quarta-feira, 19 de maio de 2010

A visão reducionista e a visão sistêmica na Ciência


Bueno, gaudérios e prendas, resolvi prosear outra vez. Já preparei um mate e vou começar minha payada, depois de um tempo ausente. Hoje, o assunto é sobre dois grandes paradigmas conceituais e suas maneiras de fazer Ciência. Vou começar com uma breve introdução no pensamento sistêmico por que me veio um bom exemplo, e estou com ele na mão: a cuia.
 
Refiro-me à cuia como o local aonde vai a erva, a água e a bomba, não como fruto da cuieira. É um conceito, pois, funcional. Independente do material de que a cuia é feita (barro, pedra, latão, fruto de uma árvore). Assim como o conceito de copo é independente de sua natureza material. No entanto, essa função só é possível por que o objeto é feito de matéria, ou seja, para deixar claro, não estamos falando em questões metafísicas. Lá vai!


De acordo com o método analítico, a melhor maneira de se entender a natureza consiste em reduzi-la a tantas partes quantas for possível, as quais são, a seguir, analisadas em detalhe. Ora, todos sabemos que a cuia, uma vez fragmentada, deixa de ser cuia, pois perde a sua função. No caso de uma cuia que é um fruto, como a que eu tenho na mão, poderemos aprofundar-nos no conhecimento de sua estrutura molecular, atômica, subatômica, enfim, na sua natureza material mas nos distanciaríamos cada vez mais do seu conceito de cuia, o qual é ligado a sua função (como a conceituei no início). Com a fragmentação, algo foi perdido, alguma ligação entre as partes, ligação essa que é indispensável à compreensão do todo. Isso ocorre porque a fragmentação acaba com a organização do sistema. E é essa organização que permite a função. E é essa função que define o conceito.


Primeiramente, vamos nos contextualizar (palavra essa que os reducionistas fazem questão de deixar de lado). Porém, sabemos que o contexto – ou ambiente nas ciências naturais – é importante se desejamos compreender um pouco melhor qualquer assunto.


Nos séculos XVI e XVII, a visão de mundo medieval, baseada na filosofia aristotélica e na teologia cristã, mudou radicalmente. A noção de um universo orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela noção do mundo como uma máquina, e a máquina do mundo tornou-se a metáfora dominante da era moderna. Essa mudança radical foi realizada pelas novas descobertas em física, astronomia e matemática, conhecidas como Revolução Científica e associadas aos nomes de Copérnico, Galileu, Descartes, Bacon e Newton.


Com a Revolução Científica, a Ciência se desvinculou, de certa maneira, da Filosofia e passou a constituir uma disciplina autônoma baseada no método científico. Esse método, inicialmente apresentado por Descartes no Discurso Sobre o Método (1637), é essencialmente analítico. Consiste em quebrar os fenômenos complexos em pedaços a fim de compreender o comportamento do todo a partir das propriedades de suas partes.


O arcabouço conceitual criado por Galileu e Descartes – o mundo como uma máquina perfeita governada por leis matemáticas exatas – foi completado de maneira triunfal por Isaac Newton, cuja grande síntese, a Mecânica Newtoniana, foi a realização que coroou a ciência do século XVII.


Obviamente, essas descobertas foram extremamente importantes para o conhecimento científico, e eu não seria audacioso o suficiente para “diminuir” o trabalho desses grandes pensadores. Mas, mesmo assim, vejo limitações no pensamento reducionista. Pois, se o objetivo da ciência é entender a natureza tal como ela é na realidade, o uso de apenas o método analítico deixará a ciência um tanto distante do mundo real. Esses cientistas trabalharam num universo extremamente restritivo, de maneira que seus postulados são verificados apenas quando se desconsidera variáveis ou quando se isola o objeto de estudo do sistema maior no qual está inserido.


Newton mostrou ao mundo como descrever de uma forma exata e determinada a interação dos corpos – objetos com massa – mas tal interação está limitada a apenas dois corpos (desconsidera outras interações com outros corpos) além de não considerar, por exemplo, a força de resistência do ar (excluindo variáveis reais). Mesmo assim, é claro que tais descobertas produziram um avanço tremendo para a ciência da época e por isso acho merecedor o termo Revolução Científica. No entanto, o que eu quero mostrar é que a realidade difere e muito do que o reducionismo propõe. A natureza é mais complexa e muito dela se perde quando é utilizado apenas o método analítico.


Hoje, nas Ciências Biológicas, o “programa reducionista de pesquisa”, que tem por meta reduzir todas as propriedades e fenômenos da vida aos processos físicos e químicos, busca explicar os sistemas vivos dentro da estrutura dessas outras duas ciências. Porém, pensadores sistêmicos opõem-se a esse tipo de redução na Biologia. Embora as leis da física e da química sejam aplicáveis aos organismos, elas são insuficientes para uma plena compreensão dos sistemas vivos.


O comportamento, por exemplo, de um organismo vivo como um todo integrado não pode ser entendido apenas a partir do estudo de suas partes. Como dizem os teóricos sistêmicos, o todo é mais do que a soma de suas partes (pode ficar tranqüilo, xiru/xirua, a lógica não foi atorada pela adaga não; é que estamos falando em termos qualitativos e não quantitativos).


Esse algo a mais é a organização, proporcionada pela entrada de energia no sistema e que se reflete em informação. A energia que entra no sistema permite uma maior complexidade, que é gerada por um número maior de interações entre os elementos. Assim, a ordem gera novas propriedades para o todo, chamadas propriedades emergentes, por emergirem em um nível mais alto de integração e não poderem ser previstas a partir dos componentes em níveis inferiores. Aí está a explicação para a objeção dos teóricos sistêmicos quanto à redução da Biologia à Física e à Química.


É lógico que os constituintes e os processos nos sistemas vivos são de origem física e química, isso não há de se duvidar. Como se formariam sistemas vivos naturais se não fosse com elementos e processos dessas outras duas ciências? A diferença, porém, está na alta organização e complexidade dos sistemas biológicos. O conceito de herança, de evolução, de autopoiese é abstraído do mundo natural e são, portanto, de natureza física e química. Porém, sistemas físicos não possuem essas propriedades, o que dá autonomia às Ciências Biológicas em relação a outras Ciências, de maneira que a tentativa de explicar sistemas vivos baseando-se apenas em propriedades existentes em sistemas não-vivos deixará uma boa parte da Biologia sem explicação.


Propriedades emergentes, no entanto, não são exclusivas do mundo vivo. As ligas metálicas, por exemplo, possuem propriedades que não existiam em cada um de seus componentes isolados. No caso da água, a “aquosidade” não pode ser prevista a partir das características de seus dois elementos, hidrogênio e oxigênio. Sistemas químicos auto-organizadores, como as “estruturas dissipativas” de Ilya Prigogine, também possuem diversas propriedades emergentes.


A Adaga do Xiru Occam, ou Navalha de Occam, pode ser vista como um princípio reducionista apenas em termos. Como sabemos, esse princípio afirma que quando duas ou mais teorias possuem o mesmo poder explicativo, ou mesma capacidade na resolução de problemas, a melhor teoria é aquela que explica o fenômeno de maneira mais simples. Ou seja, a teoria mais simples é a melhor apenas quando tem a mesma capacidade explicativa das teorias mais complexas. Esse princípio é extremamente importante para a ciência, mas deve ficar claro que a comparação das teorias deve se restringir àquelas que têm o mesmo poder na resolução de problemas. Ela só é reducionista nesse sentido e por isso não é um campo de objeção para os teóricos sistêmicos. Não se pode utilizar o princípio da Adaga de Occam para reduzir, por exemplo, a Biologia à Física e à Química. Porque, como sabe qualquer estudante de Biologia, existem inúmeros conceitos – como territorialismo, exibição, evasão de predadores, entre outros – que explicam fenômenos de âmbito puramente biológico.


Tanto um reducionismo quanto um “sistemismo” extremados são prejudiciais e alienadores para quem os segue. Desconsiderar a organização e interação dos elementos num sistema é um procedimento tão cego quanto se ater apenas as conexões no sistema sem considerar seus elementos. Na verdade, a visão sistêmica que não dá valor algum à análise torna o todo incompreensível e, de certa maneira, dogmático. Porque para entender as interações é necessário conhecer os elementos do sistema, por mais que as propriedades do sistema não sejam intrínsecas a esses.


É isso, gauchada, acabei me estendendo demais! Um abraço a todos e até a próxima prosa. Agora to indo jantar um carreteiro de charque macanudo, desses que o bagual enceba o bigode...

6 comentários:

  1. Muito bem, seu Reis!

    O que me incomoda na dissociação das ciências biológicas das físicas é justamente a respeito dessas novas características que surgem, as quais tu atribuíste à maior complexidade das relações entre as partes. Então, um aumento na complexidade do sistema pode criar novas propriedades não preditas pela análise das partes isoladas? (pergunta não retórica)


    Não sou um reducionista metodológico (termo novo... hehe), concordo contigo e com o Mayr que a ciência da biologia tem, de fato, características intrínsecas diferentes daquelas das ciências físicas. Mas não entendo como o mundo biológico seja essencialmente diferente do mundo físico. Nesse caso, me considero um reducionista filosófico (termo novo #2), aceitando que as peculiaridades da biologia com relação à física são resultado de falhas do método.

    A visão sistêmica seria uma correção, na escala biológica, para relações negligenciadas na escala física? Me parece uma boa...

    Agora, se os mundos físico e biológico diferem essencialmente, que descubra-se essa essência antes que isso vire argumento criacionista! hehe

    Então tá, abraço!

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  2. Ótimo comentário, seu Barradas!

    Em relação a tua pergunta:

    "Um aumento na complexidade do sistema pode criar novas propriedades não preditas pela análise das partes isoladas?"

    A resposta é SIM. É daí que surge a crítica dos pensadores sistêmicos em relação ao método puramente analítico. Por mais que tu analise os elementos do sistema, tu não conseguirá explicar algumas propriedades (chamadas propriedades emergentes) que surgem em um nível maior de organização, ou seja, na interação desses elementos.

    Considerando a tua afirmação:

    "Não entendo como o mundo biológico seja essencialmente diferente do mundo físico."
    Para mim, o mundo biológico não é essencialmente diferente do mundo físico, até por que ele se originou desse. A diferença de sistemas vivos para sistemas não-vivos é contínua, e o limite entre esses é questão de quais características serão usadas para definir o que é vivo e o que não é, ou seja, é um tanto arbitrário. Mesmo assim, sabemos que existem difenças entre sistemas vivos e não-vivos, embora o limite entre esses sistemas seja "confuso". Sabemos que existem diferenças entre um puma e uma rocha.
    Eu tentei deixar claro que não existem dois mundos (biológico e físico), pois como eu mencionei no texto "Como se formariam sistemas vivos naturais se não fosse com elementos e processos dessas outras duas ciências? (a Física e a Química)".

    Em relação a tua outra afirmação:

    "Me considero um reducionista filosófico, aceitando que as peculiaridades da biologia com relação à física são resultado de falhas do método."

    A meu ver, as peculiaridades da biologia não estão relacionadas com o método. Vamos considerar, como exemplo, a evolução da espécie humana. Essa espécie possui peculiaridades, assim como qualquer outra espécie. Não é uma questão de método ou de essência o que a difere das demais. Ou seja, vejo as peculiaridades da biologia simplesmente como peculiaridades, as quais surgem, inclusive, da própria Física e Química. Já superamos o velho Vitalismo e sabemos, pois, que não há uma força oculta ou um 'élan vital' que diferencie esses sistemas.

    E, por último, quando tu perguntou se

    "A visão sistêmica seria uma correção, na escala biológica, para relações negligenciadas na escala física?"

    Eu não vejo assim, pois essas relações foram negligenciadas na escala física por um bom tempo, assim como também o foram na escala biológica; porém, a visão sistêmica hoje também é utilizada na Física. Principalmente na Física subatômica, pois o que antes parecia ser a matéria elementar passou a se constituir interações entre partículas ainda mais elementares. Em outras palavras, as partículas subatômicas não são "coisas", mas interconexões entre coisas, e estas, por sua vez, são interconexões entre outras coisas, e assim por diante. No nível subatômico não se trabalha com "coisas", se lida com interconexões. Vendo dessa maneira, na Física a visão sistêmica se tornou ainda mais revolucionária.

    É isso, um abraço!

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  3. Espero não ter deixado argumentos para os criacionistas! heheheh

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  4. Bueno!

    É realmente um problema saber até que ponto é importante fragmentar e reduzir o conhecimento para entender o sistema. Por um lado o sistema é tão complexo que é dificil de ser explicado com um modelo e por outro, de alguma maneira, temos que explicá-lo (ou não?).

    Agora, pegando o gancho do Barradas (olha a malícia!), também não consigo ver uma diferenciação essencialista entre a biologia e a química e a física. O objeto de estudo da biologia é a vida. É possível traçar uma linha que determine o limite do que é vida e do que seriam "apenas" moléculas orgânicas (com propriedades físico-químicas)?

    Por outro lado, não seria uma visão fundamentalista buscar padrões básicos para explicar todos os níveis? (extrapolando a visão do Dr. Guillermo Folguera, que palestrou sobre evolução no começo do mês).

    Divagando um pouco mais.. é a evolução uma característica apenas biológica? Como é citado no livro de Dawkins "A grande história da evolução", o físico teórico Lee Smolin dá uma interpretação darwiniana para evolução do universo. Segundo ele, universos originam universos "filhos", que variam em suas leis e suas constantes. Esses universos "filhos" nasceriam de buracos-negros produzidos por um universo "pai" e herdariam suas leis e suas constantes, mas as vezes ocorreriam pequenas mudanças aleatórias (analogia à mutações). Os universos-filhos que tem capacidade de gerar buracos negros (se "reproduzem"), passariam essas leis e constantes adiante. "Apesar de ser uma teoria supérflua, nada do que sabemos pode refutá-la e além disso Smolin reivindica o mérito de que ela pode ser testada" conta Dawkins. Essa teoria está no livro "A vida e o cosmos".

    Entonces.. ficaram várias perguntas..

    Um abraço

    Ismael Verrastro Brack

    OBS: escrevi este comentário enquanto o Cláudio escrevia o dele. Algumas questões já foram colocadas por ele.

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  5. Uma palavrinha muito interessante e que se aplica a resolução e tentativa de equilibrio nessas questões seria: INTERDISCPLINARIDADE.

    Abração gauderiada bagual...

    Parabéns Claudinho, texto buenacho!

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  6. bã. por onde se começa? bueno, primeiro amacia-se, depois que se dá o tapa, diz o ditado(que não é absoluto de forma alguma:às vezes tapa é carinho).Mas não to aqui pra falar de ditado.

    che Cláudio, coisa boa essa payada baguala. Bem aquela discussão que tivemos, eu e mais três dos senhores que postaram, na saída duma aula de bruxar...ecologia.

    bueno. dos modelos: repito nos comentários o que disse na conversa - no livro do xirú Dawkins intitulado "o gene egoísta" ele comenta sobre consciência e o estudo da consciência, alguns MODELOS que alguns senhores renomados bolaram. Fiquei especialmente impressionado com um de um psicólogo de sobrenome Humpfrey que, bom psicólogo evolucionista que é, diz que a consciência há de ter emergido a partir do momento que animais sociais(tipo nós), que já tinham criado em suas mentes modelos de mundo, necessitaram criar um modelo que englobasse os outros animais sociais, haja vista a constante mentira, enganação e a necessidade de se imaginar o que o outro pensa, baseado no que o próprio animal refletidor pensa.

    bueno, deixando pra lá o exemplo(e, se isso fosse uma redação de vestibular, já seriam dois tangenciamentos), to tendendo a continuar achando o reducionismo dos modelos uma coisa danada de boa. sim, se deixa um monte de coisa de lado, mas diminuir as variáveis, e mudar as variáveis que se vai evitar, faz com que se entenda o básico e, dessa base, parte-se pra algo maior.
    das propriedades emergentes terem uma soma maior que as partes, provável que se enxergue esse "a mais" só depois de ter destrinchado o bicho todo, comparado os pedaços com o bicho inteiro e, daí, descobrir porque 1+1 deu 3 e tentar achar o “um’’ perdido. To praticamente defendendo uma “anatomia comparada de modelos”(faz melhor, Barradas). O que acho válido, sempre, é manter em mente que se está trabalhando com um pedacinho e, mesmo quem trabalha com tudo junto pode, eventualmente, saber tão pouco de um determinada coisa(ou muito de uma coisa só, que é a interação) que o trabalho total -a explicação do natural - se torna obrigatoriamente um trabalho de grupo.. E é bem isso o bonito, da ciência ser uma coisa multidisciplinar mas, além disso, coisa de bicho social.

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