“Passei aqui a maior parte do dia procurando por ossos fossilizados. Além de um dente perfeito de Toxodon, e muitos ossos espalhados, achei dois esqueletos próximos um do outro (...), os restos pertenciam a dois mastodontes...”
Charles Darwin, Argentina - 1° de outubro de 1832
Preguiça terrícola - Megatherium americanum.
Sem refência do autor.
Sem refência do autor.
Quando convidado a prosear neste recinto fiquei, além de grato, indeciso com que assunto deveria abordar, e surgiu em minha mente, um tópico que adoro, e que Darwin também ficava intrigado. Vou tentar contar-lhes em algumas partes um pouco da história esquecida de nossa fauna e mostrar como a paleontologia pode contribuir de forma eficiente para assuntos que não a relacionamos normalmente.
Imagine o pampa, em um inverno parecido com o de agora, há apenas 8,8 mil anos atrás. Você sentado no descampado, observando ao longe, uma das últimas espécies de preguiças gigantes que vagavam pelo Rio Grande do Sul ao lado de emas e de uma família de graxains. Hoje, existem apenas dois gêneros de preguiças, mas outrora inúmeros representantes deste grupo vagavam pela América, e muitas espécies eram imensas, as chamadas preguiças terrícolas (imagem do topo). Todas as preguiças fazem parte de um grupo diverso de origem sul-americana que está vinculado intimamente com a história geológica deste continente. No Pleistoceno tardio, avantajados “elefantes”, os gonfotérios (imagem inferior), alimentavam-se de frutos assim como algumas preguiças terrícolas. Esta interação moldou ao longo de milhares de anos, uma relação ecológica dependente: preguiças e gonfotérios se tornaram importantes dispersores de sementes de algumas plantas.
Gonfotério - Haplomastodon waringi
Arte de Felipe Elias
Arte de Felipe Elias
Estes dois grupos são incluídos no que chamamos de megafauna, e ambos se extinguiram a menos de 10 mil anos. Muitos grandes vertebrados existiram no mundo durante o final do Pleistoceno, incluindo na África, Austrália, Madagascar, Sicília, Indonésia e América do Norte, além é claro, nos oceanos e nos rios. Porém, um evento global de extinção aniquilou com muitas destas linhagens de uma maneira rápida e muito recente. Mamutes, gliptodontes, litopteros e muitos outros deixaram de existir, assim como vários grupos de preguiças e todos os gonfotérios.
Mas qual foi o impacto deste evento sobre a dispersão de sementes?
Os pesquisadores Dennis Hansen e Mauro Galetti publicaram na revista Science de 2009, um estudo no qual foi estimado que nos continentes os herbívoros atuais representem uma redução de “uma” ordem de massa, isto é, animais como o gonfotério Haplomastodon de 7.580 kg foram “suplantados”, em peso, pelas antas Tapirus de apenas 300 kg. Em ilhas, este processo fora mais severo - acredita-se que de duas a três ordens de massa foram perdidas. Em Madagascar, as aves-elefantes Aepyornis maximus de 450 kg deram lugar às tartarugas radiadas Astrochelys radiata 10 kg e na Ilha Maurício, onde antes as tartarugas gigantes Cylindraspis triserrata, de 100 kg, eram os maiores herbívoros, hoje, este posto, é assumido pelo morcego das frutas Pteropus niger de 0,54 kg. É interessante supor que em ilhas, ocorre um evento representativo, porém mais rápido, do que deve ter ocorrido, por exemplo, na América do Sul.
Na Ilha Maurício, toda a grande fauna foi extinta, e um colapso no frágil ecossistema insular fora detectado – grande parte das espécies vegetais com grandes frutos não possui espécies da fauna restante compatível para a dispersão de suas sementes. É sabido que nos continentes o potencial de várias espécies de explorar os recursos deixados pela megafauna é maior do que nas espécies habitantes de ilhas.
Os pesquisadores apontam que se todos os grandes herbívoros atuais ameaçados de extinção na América do Sul desaparecessem, a dispersão de sementes passará a sofrer os mesmos impactos do que aquela observada na Ilha Maurício e com a mesma intensidade. O único herbívoro sobrevivente neste cenário seria o bugio Alouatta guariba (9 kg) 700 vezes mais leve que uma preguiça gigante. A espécie de anta que ocorre no Brasil é reconhecida como importante dispersora de sementes das espécies outrora dependentes da megafauna, incluindo espécies de palmeiras e jatobás. Antas necessitam de grandes áreas para sua sobrevivência e manutenção populacional.
Anta - Tapirus terrestris
ARKIVE
ARKIVE
Neste ponto, passamos a refletir que, o entendimento dos ecossistemas como sistemas complexos, variando ao longo do tempo, e que os impactos gerados por extinções de grandes herbívoros são aspectos importantes para guiar processos de conservação de espécies e biomas. Pode ser decisivo, por exemplo, quando recursos são escassos ou destinados a apenas algumas espécies e não a todas. Atualmente estudos de conservação da anta tendem a considerar a capacidade de dispersão de sementes além da alta mobilidade deste animal para medidas de conservação desta espécie ajudando assim outras espécies direta ou indiretamente influenciadas por ela. Espero que o leitor (que chegou até aqui) tenha gostado. Até a próxima.
Abraços,
Voltaire Paes Neto.
Referências:
Da-Rosa, Átila (Org.). Vertebrados Fósseis de Santa Maria e Região. Editora Pallotti. 2006
Hansen, D. M. & Galetti, M. The Forgotten Megafauna. Science 324, 42 (2009).
Novas, Fernando. Buenos Aires, un Millon de Años Atras. Editora Siglo XXI. 2006.
Para saber mais:
Cartelle, C.Tempo passado. Mamíferos do Pleistoceno de Minas Gerais. Editora Palco, Belo Horizonte. Brasil. 1994.
Holz, M. & De Ros, L.F. Paleontologia do RS. Edição CIGO-UFRGS. 2000.
Maciente & Ranzi. Megafauna
Antes de qualquer cousa, muito bem vindo, Voltaire.
ResponderExcluirSobre o assunto, li pobremente o Galetti, numa das disciplinas da faculdade, e não pude deixar de me impressionar com o que ele considera ser uma alternativa para reduzir o impacto do 'sumiço' dessa megafauna sobre a dispersão de sementes grandes. Eu poderia resumir só em "colocar hipopótamos no Cerrado", que ele realmente oferece como sendo uma opção, e o que me deixou bastante assustado. A 'opção' me parece absurda, mas isso é matéria de muita discussão, e espero que seja aqui também. segue o artigo no qual o Galetti dá a idéia dos hipopótamos e tal...
http://lanic.utexas.edu/project/etext/llilas/vrp/galetti.pdf
Alguns não veem a chegada dos humanos no continente americano como uma força capaz de extinguir a megafauna... dizem que os hominídeos não conseguiriam caçar esses animais com "paus e pedras" e que a extinção se deu por uma mudança climática que teria ocorrido há mais ou menos 10~12 mil anos.
ResponderExcluirNas palavras de Jared Diamond, porque essa extinção conincide temporalmente com a chegada do homem? Por que justamente essa mudança climática e não tantas outras já ocorridas foi responsável pela extinção dessa fauna? Por que o efeito tão maior da mudança sobre os animais de maior porte? E por que a expansão dos homens rumo ao sul do continente coincide com a extinção nesse mesmo sentido?
Esse seria um bom caso curioso pra aplicação do princípio de Occam!
Dá-lhe Voltaire, nosso correspondente do tempo geológico!
Vou escrever mais sobre alguns fatos e teorias sobre o final do Pleistoceno, e já adianto que extinção e evolução dos grupos estarão entre os assuntos.
ResponderExcluirMas falando sobre o que o Marcelo falou, acredito que como disse no post ecossistemas não são estruturas estáticas no tempo, e por mais belo e sonhador que seja a idéia de repovoar a América com representantes atuais de grupos que viveram no final do Pleistoceno ou aqueles parecidos com este... está fora, ao meu ver, do que nós, como humanos, devemos fazer.
Adianto um assunto que inclui os dois comentários: e a fauna de menor porte? O que aconteceu com ela?
Mas isso são assuntos futuros...
Abraços
Voltaire, como tu disseste em meados do século XVIII: "Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo."
ResponderExcluirBrincadeira!!
A payada foi ótima! Acho que pensar numa antiga megafauna habitando o pampa a poucos milhares de anos impressiona qualquer um. Dentes-de-sabre e preguiças gigantes mateando a meia braça de sol e contando causos de predação e de dispersão de sementes um para o outro devia ser um troço formidável!
Dejando de lado los disparates, essa visão funcinal da megafauna é extremamente interessante. A regulação "de cima pra baixo" (top-down) é bem conhecida na ecologia e poderíamos presumir uma grande alteração na extrutura de uma comunidade biológica e, conseqüentemente, no ecossistema devido à extinção da megafauna.
Mas a ciência com o objetivo de descrever e explicar fenômenos naturais não segue um continuum lógico de como deveríamos agir. A denominada "falácia naturalista" é comum e devemos nos cuidar com isso; embora seja bastante interessante a visão de Sam Harris sobre como poderíamos nos basear na ciência para "resolver" questões ético-morais.
Penso que toda ação política que envolvesse um conhecimento científico deveria levá-lo em conta. Isso é o que não aconteceu, por exemplo, na proposta de alteração do Código Florestal. Agora, isso não quer dizer que ciência e política seja a mesma coisa; é o outro lado que quero enfatizar: uma coisa é "o que é" (descritiva), outra é o que "deveria ser" (normativa).
O que quiz dizer com toda essa bagunça é que não é porque tínhamos (descritivo) uma exuberante megafauna em tempos passados que devemos (normativo) realocar a megafauna de outros continentes para "ajeitar" o nosso. E impressionantemente essa é a visão do Galetti: trazer elefantes, hipopótamos, impalas e outros mais para o Cerrado e Pantanal. Me parece uma visão estática de ecossistema; uma pretensão de congelá-lo como um retrato na escrivaninha.
Mas, fora isso, o Galetti é um ótimo contribuinte para conhecimentos em dispersão de sementes e muitas áreas da ecologia tiveram um grande avanço com os seus artigos; embora não acredito que essa idéia contribua para a conservação.
Mas não dêem bola pra mim, o cara publica na Science e é um dos maiores cientistas brasileiros na área ambiental!
obs.: Muito boa a prosa, Voltaire. To esperando as próximas! Abraços
Caraca...
ResponderExcluirPois bem, não queria entrar neste assunto, mas não tentei, de maneira alguma, argumentar tal idéia de que devemos repovoar a América com grandes mamíferos... mas no que justamente o entendimento científico do processo de extinção reflete no "padrão" que temos hoje... no caso acho que é crucial entender que o "papel" da anta é de extrema importância hoje em relação as espécies de plantas que atualmente dependem dela para a dispersão de suas sementes.
Em nenhum momento do texto tentei inferir isso... mas utilizei um artigo que fora escrito por Galetti que defende esta idéia.
No mais, não sou partidário destas idéias, mas acho, como disse antes: ecossistemas mudam... mas entender porque eles mudam também é assunto de paleontologia!
Abraços!
Voltaire, teu texto não inferiu nada em relação a isso. Pode ficar tranquilo!
ResponderExcluirComo eu já disse, gostei bastante do texto. Acho extremamente importante tentar entender o papel da antiga megafauna nos ecossistemas onde elas estão extintas, e muito desse entendimento se dá fazendo analogias com o papel da megafauna onde ela ainda existe.
Mas isso não tem nada a ver com a questão normativa de que deveríamos repovoar nossos ecossistemas com a megafauna existente em outros continentes. Tu não falou nada em relação ao que devemos fazer (a não ser nos comentários, quando inclusive tu enfatizou que não concorda com a visão do Galetti).
Acho que os comentários desviaram um pouco do texto porque como o Galetti foi citado, o Marcelão lembrou do texto que ele expõe a sua idéia em relação ao que deveríamos fazer. Como o Marcelão pediu no 1º comentário para continuarmos a discussão da visão "normativa" do Galetti com relação a megafauna, eu simplesmente continuei botando a lenha de maricá no fogo de chão!
Portanto, a discordância é em relação ao Galetti e não a ti (Voltaire).
Abraços
Muito bom Voltaire, sê bem vindo!
ResponderExcluirGostei do teu texto, só achei infeliz a tua ideia de introduzir uma nova megafauna para substituir a que foi extinta...
Tô brincando!
xD
Acho que a melhor maneira de tentarmos compreender o futuro é entender o passado. Quando conseguimos entender as causas que levaram a uma situação indesejada, podemos evitar que ela ocorra novamente.
Gosto muito da ideia de utilizar a análise ecossistemas complexos, atuais e de outrora (ou qualquer outro conhecimento científico), para tomarmos decisões importantes, como a preservação de uma espécie ou a manutenção de um código florestal (o que infelizmente não ocorre, como bem ressaltou o Claudinho).
Enfim, fico feliz pela nova "aquisição" do blog, é bom ter um paleontólogo no time do Adaga!
Ficam aqui meus abraços gaudérios e minha expectativa por novas postagens!