sábado, 9 de julho de 2011

"Globalização" também em nossa língua?



Artigo de Éda Heloisa Pilla, autora de "Os Neologismos do Português e a Face Social da Língua"(AGE, 2002), professora de letras da UFRGS.

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É possível inovar em português

"Adoção indiscriminada de 
palavras em inglês no Brasil despreza 
mecanismos de renovação de nossa língua"

Novas palavras geradas pelas línguas obedecem a uma coerência, em razão da relação que elas mantêm com as outras palavras já existentes nesse sistema linguístico. Conforme colocou Ferdinand de Saussure em sua teoria estruturalista, o léxico das línguas (vocabulários) se assemelha a um tecido onde todas as malhas são interdependentes e se condicionam mutuamente. Quando uma nova malha é acrescentada ou modificada, todo o sistema é abalado.

O sistema cultural que dá suporte à língua é, ao mesmo tempo, causa e efeito ao engendrar as palavras, pois ele é tanto afetado pelas significações das já existentes como responsável pelo surgimento das novas. A integração entre léxico e cultura constitui a identidade da língua. Por isso, cada sistema linguístico é único e explica por que cada língua conceptualiza o mundo a sua maneira e difere das demais.

Sendo assim, ao adquirir sua língua materna, um falante já herdaria toda a carga de significações contida em suas palavras. Esse processo (diferente de língua para língua) molda a maneira específica com que interpretamos o mundo, constituindo uma lente através da qual percebemos as coisas.

A diversidade linguística, porém, não se refere apenas às diferenças entre línguas/culturas, mas também, e sobretudo, à necessidade de manutenção dessas diferenças. Ela constitui uma riqueza natural inestimável a ser preservada acima de qualquer interesse econômico, comercial ou político.

Em muitos momentos da história, entretanto, essa ordem foi ameaçada ou quebrada.

Muitas línguas desapareceram em razão da extinção física de seus usuários, como as línguas indígenas do Brasil; outras se enfraqueceram e perderam seu status de línguas oficiais pela imposição da língua e cultura do colonizador, como o caso das línguas nacionais da Índia, durante os 80 anos de colonização inglesa, e outras, ainda, sofreram sanções temporárias, como o português do Timor Leste durante a invasão indonésia e o catalão durante a ditadura franquista. Essas duas últimas se reergueram graças à perseverança, coragem e zelo de seus usuários.

Todos esses exemplos mantêm um traço comum: quase sempre a causa do desaparecimento ou enfraquecimento da língua se deveu a relações de poder e dominação.

"As palavras que entram em nossa 
língua tomam o espaço das nossas,
inibem a criação de novas segundo
nossas normas, subvertem nossa fonologia 
ou mesmo nossos valores culturais."

No caso do Brasil, o que se verifica é um uso extensivo de palavras de outra língua, mormente do inglês, que penetram em nosso léxico à distância, por assim dizer, sem a imposição explícita de um invasor, mas tampouco sem restrição ou resistência por parte dos usuários da língua receptora. Talvez por essa razão, o fenômeno venha tomando proporções alarmantes, extrapolando o limite do razoável. As palavras que entram em nossa língua tomam o espaço das nossas, inibem a criação de novas segundo nossas normas, subvertem nossa fonologia ou mesmo nossos valores culturais. Mas o pior não é a quantidade (não há estatísticas sobre isso), mas a instalação de uma tendência aceita e estimulada, entre outros, pelos meios de comunicação e pela propaganda.

Como os novos termos, normalmente introduzidos pela literatura que acompanha uma inovação técnica, tecnológica, científica ou literária, não são traduzidos ou não se criam palavras nacionais para substituí-los, a perspectiva é de que, em um futuro não tão remoto, nossa língua possa se restringir a um uso doméstico-familiar, e, quando tivermos que falar ou escrever sobre temas especializados, terá de ser em inglês, pois não disporemos de vocabulário para tal. Esse é o caminho que conduz à homogeneização linguística.

Tendo sido rompida uma ordem natural, é necessária a interferência humana para resgatá-la. As línguas enriquecem quando exploram seus próprios recursos. O inglês vem fazendo isso sistematicamente, mas nós, não. Em vez disso, copiamos as palavras dele, que nada têm a ver com a natureza semântica, sintática, morfológica e, muito menos, fonológica do português.

O princípio que promove a criação de novas palavras ou expressões relacionadas e condicionadas às já existentes, mencionado acima, ao mesmo tempo que respeita um sistema anterior organizado, facilita o entendimento da nova palavra por parte dos demais falantes, proporcionando-lhes meios naturais de decodificá-la.

Por um processo de derivação muito prolífico para cunhar palavras novas, em quase todas as línguas, a nominalização, criou-se, em inglês, a palavra bullying, um deverbal, a partir do verbo to bully + o sufixo ing, ambos já pertencentes àquela língua, de longa data. O verbo to bully (já derivado de bull) derivou, por sua vez, bullying por analogia a outros casos já lexicalizados da mesma forma que o verbo to solve (solucionar) derivou solving (solução); to read (ler) derivou reading (leitura) e to meet (encontrar) derivou meeting (encontro). Sendo assim, bullying é uma palavra facilmente decodificável, previsível e virtualmente presente na consciência dos falantes de inglês. Para nós, entretanto, ela é totalmente estranha, alheia ao nosso sistema, e por isso não nos diz nada.

O sufixo nominalizador -ing ,por sua vez, é tão fecundo quanto os nossos: -ção, -mento e -ança (entre outros) que também formam substantivos a partir de verbos. Vejamos os exemplos, em português, de verbos já lexicalizados como: preservar que derivou preservação; motivar que derivou motivação; sucatear - sucateamento; enfrentar - enfrentamento; gastar - gastança e cobrar - cobrança.

Por outro meio de derivação – a composição –, foi criada, em inglês, a expressão: home-theater, cunhada a partir de dois itens lexicais já existentes naquela língua: home e theater, e por um processo sintático absolutamente previsível da língua inglesa. Trata-se de uma colocação nominal que corresponde, em português, a formações ligadas pelas preposições de, em ou por hífem, como por exemplo: cartão de crédito (tradução de credit card); ciência da computação (de computer science); fermento em pó (de baking powder); questão-chave (de key question) e livro-texto (de text book), e assim por diante. Por que não traduzir home- theater por cinema em casa?

Ainda outro tipo de criação lexical usado pelas línguas é a mutação de sentido que ocorre no neologismo semântico. Isso se dá quando um conteúdo novo é denominado por uma palavra já existente. O inglês é abundante neste recurso. É o caso de chip (que significa lâmina), hardware (produto; artefato; equipamento de metal); mouse (rato); stand by (espera) e attached (unido/junto), para citar alguns exemplos. Todos já existiam antes de assumirem novos sentidos no campo semântico da computação.

Aqueles que conhecem os recursos da língua portuguesa para criar novas palavras, professores, linguistas e estudiosos das línguas em geral, devem estar se perguntando por que os brasileiros, de algum tempo para cá, estão sabotando sua língua e sua cultura, e adotando, irresponsavelmente, palavras de outro sistema linguístico que usa exatamente os mesmos meios de geração de palavras de que nós dispomos.
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Fonte: ZH/CULTURA, 02/07/2011

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