Era uma época melindrosa, lá pelo final do século XIX, quando a existência das ondas eletromagnéticas havia sido demonstrada na prática, conforme sugerida por Maxwell em seu artigo clássico "Oscilações de campos elétricos e magnéticos baguais a partir de uns cálculos feitos em guardanapo de boca". O espaço, então, passava a ser reconhecidamente permeado por radiação, em sua maioria invisível, com exceção dos comprimentos de onda visíveis por nós (aquele espectro que vai do vermelho ao violeta).
A gente sabida da época imaginava a propagação das ondas eletromagnéticas à semelhança das ondas mecânicas (algumas das quais reconhecemos como "som"). Acontece que as ondas mecânicas necessitam de um meio material para se propagarem: não há som no vácuo. Por isso que muitos filmes de ficção científica (principalmente algumas Space Operas famosas, como a hexalogia de George Lucas, Guerra nas Estrelas) falham logicamente ao representar sonoramente eventos ocorridos no espaço interplanetário.
Pois então, se o som necessita de um meio material para se propagar, é certo que esse "novo" tipo de radiação também necessita. Porém, sabendo que a radiação eletromagnética percorre o espaço (proveniente de estrelas e outros corpos emissores, por exemplo), que é supostamente vazio de matéria, o meio por qual a luz percorre deveria ser de uma natureza distinta. A esse meio deu-se o nome de éter, ou éter luminífero, a substância que preencheria qualquer espaço por onde se deslocasse algum tipo de radiação eletromagnética. Aliás, o conceito de (e a palavra) éter é recorrente em física e filosofia, geralmente usada para denominar aquilo que supostamente preencheria o espaço. Nessa época o éter passava a assumir papel de uma explicação científica ad hoc, porém, ainda não testada.
Edward Williams Morley e Albert Abraham Michelson
Como forma de obter evidências para a existência do éter, os físicos Albert Michelson e Edward Morley realizaram, a meu ver, um dos experimentos mais famosos e também mais elegantes da física, que ficou conhecido como Experimento de Michelson-Morley.
O éter era tido como uma substância abundante em todo o Universo e de difícil compressão. Apesar dessa suposta dificuldade para comprimi-lo, os planetas parecem percorrer suas órbitas aparentemente sem interação com o éter, obedecendo aos princípios propostos por Newton e Kepler. Dessa forma, o éter era considerado um fluido com viscosidade zero, pois os corpos orbitantes deslocavam-se por ele sem perder energia.
A ideia, então, seria detectar o movimento relativo da Terra através do éter estacionário, medindo o efeito do que foi chamado de "vento etéreo" sobre as ondas eletromagnéticas, da mesma forma que o vento "aéreo" poderia ser detectado sobre as ondas mecânicas que se propagam pelo ar.
A simplicidade da ideia é um dos pontos fortes do experimento. O outro, em minha opinião, é a sofisticação logística necessária a sua execução. Para alcançar resultados significativos, os físicos necessitariam de uma precisão e acurácia ímpar na medição dos dados. A habilidade de Michelson em desenvolver instrumentos de medida precisos foi fundamental à realização da experiência. Anos antes o cientista havia chegado no que era a medida mais precisa da velocidade da luz até o momento.
Para a realização do experimento, um instrumento novo teve que ser criado: o interferômetro de Michelson.
Cabe aqui uma explicação breve do interferômetro:
Esquema básico do interferômetro de Michelson. Adaptado de Wikimedia Commons.
Uma fonte de luz monocromática emite um feixe que passa por um espelho parcialmente refletor (50% do feixe é refletido) posicionado num ângulo determinado. Isso separa o feixe primário em dois: um vai continuar na mesma direção e sentido, outro será refletido em outra direção. Os dois feixes encontram espelhos com reflexão total posicionados à mesma distância do espelho central e os feixes são refletidos para um medidor, depois de passarem pelo espelho central.
Mas o que isso pode dizer sobre a existência do éter?
Se os dois feixes chegam ao detector exatamente no mesmo momento, suas fases serão somadas (interferência construtiva) e o medidor apresentará um ponto brilhante no centro do monitor.
Acontece QUE: se a Terra (e portanto o interferômetro) está se deslocando através do éter, o meio pelo qual um dos feixes passaria estaria em movimento em relação ao sistema.
Imagina, no caso acima, que o "vento etéreo" está soprando da direita para a esquerda do monitor do teu computador (em sentido oposto à movimentação da Terra no espaço). Qual feixe de luz chegará antes no medidor? A resposta não é uma coisa assim TRI EVIDENTE, mas é o feixe deslocado para cima no espelho central. Isso porque ele percorre uma trajetória menor que o feixe que está alinhado com o movimento da Terra (e portanto, com o "vento etéreo"). Isso faz com que eles cheguem em instantes diferentes no medidor, causando, então, uma interferência destrutiva, onde o ápice de uma onde se soma com o vale de outra, resultando num ponto escuro no meio do medidor.
Bueno, com isso em mente, o próximo passo era o seguinte: construir um interferômetro com especificações que permitam minimizar os erros experimentais, afinal a discrepância entre a velocidade da luz e a velocidade de translação da Terra ao redor do Sol é enorme.
Eis que em 1880 o aparato foi construído em Berlim por um habilidoso construtor de instrumentos alemão. No ano seguinte, a experiência foi realizada. O aparelho era tão sensível que as carruagens e o caminhar dos pedestres na rua causavam distúrbios nas medições. Após várias tentativas, o efeito do vento etéreo não foi detectado. Nessa etapa, Michelson ainda trabalhava sozinho no experimento.
Após voltar aos EUA, tornou-se colega e amigo de Edward Morley, que viria a colaborar com os experimentos para a detecção do éter. A colaboração de Morley resultou na construção de um novo interferômetro, cerca de 10 vezes mais sensível que o original. O aparelho repousava sobre uma estrutura que flutuava em mercúrio líquido, de forma a minimizar interferências mecânicas indesejadas.
Girando o interferômetro, ou seja, posicionando-o de várias maneiras em relação ao suposto "vento etéreo", o padrão de interferência (construtiva ou destrutiva) detectado no monitor seria a informação que viria a corroborar (ou não) a existência do éter.
E o resultado, tchê?
Em todas as posições que o instrumento foi colocado, nenhuma vez um feixe chegou consideravelmente a frente de outro (algumas medições positivas foram demonstradas como imprecisão metodológica posteriormente). Não importa a posição que o "vento etéreo" estivesse em relação ao interferômetro, seu efeito nunca pode ser detectado. Logo, a existência do éter tinha uma forte evidência contrária. Cabe dizer que as variações do experimento foram muitas: realizadas em períodos diferentes do dia e do ano, etc.
A experiência foi repetida por outros físicos nos anos seguintes, com acurácia e precisão crescentes, mas os resultados sempre foram consistentes entre si: não havia evidência para o deslocamento da Terra pelo éter estacionário.
Outro elemento que colaborou para o grande impacto do experimento foi o fato de Michelson ser um ávido defensor da ideia do éter (pois era a linha que costurava algumas ideias muito aceitas pela física da época), acreditando que seus resultados tinham sido negativos por erro experimental. Dessa forma, ele continuou a aperfeiçoar o experimento, construindo uma evidência robusta para a inexistência do éter.
Mesmo frustrado pelos resultados não condizerem com suas convicções próprias, Michelson havia realizado uma das experiências mais sofisticadas e importantes da física.
E depois?
Os resultados de Michelson e Morley foram analisados pelo matemático francês Henri Poincaré, que os explicou mencionando um "princípio da relatividade", afirmando que o movimento absoluto jamais seria detectado em laboratório; que isso demandaria um típo de dinâmica completamente nova.
Desde a época de Galileu, afirmava-se que não havia diferença alguma entre os estados estacionário e de movimento uniforme (estabelecida pela famosa Primeira Lei de Newton, ou Princípio da Inércia). O que Michelson e Morley haviam tentado realizar, foi, na verdade, a detecção do movimento absoluto da Terra. Se o resultado fosse positivo (afirmando a existência do éter), os dois físicos estariam demonstrando que existe uma diferença entre esses dois estados dos corpos: estacionário e em movimento uniforme.
As consequências disso foram discutidas entre cientistas da época, juntamente com a teoria do elétron, levando-os a tecer hipóteses sobre a relatividade dos movimentos e principalmente sobre algumas ideias talvez pouco evidentes, mas consistentes, sobre a natureza do movimento à velocidade da luz. Historicamente, criou-se um ambiente favorável para o surgimento do que mais tarde Albert Einstein viria a denominar Teoria da Relatividade Restrita.
Sobre os resultados negativos e os desdobramentos da Experiência de Michelson-Morley sobre o desenvolvimento da Teoria da Relatividade, há um artigo muito bom do professor Fernando Lang da Silveira, do Instituto de Física da UFRGS, que pode ser acessado aqui.
Acho que vários aspectos desse experimento são boa pauta do ponto de vista da filosofia e desenvolvimento histórico da ciência, mas isso prolongaria demais essa payada, por isso deixemos a discussão pros comentários ou futuros bochinchos intelectuais.
Abraço
Muito bom, ajudou-me muito. Obrigado
ResponderExcluirExcelente texto!!
ResponderExcluirMuito obrigada! Estava estudando o assunto e, graças ao seu texto, consegui entender muito bem!
ResponderExcluirEximia explicação!! Agradeço por disseminar o conhecimento da física, através de uma explicação brilhante!!
ResponderExcluirPayada das buena, Barradas!
ResponderExcluirÉ bom ver um biólogo transmitindo conhecimentos de física. Essa interdisciplinaridade é um dos fatores que precisamos buscar.
Vou me aproveitar da tua deixa do último parágrafo, em que tu destacou esse tema como uma boa pauta do ponto de vista da filosofia e história da ciência.
Bueno, podemos considerar esse famoso experimento que tu relataste como um caso típico do que Thomas Kuhn chama de “ciência normal”. Mais do que isso, ainda nos termos de Kuhn, ciência normal produzindo uma “crise” no “paradigma” vigente. A ciência normal é caracterizada como uma tentativa generalizada para forçar a natureza aos pressupostos do paradigma amplamente aceito pela comunidade científica da época. Isso envolve o que Kuhn chama de resolução de quebra-cabeças, isto é, operações de acabamento que são orientadas por um quadro mais amplo ao qual o cientista está de antemão comprometido.
O experimento bagual de Michelson-Morley é um caso exemplar de tentativa esforçada pra adequar os fenômenos ao paradigma vigente; no caso, ao paradigma da mecânica newtoniana. A luz deveria ser um movimento ondulatório que se propaga num meio mecânico (o éter) governado pelas leis de Newton. No entanto, a matematização do campo eletromagnético por Maxwell não envolvia qualquer referência a um meio de propagação. A tarefa era, justamente por isso, aprimorar a teoria de Maxwell, articulando-a melhor e aumentando sua precisão. Uma operação típica da ciência normal.
O próprio Maxwell acreditava que sua teoria era compatível com alguma articulação da concepção mecânica de Newton. Mas a teoria eletromagnética acabou por produzir uma crise no paradigma do qual emergira. Pra não me delongar demais e pra trazer pra roda de mate um vivente com mais propriedade, deixo o resto da charla pro Kuhn. Ele diz o seguinte em “A estrutura das revoluções científicas”, de 1962:
“os anos posteriores a 1890 testemunharam uma longa série de tentativas, tanto experimentais como teóricas, para detectar o movimento relacionado com o éter e introduzir este último na teoria de Maxwell. Em geral, as primeiras tentativas foram mal sucedidas, embora alguns analistas considerassem seus resultados equívocos. Os esforços teóricos produziram uma série de pontos de partida promissores, sobretudo os de Lorentz e Fitzgerald, mas também estes trouxeram à tona novos quebra-cabeças. O resultado final foi precisamente aquela proliferação de teorias que mostramos ser concomitante com as crises. Foi neste contexto histórico que, em 1905, emergiu a teoria especial da relatividade de Einstein.”
Interessante, né-não?!
Mas eu paro por aqui, porque o comentário já tá grande! =)
Um quebra costela do tamanho do pampa.