sábado, 9 de dezembro de 2017

Sim, a saída é por esquerda, mas isso não diz muito

Uma ideologia política de direita pode ser considerada emancipadora? Se não pode, por que alianças com políticos/partidos de direita poderiam? E se essas alianças também não podem ser consideradas emancipadoras, por que poderiam estratégias políticas que utilizam estruturas de um sistema que reproduz essa ideologia?

Se esse sistema é o que rege nossa vida hoje, então certamente não podemos virar de costas para ele. Precisamos pressiona-lo para evitar retrocessos e tenciona-lo para conquistar mais e mais direitos. Democratizá-lo ao máximo. No entanto, isso precisa ser feito de fora, não de dentro do sistema; na luta de resistência pela base, não na negociação do alto dos gabinetes.

Ainda assim, é preciso ter clareza sobre os limites dessa luta. Ela tem potencial para produzir consciência política (de classe, raça, gênero, etc.) e ampliar direitos. Nesse sentido, é fundamental no presente e pré-requisito para um futuro emancipador. Mas ainda não traz o embrião desse futuro.

Esse embrião só é realmente gestado na conexão dessa luta com ações prefigurativas de um ideal de emancipação. Isso requer a criação de ambientes em que esses ideais possam ser incorporados na prática e possam formar uma nova cultura política. Esses ambientes precisam ser auto-organizados e auto-geridos, onde relações de hierarquia e dominação sejam identificadas como o oposto do que se está construindo. Sendo o fim almejado a emancipação humana, somente práticas libertárias (com relações igualitárias) são prefigurativas.

Certamente, as lutas reivindicatórias são cruciais. É só olharmos para a história para vermos sua força e suas conquistas. Pense nos movimentos por igualdade de direitos (como os movimentos negro e feminista), por exemplo. No entanto, nosso ideal ainda está longe de ser concretizado, o que mostra a necessidade em manter e reforçar nossa luta por direitos. Mas, como estou tentando defender, essa luta só é capaz de gestar o novo – a emancipação humana – em conexão com ações efetivamente prefigurativas. Reivindicar o novo reproduzindo as mazelas do velho não nos levará muito longe.

Com isso quero dizer: a saída é certamente por esquerda, mas é mais do que isso. É pela base, não pelo topo. Como dizem os zapatistas, desde abajo y a la izquierda. É reivindicando direitos e, ao mesmo tempo, construindo espaços em que o novo possa ser gestado. Trata-se de uma via de mão dupla que precisa ser construída conjuntamente. Por um lado, reivindicar ao Estado o que é nosso por direito; por outro, construir uma política profundamente anti-estatista.

Não se trata de colocar um partido, que supostamente represente os interesses do povo, no controle dos aparatos do Estado. Isso não prefigura a emancipação. Não serve como fim nem como meio. Mantém intacta a concentração (e os mecanismos) de poder. O que queremos é completamente diferente, é democratização radical do poder. Tomadas de decisão construídas de baixo para cima em fábricas, bairros, colégios, clubes, universidades e em todas as instituições que mereçam futuro. Ampla participação e ampla difusão de poder. Relações igualitárias e libertárias em todos os âmbitos.

Não há dúvida que as ideias aqui colocadas formam a base para um projeto político de esquerda. Mas também é certo que boa parte dos projetos da esquerda são incompatíveis com estas ideias. Isso reforça uma tese já mencionada: a emancipação não virá do Estado nem dos partidos que buscam o controle do Estado. Ela precisa ser construída de baixo para cima, por meio da incorporação de práticas e valores que sejam condizentes com a emancipação. Estamos falando de um enraizamento na cultura popular.

Este projeto resiste não "apenas" ao interesse da direita e das classes dominantes, mas muitas vezes também à cooptação por projetos da esquerda estatista. Essa é uma constante nos movimentos populares (incluindo sindicatos). Esta busca por cooptação atua como uma força para manter a hierarquia (e, portanto, a concentração de poder) nos movimentos, de modo a facilitar a negociação entre burocracias (do Estado e dos movimentos). Assim, em vez de autônomos, muitos movimentos populares ficam atrelados fisiologicamente a partidos, a governos e ao Estado.

Projetos da esquerda libertária tem todas essas dificuldades e mais um pouco. Mas com um ideal tão distinto do que é promovido pelo sistema político-econômico-ideológico atual, ninguém deveria esperar facilidade. Com efeito, há duas opções: lutar por uma autêntica emancipação humana frente a todos esses impasses OU perder de vista esse ideal e aceitar o autoritarismo, seja ele executado por direita ou por esquerda.

Fico com a primeira opção. Não por capricho, mas por compromisso. Não consigo imaginar como alguém dorme tranquilo sem mover uma palha contra esse sistema, que é injusto até à medula. Mas meu objetivo não é apenas dormir tranquilo, é contribuir humildemente com esse ideal. Perde-lo de vista seria perder parte de mim mesmo. Não o trato apenas como um projeto político, mas como parte de meu projeto de vida.

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