domingo, 12 de junho de 2011

Filosofia da Biologia: limites para o reducionismo fisicalista

"Bastou que os vitalistas fizessem da totalidade estruturada do objeto orgânico um fator sobrenatural, em relação ao qual toda tentativa de análise causal constituísse um sacrilégio, para que os mecanicistas [entende-se reducionistas] caíssem em um esquecimento cego da totalidade e em um atomismo extremo, falso do ponto de vista metodológico." Konrad Lorenz, zoólogo e etólogo austríaco.

Uma interação sensacional entre mariposa e orquídea.


Há alguns dias tive acesso a um ótimo livro didático para cursos de introdução à filosofia, denominado Compêndio de Filosofia. O livro é divido em duas partes: a primeira expõe as diferentes áreas de atuação da filosofia (como epistemologia, ética e filosofia política e social, por exemplo) e a segunda se refere à história da filosofia (com capítulos sobre Platão e Aristóteles, Hume, Kant e Marx, por exemplo). Cada uma das áreas compreende 21 capítulos. O livro está na sua terceira edição brasileira (traduzida), de dezembro de 2010. Tem alguns exemplares na biblioteca das ciências sociais da UFRGS, para quem se interessar.

O capítulo 10 da primeira parte (Áreas da Filosofia) é intitulado Filosofia da Biologia. É escrito por um dos mais eminentes filósofos da biologia, Elliot Sober (acesse sua página aqui), autor de importantes livros como The Nature of Selection (1984) e Philosophy of Biology (1993).

O que quero nesta postagem é apenas transcrever uma parte deste capítulo e, talvez, suscitar alguns comentários. A parte que transcrevo a seguir trata, como já discutido neste blogue (aqui, por exemplo), de questões referentes ao “reducionismo” na Biologia:

* Tomei a liberdade de excluir as citações ao longo do texto, para ficar mais dinâmico e por se tratar de uma postagem em um blogue.

---------------------------------------------------------------------------------

Vitalismo, Superveniência e Reducionismo

Como se relacionam as propriedades e os processos biológicos mencionados com as propriedades e os processos físicos? Esta questão é precisamente análoga à do problema mente-corpo na filosofia da mente. Assim como o dualismo cartesiano sustenta que os indivíduos possuem propriedades mentais em virtude de possuírem mentes que são formadas por substâncias não-físicas, do mesmo modo existe uma posição na filosofia da biologia que defende que os seres vivos possuem propriedades biológicas em virtude de conterem uma substância não-física (um elã vital bergsoniano) que os dota de vida. Trata-se do vitalismo, em um dos muitos sentidos que o termo adquiriu.

Se o vitalismo fosse verdadeiro, a tese da superveniência, muito discutida na filosofia da mente, seria falsa. Essa tese sustenta que se dois indivíduos fossem fisicamente idênticos e vivessem em ambientes fisicamente idênticos então seriam idênticos em todos os aspectos. Teriam as mesmas propriedades psicológicas, bem como as mesmas características biológicas. A divisa que resume a superveniência é “Não há diferença sem diferença física”. Superveniência é uma reivindicação sincrônica, diferente da reivindicação diacrônica que constitui a tese do determinismo causal.

A maior parte dos biólogos e filósofos da biologia acredita que a tese da superveniência é correta. Por exemplo, se dois organismos são fisicamente idênticos e vivem em ambientes fisicamente idênticos então devem ter o mesmo valor adaptativo. Adaptação de um organismo é sua capacidade de sobreviver e se reproduzir. Em parte, a tese da superveniência foi aceita porque a alternativa não parece ter conduzido a qualquer coisa substancial em ciência. A ciência efetuou grandes avanços na compreensão das bases físicas da respiração, da digestão, da reprodução e de outros processos biológicos. Porém, a hipótese de que seres vivos possuem algo imaterial não levou a nada. Ainda assim, pode-se perguntar o quão fortemente os retrospectos do fisicalismo, por um lado, e do vitalismo, por outro, estabelecem que a tese da superveniência é verdadeira.

Embora o fisicalismo na forma da tese da superveniência seja amplamente aceito, a maior parte dos filósofos da biologia rejeitam a asserção de que a biologia se reduz à física. Suas razões recapitulam a discussão do funcionalismo e da múltipla realizabilidade em filosofia da mente. Ainda que a adaptação de um organismo se sobreponha a suas propriedades físicas, e estas a seu ambiente, a adaptação não é ela própria uma propriedade física. O que uma orquídea adaptada e uma lontra adaptada têm em comum? Não há propriedade física, ou conjunto de propriedades físicas, que defina em que consiste a adaptação. A adaptação pode se realizar de múltiplas formas. A teoria da seleção natural estabelece generalizações em termos do conceito de adaptação; uma vez que a adaptação não é uma propriedade física, a teoria da seleção natural não pode ser reduzida à física. Isto é anti-reducionismo sem vitalismo. Não há substâncias imateriais no objeto da biologia, mas propriedades biológicas descrevem similaridades que existem a despeito das diferenças físicas. Cada organismo adaptado é uma coisa física, mas a adaptação não é uma propriedade física. Um raciocínio similar a este levou alguns filósofos a argumentar que a genética mendeliana não pode ser reduzida a teorias de biologia molecular; no entanto, pode-se examinar em que consistem essas teorias, e também questionar como se deve entender o reducionismo...

---------------------------------------------------------------------------------

2 comentários:

  1. Fica a dica de leitura então: Biologia, ciência única. Ernst Mayr.

    ResponderExcluir
  2. (Não é anônimo, porcaria nenhuma)
    Cláudio Reis disse...

    O primeiro livro de divulgação científica que li foi "Isto é Biologia - a ciência do mundo vivo", do Mayr. Fiquei impressionado e tenho quase certeza que foi por causa deste livro que comecei a ser cético com relação ao reducionismo fisicalista na biologia.

    Assim como os criacionistas argumentam que essa imensa variedade de seres vivos não poderia ter surgido ao acaso e, portanto, deveria ser obra de um ser superior, muitos reducionistas pensam que se a biologia não puder ser reduzida a física algo de sobrenatural, como uma alma ou um elã vital, deveria existir. Então, como não acreditam no sobrenatural acham que a biologia é 'reduzível' à física. Porém, isso é uma falsa dicotomia. A questão é que a biologia possui conceitos que simplesmente não existem na física e não seriam explicados por ela.

    Não quer dizer que a física não seja importante para a biologia, porque sabe-se que é, assim como a biologia molecular é importante para a biologia como um todo. Mas existem diferenças entre áreas da biologia e entre essa e a física que é importante enfatizar.

    "Biologia, ciência única" é um livro que eu estou para ler a bastante tempo, principalmente porque trata desse assunto. Por sinal, muito boa a postagem do Gilberto sobre o livro, e muito interessante a entrevista com o Mayr...

    Para quem quiser:
    http://naturalistaemcena.blogspot.com/2011/03/biologia-ciencia-unica.html

    Abraços

    ResponderExcluir