.

- Três dimensões sociais da EP que são criticadas por esses autores na sua avaliação da EP: valores sociais (3.1), disseminação (3.2) e implicações sociais (3.3).

3.1 valores sociais

- Dupré, Meynell e Travis levam a sério os valores sociais que movem e guiam muito da pesquisa em EP.

- A autora toma valores sociais como valores que refletem o que é considerado socialmente importante (p.ex., bem estar econômico, poder e igualdade). Esses valores podem ou não ser conducentes à verdade.

- Descobrir/desencobrir valores sociais na ciência, e entender os vários papéis que eles exercem ao longo do processo científico, é importante por pelo menos três razões:

1. Descobrir valores sociais orientadores da pesquisa pode ajudar a explicar por que um cientista ou uma comunidade de cientistas pode estar conduzindo a ciência da maneira que faz. (Discutido neste tópico 3.1 “Valores sociais”)

2. Entender os valores sociais em uma ciência pode ajudar a explicar por que um dado programa de pesquisa é atrativo a outros – se aqueles valores são amplamente compartilhados, por exemplo. (Discutido em 3.2 “Disseminação”)

3. Falar em profundidade sobre como os valores em uma ciência podem levar a consequências sociais danosas pode ajudar a mostrar por que esta ciência não é valiosa para a sociedade e, assim, deveria ser ignorada. (Discutido em 3.3 “Implicações sociais”)

- A autora discutirá dois valores sociais com base em Dupré, Meynell e Travis. Ela os nomeia como “Ordem Social” e “Autoridade”.

- Abaixo segue uma definição destes dois valores e o modo como eles guiam a pesquisa em EP (trata-se da razão 1 acima).

Ordem Social.
Valorizar a Ordem Social é valorizar uma organização de pessoas dentro de papéis que são propícios a certo funcionamento da sociedade.

- A caracterização de Weaver da Ordem Social na EP é desenhada a partir das discussões de Dupré, Meynell e Travis acerca do essencialismo e do determismo biológico.

- Essas críticas traçam as maneiras pelas quais a pesquisa em EP possui valores perniciosos da Ordem Social quando definem, reificam e fundamentam as diferenças entre categorias sociais em causas biológicas.

Essencialismo

- Ser essencialista sobre categorias humanas (p. ex., sexo e classe) é assumir que existem conjuntos de condições necessárias e suficientes que devem ser obtidas para que os indivíduos contem como membros de uma categoria ou outra.

- Os três autores discutem as maneiras pelas quais as hipóteses da EP estão embebidas em pressupostos essencialistas sobre sexo. Homens teriam “essências” sociais e psicológicas diferentes das mulheres.

- Não coincidentemente, esse essencialismo sobre sexo é propício a uma Ordem Social que requer que os homens sejam líderes e vencedores na sociedade e as mulheres tenham funções de “cuidado”.

- Evidência desse essencialismo sobre sexo na EP é motivado por uma valorização da Ordem Social, não como resultado de observações imparciais da sociedade. A autora cita Meynell ao falar em “ignorância deliberada”.

- Questões sobre essencialismo em categorias humanas frequentemente estão ligadas a discussões sobre determinismo biológico.

Determinismo biológico

- Determinismo biológico é uma maneira de explicação da causação que atribui primazia a (ou, em alguns casos, tudo a) fatores biológicos sobre o espaço causal de uma dada característica.

- Dois importantes pressupostos que costumam acompanhar o determinismo biológico são as visões de que (i) atributos que são biologicamente determinados são imutáveis (ou pelo menos difíceis de mudar) e/ou (ii) são desejáveis.

Autoridade.
Valorizar a Autoridade é valorizar a posição de alguém ou de algum grupo em questões importantes à sociedade (p. ex., morais, científicas, políticas) como uma posição de grande autoridade.

- Weaver caracteriza o valor de Autoridade na EP com base na preocupação de Dupré (2012) sobre o monismo.

- Dupré (2012) explica que uma maneira de os psicólogos evolutivos acumularem ilegitimamente autoridade epistêmica sobre suas teorias é explorando ideias de uma reducionista “unidade da ciência” (p. ex., 2012, p. 35).

- Dupré questiona o pressuposto monista difundido na ciência, segundo o qual explicações de diferentes fenômenos através de disciplinas científicas são organizadas ao longo de níveis hierárquicos tais que fenômenos em níveis maiores podem ser explicados reduzindo-os a fenômenos em níveis menores.

- Expondo uma versão de reducionismo físico, muitos psicólogos evolutivos enfatizam a importância de explicações científicas que apelam a propriedades estruturais internas do fenômeno, como opostas a explicações que destacam contexto e ambiente. Isso, é claro, é destinado a simbolizar a EP (uma ciência de genética e “módulos mentais”) como um relato hiper-científico do comportamento humano, melhor do que o esperado por disciplinas mais tradicionais que devem enfrentar fenômenos “caóticos” como cultura.

- A discussão de Dupré da ideologia de unidade científica reducionista e como os psicólogos evolutivos podem ganhar com ela lança sobre os meios pelos quais valores de Autoridade permeiam as pesquisas em EP.

- Assumindo uma unidade reducionista da ciência e afirmando ocupar uma parte crucial dessa unidade, psicólogos evolutivos realçam a autoridade epistêmica de sua disciplina.

3.2 Disseminação

- Contrariamente ao que muitos filósofos podem assumir, a EP é amplamente reconhecida em contextos públicos e acadêmicos.

- Psicólogos evolutivos publicam amplamente em jornais prestigiados, recebem grandes financiamentos de uma das maiores agências de financiamento e estão empregados nas universidades de topo no mundo.

- Dupré, Meynell e Travis conectam disseminação com valores sociais. Essa conexão provê a segunda razão (entre as três razões apresentadas no início de 3.1) para a importância de considerar valores sociais na avaliação de ciências moralmente relevantes.

- Os três autores mencionam como a pesquisa em EP que está incorporada amplamente com valores sociais profundamente compartilhados (particularmente aqueles da Ordem Social) pode fazer a EP atrativa a amplas audiências. Pesquisas que expressam valores amplamente compartilhados ressoam o que as pessoas já acreditam com suas próprias categorias e, assim, fazem a EP parecer intuitivamente verdadeira.

3.3 Implicações sociais

- Meynell, Dupré e Travis – como Gould e Richardson em sua abordagem de detecção da verdade – também expressam preocupação sobre as implicações sociais da EP.

- Porém, a abordagem dos primeiros difere, em relação a de Gould e Richardson, porque eles conectam suas discussões de implicações a valores sociais, e falam mais sobre o que as implicações de fato são e por que são perniciosas.

- Por exemplo, Meynell aponta alguns problemas éticos diretos que surgem da visão essencialista de sexo e classe. Dupré mostra que, quando os conjuntos de características atribuídas aos “membros-tipo” de uma categoria são pejorativos em relação às características assumidas de outras categorias, isso age para marginalizar toda a categoria. Travis discute algumas implicações perniciosas associadas ao determinismo biológico.

- Essa discussão mais rica sobre as implicações perniciosas da pesquisa em EP, e sua conexão com valores, faz duas coisas para a avaliação da EP que a crítica de Gould e Richardson (isto é, a abordagem de detecção da verdade) não faz.

1. Faz mais para demonstrar o risco associado com a aceitação de hipóteses perniciosas da EP. As formas que o risco social pode tomar só são discutidas na abordagem de dimensão social.

2. Discutir em mais detalhes os danos funciona para desvalorizar essa ciência como um bem social (trata-se da terceira razão exposta no início de 3.1). Como uma empreitada prática, a ciência produz conhecimento que pode ser usado para fins humanos. Dentro de tal empreitada, o conhecimento que frustra nossos fins é, portanto, menos valioso.

- Falar mais profundamente sobre os danos em uma ciência dá aos filósofos a oportunidade de falar sobre as dimensões pragmáticas da ciência e apontar para seus leitores que a ciência perniciosa também é um desperdício desde uma perspectiva social.

- Em resumo, a abordagem de dimensão social é uma abordagem para a crítica da ciência que vê a ciência, especialmente a ciência moralmente relevante, como incorporada em e, assim, intimamente afetada por processos e valores sociais.

- Como tal, tomar essa abordagem exige que as dimensões sociais de uma ciência – como seus valores sociais (3.1), disseminação (3.2) e implicações sociais (3.3) – sejam consideradas seriamente em relação a coisas como evidências.

- De modo algum, a abordagem de dimensão social proibiria um filósofo de se preocupar com evidências, teoria, métodos ou mesmo verdade. Trata-se apenas que esses últimos aspectos, a um social-dimensionalista, não podem ser desconectados das dimensões sociais e, portanto, devem ser considerados ao lado deles.

4 A ABORDAGEM DE DETECÇÃO DA VERDADE E PREJUÍZO/DANO

- Nessa seção, a autora discutirá algumas maneiras pelas quais o uso da abordagem de detecção da verdade pode causar prejuízo.

- Distinção entre facilitar um prejuízo (facilitating a harm) e prejudicar (harming).

- Facilitar um prejuízo (sentido 1) significa contribuir de alguma maneira a um dano que foi iniciado por alguém ou por alguma outra coisa.

- Prejudicar (sentido 2) significa ser um iniciador de um prejuízo.

- Cada um dos dois sentidos de causar prejuízo/dano podem se manifestar de modo passivo ou ativo.

- A autora irá considerar as diferentes maneiras pelas quais o uso da abordagem de detecção da verdade pode causar prejuízo nesses dois sentidos.

- Ela mostrará que usar a abordagem de detecção de verdade pode facilitar passivamente (sentido 1) certos danos conectados à ciência, porque esta abordagem não está equipada para enfrentar danos conectados à ciência.

- Ela também discutirá como a abordagem de detecção da verdade prejudica (sentido 2) a filosofia da ciência, em parte porque promove uma compreensão empobrecida da produção do conhecimento científico.

- Em contraste, segundo a autora, a abordagem de dimensão social evita esses danos.

4.1 Dano social

Duas características da abordagem de Gould, Richardson e Buller (i.e., a de detecção da verdade) para a crítica da EP facilita prejuízo à sociedade. Essas características são:

1. Uma falta de discussão sobre os danos da EP; e

2. Um pressuposto implícito de que uma hipótese nociva que é falsa será rejeitada.

- Permanecer em silêncio ou falar apenas minimamente sobre os danos relacionados à EP, quando se está em condições de fazê-lo, pode facilitar passivamente aqueles danos, porque esse silêncio protege os psicólogos evolutivos de terem que explicar os danos que causam ou arriscam (risk; potencialmente causam).

- Criticar um programa sexista na EP, por exemplo, porque suas teorias são fracas, seus experimentos são defeituosos, ou suas conclusões são muito amplas, permite que o próprio sexismo permaneça no programa sem prestar contas (unaccounted for).

- Quando Gould, Richardson e Buller descobrem falhas na teoria ou metodologia da EP, mas ignoram suas dimensões sociais nocivas, eles dão suporte à ideia de que, embora os psicólogos evolutivos possam cometer erros técnicos, seu trabalho e ações são irrelevantes ou desconectados de questões de dano social.

- A ampla aplicação da abordagem de detecção da verdade entre os críticos da ciência (science critics) contribui de forma mais geral para relaxar a responsabilidade da ciência pelos danos. Menos responsabilidade pode criar um clima de imprudência na ciência, oferecendo pouco incentivo para se conscientizar de como a prática científica pode afetar danos sociais.

- Filósofos da ciência estão bem situados para alertar os cientistas sobre os tipos mais sistêmicos de danos.

- Quando filósofos da ciência tomam a abordagem de detecção da verdade em suas discussões sobre ciência moralmente relevante, eles também podem facilitar passivamente os danos a seus próprios leitores.

- Para ilustrar, considere como um filósofo que toma uma abordagem de detecção da verdade em uma teoria de "estratégias de acasalamento" da EP pode facilitar esse tipo de dano.

Psicólogos evolutivos e o dimorfismo sexual em relação à promiscuidade

- Os psicólogos evolutivos Buss e Schmitt (1993) preveem dimorfismo sexual em relação à promiscuidade humana.

- Com base na teoria do investimento parental de Robert Trivers (1972), que pressupõe que, porque os homens são o sexo de menor investimento e, assim, são mais competitivos uns com os outros para o acesso às mulheres, Buss e Schmitt (2011) fazem quatro previsões sobre os homens. Eles dizem que os homens:

(1) deveriam expressar maior desejo ou interesse em encontros de curto prazo do que as mulheres;

(2) deveriam desejar um número maior de parceiros sexuais do que as mulheres;

(3) deveriam estar dispostos a se envolver em relações sexuais após menos tempo do que as mulheres, e

(4) deveriam relaxar seus padrões de preferência nos encontros em contextos de acasalamento de curto prazo mais do que as mulheres.

- Essas implicações são, obviamente, nocivas porque reforçam normas e pressupostos prejudiciais sobre sexualidade masculina e feminina. Elas afirmam crenças de que as mulheres são sexualmente prudentes e querem sexo apenas quando conseguirão algo (por exemplo, intimidade, proteção, apoio financeiro, uma criança). Essas implicações também pintam homens como obsessivos por sexo e sexualmente sem emoção.

- Como esse “trem” de raciocínio (ou seja, teoria – implicações – crenças culturais) nos lembra, pode acontecer mais na mente de um leitor de ciência (ou filosofia da ciência) do que a mera compreensão de frases linguísticas. Os leitores trazem seus próprios pressupostos, experiências e crenças para suas interpretações e compreensão da ciência.

- Nesse sentido, se filósofos usam sua posição privilegiada para permanecerem neutros, então eles facilitam passivamente o dano causado pela informação.

- Com base nisso, é improvável que seja efetivo tentar mitigar danos na ciência simplesmente mostrando que ela é "falsa". Isso por alguns motivos:

- Primeiro, os filósofos devem assumir que nem todos os seus leitores estarão a par com suas críticas à ciência.

- Segundo, mesmo que um filósofo consiga persuadir o leitor de que certa teoria é defeituosa, teorias que falam de um assunto culturalmente sensível poderiam ser difíceis para os leitores rejeitar se rejeitá-las parece ser pessoalmente arriscado. Por exemplo, os leitores de filosofia que apresenta a teoria de Buss e Schmitt podem apostar que é melhor acreditar na teoria e aplicá-la às suas próprias vidas – apesar das falhas de que falam os filósofos – do que arriscar-se a ter uma sexualidade "anormal".

4.2 Dano à filosofia da ciência

- A abordagem de detecção da verdade, tal como é aplicada por Gould, Richardson e Buller nas obras específicas discutidas, também pode prejudicar a filosofia da ciência.

- Por um lado, o uso que esses teóricos fazem da abordagem de detecção da verdade assume uma compreensão empobrecida da produção do conhecimento científico.

- Essa abordagem assume uma linha direta entre evidência e verdade. Tal assunção impede a indagação sobre as formas em que os processos e valores sociais perturbam essa linha ou orientam a produção do conhecimento científico.

- Portanto, a abordagem de detecção da verdade restringe o foco de um filósofo em suas avaliações e compromete a qualidade e precisão de suas avaliações.

- A autora cita um trecho de Buller em que ele se opõe a críticas à ciência que se utiliza da dimensão política das teorias científicas. Ela diz que essa posição de Buller é nociva à filosofia da ciência, porque ela deslegitima discursos que são de fato valorosos à filosofia da ciência. Na medida em que a ciência é social e política, abordar essas dimensões pode lançar luz importante sobre o processo de produção do conhecimento da ciência.

- Ela destaca, baseando-se em Sara Richardson (2010), como as filósofas feministas são um grupo marginalizado dentro da filosofia da ciência. Suas explicações costumam ser simplificadas, caricaturadas, tratadas como “anti-ciência”, vistas como se estivessem rejeitando valores científicos tais como objetividade, verificação empírica e raciocínio lógico (em favor da ideologia feminista).

- Contudo, segundo a autora, a maioria das críticas feministas objetivam promover uma ciência melhor, não se livrar dela.

- Em suma, ignorar as dimensões sociais da ciência é prejudicial à filosofia da ciência, porque promove uma abordagem epistemológica da ciência que já não é sustentável e compromete a qualidade da avaliação filosófica. Deslegitimar as abordagens de dimensão social à crítica da ciência na própria abordagem de detecção da verdade também é prejudicial à filosofia da ciência, porque atua para deslegitimar uma abordagem epistemológica da ciência, de fato bastante valiosa.

5 Conclusão

A autora apresentou duas abordagens filosóficas para a avaliação da EP, que são tomadas como estudo de caso para a avaliação da ciência moralmente relevante de forma mais geral.

- A primeira abordagem, a abordagem de detecção da verdade, é hiper-focada na evidência fornecida por uma ciência e em como essa evidência apoia as afirmações de verdade dessa ciência.

- A segunda abordagem, a abordagem de dimensão social, também considera a produção e a qualidade das evidências científicas, mas faz isso dentro de um quadro de processos e valores sociais.

- A abordagem de detecção de verdade é socialmente nociva, uma vez que ignora (ou não pode abordar adequadamente) as dimensões da ciência que causam danos e, assim, é involuntariamente cúmplice com elas.

- A abordagem de detecção da verdade prejudica a filosofia da ciência, porque assume uma abordagem epistemológica da ciência que já não é sustentável e compromete a qualidade da avaliação filosófica.

- Em contraste, a abordagem de dimensão social não arrisca danos para a sociedade, porque expõe e mitiga os danos sociais incorporados na ciência. Também não prejudica a filosofia da ciência porque envolve uma abordagem epistemológica rica da ciência.

- Portanto, a abordagem de detecção da verdade deveria ser abandonada em favor de uma abordagem de dimensão social para a avaliação de uma ciência relevante.

- Para evitar as armadilhas da abordagem de detecção da verdade, os filósofos da ciência devem se engajar com a literatura filosófica que ilumina e enfatiza a importância das várias maneiras pelas quais a ciência é um processo social e carregado de valor (value-laden).

- A autora defende que a obrigação implicada em seu argumento não é, apesar de parecer, muito exigente. Porém, ela apresenta algumas dificuldades metodológicas:

- Nem todas as ciências com que os filósofos se engajam são como a psicologia evolutiva, epistemicamente fracas e nocivas socialmente. Filósofos podem lidar com ciências epistemicamente fortes, mas socialmente nocivas ou, inversamente, socialmente benéficas, mas epistemicamente falhas. Nesses casos, o filósofo tem uma tarefa mais difícil para priorizar os pontos fortes e fracos das diferentes dimensões da ciência.

- Este artigo contribui para um corpo de argumentos na filosofia de ciência socialmente relevante que exorta os filósofos a considerar seriamente a natureza social da ciência.

- Os padrões para a produção e a qualidade da evidência não são estáticos ou uniformes. Eles são determinados por comunidades fluidas de conhecedores que produzem ciência para vários fins.

- Falar de "verdade" separadamente dos processos sociais que a definem é, portanto, vazio de significado em um mundo de necessidades, valores, lutas por poder e sistemas de crença em mudança.

- Dado o seu treinamento e oportunidade de engajamento, os filósofos devem estar na linha de frente dos discursos que desconstroem e orientam essa produção social da ciência. Os filósofos que fazem filosofia da ciência socialmente relevante apontam como isso poderia beneficiar a sociedade, a ciência e a filosofia da ciência.

- O artigo acrescenta que não fazer isso, especialmente quando se avalia a ciência moralmente relevante, pode prejudicar a sociedade e a filosofia da ciência.

- É “tempo passado” que os filósofos da ciência levem esses chamados a sério.

FIM

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