quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Realidade: entre a ciência e a filosofia


“No fim das contas, a epistemologia pode ser encarada como uma aplicação da ontologia ao processo cognitivo: diga-me o que há ali, e eu lhe direi o que e como poderemos chegar a conhecê-lo. Se o mundo for ou uma idéia ou uma massa de aparências, olhe apenas para dentro; mas se ele for concreto, saia e o explore; e se tudo o que podemos fazer é perceber, apenas registre suas impressões sensoriais; mas se você também pode pensar, esteja preparado para pensar a fundo”. Mario Bunge (2010)


Um dos problemas filosóficos fundamentais é aquele que pretende tratar de questões acerca da realidade. Para discutir este tema eu trago duas perguntas que, embora distintas, estão estreitamente interligadas (como mostra a citação acima). São elas:

1. Existe uma realidade independente do sujeito? 

2. Se essa realidade existir, podemos conhecê-la?

A primeira pergunta apresenta um problema ontológico, enquanto a segunda oferece um problema epistemológico. Embora possa parecer, para alguns, que são questões muito básicas, onde não haveria relação alguma com o nosso dia-a-dia ou que fosse indiferente a prática científica, eu pretendo mostrar que este não é o caso.

Eu diria que a principal relevância desse problema é o seu impacto na maneira como consideramos o conhecimento empírico, tanto o científico quanto o ordinário. 

Dependendo de que posição tomarmos daremos maior ou menor valor a pesquisas que façam observações na natureza, tal como a ciência. Se respondermos com um não à pergunta 1 (Existe uma realidade independente do sujeito?), poderíamos  tratar literalmente como irrelevante a atividade científica. Se respondêssemos com um sim a essa pergunta, mas para a pergunta 2 (Se essa realidade existir, podemos conhecê-la?) respondermos com um não, estaríamos na mesma situação: a ciência ou o conhecimento acerca do mundo não teria qualquer valor, porque se não podemos conhecer minimamente a realidade, não teria sentido algum investigarmos a natureza, sair a busca de regularidades empíricas e seus mecanismos subjacentes.  As incontáveis medições, tabulações e análises de dados observacionais e experimentais que a ciência moderna faz no seu dia-a-dia, desde os seus mais de 400 anos, seria apenas uma ilusão, uma inexplicável perda de tempo. Em contrapartida, se apoiamos a existência de um mundo externo independente do sujeito e a possibilidade de conhecê-lo (nem que seja de modo indireto e aproximado) concordaríamos na relevância do conhecimento empírico e, portanto, na importância da atividade científica.

À primeira vista, essas duas malditas questões não pareciam ter um aspecto prático, mas agora notamos que elas estão intimamente relacionadas com a prática científica. E vimos que, para a ciência fazer sentido, teríamos que responder com um sim às duas questões. Mas será que temos bons argumentos para justificar o conhecimento científico? Ou mesmo para negá-lo?

Há um amplo número de escolas filosóficas que responderiam com um não a pelo menos uma daquelas questões. Pretendo falar um pouco de três delas: positivismo lógico, fenomenalismo e construtivismo. A primeira, embora morta na filosofia, é manifestada principalmente por cientistas experimentais. As outras duas são comuns em diferentes áreas da filosofia e trouxeram, a meu ver, um grande retrocesso na epistemologia e sociologia do conhecimento.

O positivismo lógico é também conhecido como neopositismo ou empirismo lógico. Adeptos desta escola não vêem grande relevância na teoria para o conhecimento científico, sua função seria apenas resumir dados. Além disso, são contrários a grandes conjecturas de hipóteses – a especulação, mesmo no processo inicial de pesquisa, só poderia fazer mal. Deveria-se partir dos nossos sentidos e não vagar para longe deles. “Cortar as asas da metafísica”, como costumavam falar. É verdade que eles se utilizaram da lógica moderna, o que torna esta filosofia a única racional entre as três que citei. Foi realmente interessante em algumas questões, porque fez críticas ferozes à metafísica esdrúxula, à teologia, à pura especulação, além de mostrar a relevância das observações e do caráter empírico da ciência. No entanto, exagerou bastante. Primeira coisa a se dizer é que, trabalhando com ciência, não há como fugir da metafísica, é impossível ser agnóstico a ela, porque ciência trata de conhecimento, e conhecimento é conhecimento de alguma coisa; portanto, nem que seja tacitamente, estaremos supondo uma determinada metafísica (ontologia). Outra: a conjectura de hipóteses é essencial para o procedimento científico, independente se surge de uma observação, de um sonho, de um delírio ou de uma vontade, de qualquer forma ela só entrará para o corpo da ciência quando apoiada por fatos. E mais: teorias são fundamentais, muito mais do que resumir dados, elas têm um caráter universal e sistêmico; o que os dados nos dizem se refere unicamente a eles, são questões particulares, é por isso que bolamos hipóteses, mecanismos e teorias, para trabalharmos sob generalidades.

Talvez a pior contribuição do positivismo lógico tenha sido sua abordagem fenomenológica. Um pouco sobre seus representantes (as citações são retiradas de Caçando a Realidade, de Mario Bunge): Stuart Mill definiu uma coisa como “uma possibilidade de sensações”; Ernst Mach adotou a concepção de Kant de que a “natureza é composta de sensações assim como seus elementos”; Reichenbach sustentou que “o sistema copernicano difere do de Ptolomeu unicamente porque é um outro modo de falar”; para arrematar, Carnap, em seu livro Construção lógica do mundo, apresentou como princípio que “todos os objetos físicos podem ser reduzidos a objetos psicológicos”. Todas essas afirmações são falsas, e pelo mesmo motivo, simplesmente porque a realidade independe de nossos sentidos - depois veremos porquê.

A segunda filosofia é o fenomenalismo, ela está relacionada com as citações acima, porque o positivismo lógico a adotou. É a doutrina que admite apenas os fenômenos. No fenomenalismo ontológico, realidade = aparência; no fenomenalismo epistemológico, cognoscível = aparente. O que ela diz é o seguinte (peço licença para pô-la em termos normativos e caricaturais): apenas descreva percepções, não se atreva a supor mecanismos. Viva da descrição de padrões sensitivos, aceite teorias de caixa-preta. A psicologia é behaviorista e todas as outras ciências se reduzem a ela.

A terceira filosofia é o construtivismo. A concepção de que os objetos são construções humanas. Na ontologia, é o ponto de vista de que o mundo é uma construção humana, de que não há coisas em si próprias, mas apenas coisas para nós. Assim como para o fenomenalismo ontológico, a natureza não tem existência independente. Esta tese entra em conflito com tudo que sabemos sobre o mundo anterior a existência dos seres vivos. O construtivismo também é forte na sociologia do conhecimento, onde diz que todos os fatos científicos são construções, produto das comunidades científicas. Assim, estrelas, átomos, genes e dinossauros seriam construções sociais (sic!).

Todas estas três filosofias são subjetivistas, uma tese que insiste no homem como o centro do mundo. É um antropocentrismo tão falso quanto os outros que já passaram pela história.

Poderíamos incluir ainda outras tantas filosofias que possuem teses antirrealistas, como o relativismo, textualismo, neopragmatismo, hermenêutica filosófica e os autodenominados “pós-modernos”, que são uma mescla de tudo isso.

Mas e então, depois de uma breve análise de filosofias caducas, o que nos sobra?

Um sistema filosófico conhecido como realismo científico postula, além de outras coisas, a existência de uma realidade independente do sujeito e a possibilidade de conhecê-la, embora de maneira parcial, aproximada, indireta e constantemente aperfeiçoada. Mas não seria ele apenas mais uma escola com suas convicções? Penso que não. Primeiro porque não se pode considerá-lo como escola, mas um sistema filosófico abrangente, com componentes ontológicos, epistemológicos, semânticos, metodológicos, axiológicos, morais e práticos. Além disso, suas afirmações não são puro non sense como boa parte das filosofias que eu citei acima. São baseadas em argumentos que a torna a mais plausível filosofia a se adotar.

Esse sobrenome científico no realismo não o torna uma ciência ou uma tentativa de reduzir a filosofia à ciência, refere-se simplesmente a uma filosofia que está de acordo com o conhecimento científico. Como eu citei acima, ela possui sete componentes que a tornam um sistema filosófico coeso. Isso é filosofia, sem dúvida, mas que pode soar estranho porque poucas vezes na história a filosofia abraçou e teve noites de amor com a famigerada ciência.

Cito agora alguns argumentos que me veio à mente (diga-se de passagem, a neurociência nos dá evidências de que a mente é um processo cerebral. E não se pode fazer filosofia alheia ao conhecimento científico. A filosofia da mente que exibi o idealismo simplesmente o faz porque conduz seus estudos de forma a priori, sem a ajuda das ciências da mente).  Juntas estas proposições dão respaldo ao realismo científico:

(a)  interagimos no mundo, de modo que conseguimos satisfazer questões práticas;
(b) há coisas que não observamos diretamente (númenos sem fenômenos);
(c) a ciência avança e é a atividade de maior sucesso já conhecida;
(d) postulamos hipóteses que muitas vezes não se adéquam aos fatos.

A proposição (a) é o centro do pragmatismo, mas se o unirmos aos outros argumentos inevitavelmente teríamos como a melhor explicação o realismo. Como explicaríamos as proposições (b), (c) e (d) se não postularmos a existência de uma realidade externa, independente de um sujeito, e que possa ser minimamente conhecida? A melhor explicação para (b) é uma ontologia realista, para (c) e (d) é uma epistemologia realista. Como explicar ao mesmo tempo  a ocorrência de erros no dia-a-dia da ciência (representada por d) e o seu avanço (representada por c)? As outras filosofias que citei não conseguem dar conta destas questões.

Por isso, a meu ver, o realista seria o único a tomar uma posição filosófica que estaria de acordo com o conhecimento científico e o seu inegável avanço. O realismo parece ser o único capaz de explicar o progresso científico e seus erros cotidianos.

Mais sobre o realismo científico:

Clicando Aqui tu encontras vários textos tratando do assunto, como o Em defesa do realismo científico, de Stathis Psillos. Autor deste livro:



Página-e sobre um dos maiores filósofos (um realista) da atualidade, na minha opinião. Tem uma ampla quantidade de artigos e entrevistas de Mario Bunge, um página muito bem feita (em espanhol): http://www.mariobunge.com.ar/


2 comentários:

  1. Loco de bueno. Expuseste de uma forma clara a coisa toda...
    Não consigo invalidar as outras "correntes" filosóficas, porque penso que elas não tem a intenção de ser validadas ou não, diferentemente de teorias científicas. A impressão que eu tenho é de que as três correntes que tu citaste se diferenciam do realismo científico por uma razão: são concepções do tipo "pode ser que seja assim", enquanto o realismo (principalmente o realismo científico), se enquadra melhor como "parece que é assim". Os pontos salientados (a, b, c, d) são como "evidências" do realismo ontológico e epistemológico. Mas não assumimos que as outras correntes estejam erradas. Talvez fosse interessante colocar a argumentação de defesa de cada uma delas, pois acho esses que devem ser discursos interessante. À diferença da forma como são tratadas as teorias em ciência, (usando-se mecanismos que buscam refutá-las por evidência), me parece que a "adoção" de uma ou outra corrente filosófica fica a cargo de uma espécie de "bom senso". Não sei se é a palavra exata, mas não achei outra melhor. Eu me alinho com o realismo científico também (tô descobrindo agora essas classificações todas), mas mesmo o solipsismo parece ter algum fundamento (mesmo pertencendo ao grupo do "poder ser que seja assim"), nem que seja como ferramenta ou pano de fundo para construção de ideias diferentes, seja na ficção, nas artes ou em outros desdobramentos da mente humana.

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  2. Pois é. Uma cousa a se pensar é a maneira como a filosofia deve ser avaliada. Não penso que a filosofia seja um gênero literário, como pensam alguns. Por exemplo, uma filosofia da literatura tentaria buscar regularidades nos gêneros literários e, a partir daí, formar argumentos com a intenção de buscar verdades que perfazem a literatura. Assim como a ciência, seu objetivo é alcançar verdades ainda que de maneira distinta, porque seus temas são muito mais gerais. Sendo assim, penso que a ciência tem muito a contribuir para a filosofia e vice-versa. Qualquer área que se queira pode ser tratada científica e filosoficamente. Podemos estudar astrologia ou psicanálise de maneira científica, mas acabamos não encontrando evidências para sustentar essas áreas.
    Sobre a questão de avaliar filosofias, o problema é que ela trabalha com problemas mais básicos do que os científicos, de modo que não pode ser verdadeiramente refutada tal como as hipóteses científicas. Ou seja, as hipóteses podem ser refutadas (se forem científicas), mas as concepções filosóficas que a geram não. Por isso talvez tu disseste que é mais por “bom senso”, Paulo. De fato, filosofias não podem ser refutadas, mas não sei se dá pra dizer que avaliar filosofias é trabalhar com “bom senso”. Eu penso que se elas geram hipóteses que são contrárias ao conhecimento científico, podemos (e devemos) criticá-las.
    Vamos para alguns exemplos: o dualismo mente/corpo sustenta a separação destes em duas entidades distintas, teria-se uma substância mental e outra corporal. O que a psicologia e a neurociência nos mostram é que não há evidências de uma substância mental, mas que ela seria um processo emergente da matéria organizada formando um cérebro! O fenomenalismo sustenta que só podemos conhecer as aparências, mas o que seriam as causas primárias de um objeto? E um átomo ou um ADN que eu não enxergo? O descritivismo sustenta que só podemos descrever padrões, mas e quando encontramos os mecanismos por trás dos padrões? O construtivismo sustenta que tudo é criado por nós.
    Todas estas filosofias estão em desacordo com o conhecimento científico, é por isso que, embora elas não possam ser refutadas, não devem estar em pé de igualdade com aquelas que sustentam o conhecimento científico. Posto desta forma, ficou parecendo que a filosofia é avaliada pela ciência, mas na verdade penso que deve haver uma interação entre elas. A filosofia não pode considerar apenas questões a priori, ela deve se modificar junto com a ciência, considerando novos achados científicos. Além do mais, deve engrandecer a ciência com suas questões. Penso que a interação entre estas áreas deveria ser muito maior do que é. Mesmo a filosofia da ciência, que já concede esta interação como uma premissa, está muitas vezes alheia à produção científica e se apega exageradamente aos filósofos da ciência que tiveram destaque. Como eu disse anteriormente, pode-se fazer um estudo científico de qualquer tema que se quiser. Sendo assim, a filosofia e a ciência devem estar vinculadas em todas as suas atividades, na medida em que as duas estão à busca de verdades. Não se restringe à filosofia da ciência, mas atravessa todas as outras, como ontologia, epistemologia, ética, filosofia política, etc.
    Portanto, filosofia e ciência devem estar abraçadas avançarem em suas pesquisas rumo à verdade, desde um caso específico até o mais amplo! Estabelecer um encontro permanente entre estas áreas é o grande desafio e, naturalmente, as pseudofilosofias perderiam peso, inclusive na academia. Primeiro porque, desta forma, a filosofia deveria ser clara: perderiam destaque as teses de Heidegger, Husserl, Hegel e cia. Segundo porque deveria estar de acordo com o conhecimento científico: contrariando as teses de Tomás de Aquino, Berkeley, Sartre e cia.

    É isso. Acho que ficou um pouco grande pra um comentário! Hahaha.

    Abraços

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