segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Outra ciência é possível (e necessária)

Como nasce a união de cientistas comprometidos com a sociedade e a natureza

Darío Aranda

Um texto de Andrés Carrasco é a origem dessa rede latino-americana que questiona o papel da ciência a serviço das corporações com a cumplicidade do Estado.
“O conhecimento científico e tecnológico, particularmente aquele desenvolvido sem o devido controle social, tem contribuído para criar problemas ambientais e de saúde, com alcance muitas vezes catastrófico e irreversível.” O questionamento provém de dentro do mesmo sistema científico e é parte do documento de fundação da Unión de Científicos Comprometidos con la Sociedad y la Naturaleza de América Latina (Uccsnal), espaço nascido em Rosário (Argentina, N.do T.) e formado por acadêmicos de uma dezena de países. Questionam as políticas científicas que, desde o Estado, estão a serviço do setor privado, e se mantêm com os acadêmicos que legitimam o extrativismo (agronegócio, mineração e petróleo), e propõem uma ciência que tome como foco a população. “A atividade científica deve ser desenvolvida de uma maneira eticamente responsável e com um claro compromisso com a sociedade e a natureza, privilegiando os princípios de sustentabilidade [biossustentabilidade], equidade, democracia participativa, justiça socioambiental e diversidade cultural”.


Ciência digna
A Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Rosário (UNR) estabeleceu o dia 16 de junho de 2014 como o “Dia da Ciência Digna”, em homenagem ao chefe do Laboratório de Embriologia Molecular da UBA (Universidad de Buenos Aires, N.do T)., Andrés Carrasco, que confirmou os efeitos nocivos do herbicida glifosato. Carrasco, que faleceu em maio de 2014, tinha sido presidente do Conicet- Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas), e era um duro questionador das políticas científicas que (a partir do Estado) estão a serviço do setor privado.
Ele enfrentou uma campanha de desprestígio de setores midiáticos ligados ao agronegócio e também de setores da academia, inclusive do ministro de Ciência, Lino Barañao (um férreo incentivador das empresas transgênicas).
Carrasco teceu laços com organizações sociais, populações fumigadas e pesquisadores críticos ao modelo hegemônico de ciência. Trabalhava em um texto que seria o pontapé inicial de um coletivo de cientistas da América. Não chegou a terminar o documento, mas em 16 de junho de 2014 foi lançada (com base em seu texto), a “Declaración Latinoamericana por uma Ciencia Digna” (Declaração Latino-americana por uma Ciência Digna).
“Existe uma ciência cada vez mais dependente dos poderes hegemônicos, violando o direito a uma ciência autônoma para benefício direto da sociedade (...) Os cultivos transgênicos são veículos desenhados não para alimentar o mundo, mas sim para a apropriação sistemática e instrumental da natureza, e sem dúvida um instrumento estratégico de controle territorial, político e cultural, tratando-se de uma nova etapa neocolonial”, assinala o texto de Carrasco .
Em outro parágrafo, afirmava que a manipulação genética é só uma tecnologia e “não tem uma base científica sólida, pelo que se constitui em um perigo para o equilíbrio natural e para a diversidade biológica”. Alertava sobre a existência de “grandes negócios e uma enorme narrativa legitimadora que os cientistas honestos não poderão evitar interpelar”.
“A ciência e seu sentido, do para quê, para quem e para onde, estão em crise e nós, na pátria grande, não podemos fingir demência [falta de memória] se quisermos sobreviver soberanamente. Os povos latino-americanos têm o direito irrenunciável de desenvolver uma ciência transparente, autônoma e que sirva a seus interesses”, propunha o escrito de Carrasco, que sonhava com um coletivo de cientistas próximos ao povo e distanciados dos ditames das empresas.
Poucos dias depois de circular o texto, já haviam mais de 50 reconhecidos e respeitados acadêmicos da Argentina, México, Equador, Costa Rica e Brasil que aderiam à declaração.

Um ano depois
Junho de 2015. Rosário foi outra vez o epicentro. O local, a Faculdade de Ciências Médicas da UNR (Universidade de Rosário – N. do T.). Toda uma semana de atividades, no quadro do III Congresso Internacional de Saúde Socioambiental, realizou-se o I Encontro da União de Cientistas Comprometidos com a Sociedade, com participantes de uma dezena de países da região. Mais de 70 expositores e debates. O foco central esteve nas atividades extrativas, nas políticas de Estado, nas organizações territoriais e, é claro, no papel da ciência e das universidades públicas.
Uma das apresentações esteve sob a responsabilidade de Alicia Massarini, doutora em ciências biológicas e pesquisadora do Conicet. Explicou que uma concepção clássica e hegemônica da ciência é que se apresenta como neutra, objetiva e universal. Teve seu ponto de partida em 1945, logo após a II Guerra Mundial, e vincula a ciência ao progresso e à geração de riqueza. “É um modelo linear, muito parecido ao vigente na Argentina de hoje”, afirmou.
Sustentou que essa concepção de ciência começou a ser questionada na década de 60, quando diversos pesquisadores questionaram a condição de dar um cheque em branco ao saber científico. Esse olhar crítico teve seu correlato local no Pensamiento Latinoamericano em Ciencia y Tecnologia (PLACT), que rechaçava a neutralidade do pensamento científico e buscava uma estreita relação com a população. Na Argentina, se destacavam Jorge Sabato e Oscar Varsavsky. Duas perguntas poderiam resumir esses questionamentos e ao mesmo tempo a busca de alternativas: Ciência para quê e para quem?
Com as ditaduras militares pela frente (e neoliberalismo após), essa linha de pensamento crítico se debilitou, mas advertiu que na última década ressurgiu.
A crítica (ou autocrítica) à ciência atual aponta à crescente tendência à privatização e mercantilização do conhecimento, e inclui o sistema de avaliação, que se baseia fundamentalmente na escritura “paper” (artigos) em revistas especializadas em ciência. Quanto mais publicações, e conforme em que revistas, maior pontuação para ascender na carreira. Massarini, alinhada com muitos outros cientistas, questionou o papel central dado às publicações. “É preciso perguntar qual tem sido o destino desses artigos. A grande maioria não deixou marcos de interesse, e dois terços deles jamais foram citados por outros pesquisadores”, questionou.
Finalmente, resumiu os dois modelos de ciência: com o setor privado como eixo (“empresacêntrico”), ou com a sociedade como sujeito de referência (“povocêntrico”). Afirmou que o atual modelo linear de ciência mostra que o saber está em crise, e propôs outro modelo, uma ciência vinculada ao contexto social, cultural e aos territórios.

Documento
Mais de 30 pesquisadores debateram durante todo um dia o documento constituinte da Unión de Científicos Comprometidos com La Sociedad y La Naturaleza de América Latina (Uccsnal). Durante quase cinco meses, haviam circulado diferentes versões via correio eletrônico, mas em Rosário se teceu uma articulação mais fina. Houve consenso em seis páginas, com um começo que é uma declaração de princípios: “Em homenagem póstuma ao doutor Andrés Carrrasco (1946-2014), Presidente Honorário Permanente”.
Os primeiros parágrafos são uma crítica ao extrativismo e a seus justificadores: “A geração e o uso do conhecimento científico tecnológico  estão cada vez mais comprometidos em dar resposta às demandas das corporações que impulsionam o modelo que nos tem levado a essa crise, e cada vez menos a serviço dos povos”.
Denuncia a “crescente tendência à privatização do conhecimento”, e ao mesmo tempo torna a valorizar o saber das comunidades locais, dos povos indígenas, dos campesinos e dos habitantes das periferias das cidades, que “com suas lutas, seus saberes ancestrais, seus exemplos de convivência e sua concepção de bem viver e sua organização, plantam sementes emancipadoras para reconstruir os paradigmas necessários para enfrentar estas crises”.
Entre os objetivos da União de Cientistas figuram o propiciar uma reflexão crítica sobre a ciência e a tecnologia, promover a discussão sobre a responsabilidade dos estudantes, cientistas e acadêmicos, e gerar conhecimento orientado a acompanhar e fortalecer os processos sociais e as lutas em defesa das comunidades e da natureza.
“Torna-se imperativo aplicar os princípios da precaução e de prevenção”, ressalta o documento dos cientistas. Isso implica em que, diante da falta de certeza sobre o impacto de uma tecnologia ou técnica (os transgênicos ou o fracking – fratura hidráulica – para extrair petróleo), devem ser tomadas medidas de proteção para o meio ambiente e à saúde humana. Ressaltam ainda que é imprescindível que todo o processo de geração e aplicação de tecnologias na sociedade “seja autorizado pela licença social e ambiental correspondente, fruto de legítimos processos participativos”.
E ainda, quase no final do documento, volta uma pergunta tão necessária quanto ausente no modelo acadêmico hegemônico: para quê e para quem é a ciência e a tecnologia?
Entre os signatários, estão Alejandro Calderón e Margarita Tadeo Robledo (México); Jaime Garcia (Costa Rica); Miriam Mora e Arturo Quizhpe (Equador), Eduardo Espinoza (El Salvador), Rubens Nodari (Brasil); Esperanza Holguin (Colômbia); Pablo Galeano (Uruguai) e Damián Verzeñassi, Alicia Massarini e Damián Matino (Argentina), entre outros.

Também faz parte desse coletivo Elizabeth Bravo, equatoriana e doutora em ecologia de microrganismos. Bravo denunciou, em sua apresentação, a existência de uma “ciência mercenária” (deu, como exemplo, a contaminação pela Chevron no Equador e como um grupo de cientistas acudiu em auxílio da petroleira e não das comunidades afetadas), mas valorizou o acontecimento em Rosário: “A União de Cientistas Comprometidos com a Sociedade e a Natureza é um fato de grande transcendência para os países da América. Nasce diante da necessidade de contar com um olhar crítico ao modelo tecnocientífico que está sendo imposto à região. Essa necessidade já foi mostrada por nosso querido amigo Andrés Carrasco, que nos deixou como tarefa pendente criar essa organização. Um ano após sua partida, pudemos concretizá-la, e ela já está dando seus primeiros passos pela América Latina”.

Publicado originalmente no periódico Mu de julho de 2015.

Artigo relacionado: La ciencia por el ambiente. Página 12. Publicado em Rebelión em 16 de junho de 2015. (http://www.rebelion.org/noticia.php?id=200033).


Tradução do espanhol: Renzo Bassanetti

Nenhum comentário:

Postar um comentário