Trecho de “Marxismo e anarquismo: aproximação, síntese ou separação?” escrito em 1989 por Éric Vilain.
Se, quando se fala de marxismo, é
necessário precisar de qual marxismo se trata, o mesmo ocorre em relação às
concepções marxistas do Estado. Eu disse há pouco que a recuperação de temas
anarquistas foi denunciada pelo próprio Bakunin: trata-se do livro que Marx
escreveu no dia seguinte à Comuna, A Guerra Civil na França. É
uma obra em que Marx descreve a Comuna retomando por sua conta o ponto de vista
federalista, quando sabemos que ele odiava o federalismo. O efeito da Comuna,
diz Bakunin,
“foi
tão formidável em toda parte que os próprios marxianos, cujas idéias haviam
sido todas derrubadas por essa insurreição, viram-se obrigados a tirar o chapéu
diante dela. Fizeram bem mais: ao contrário da mais simples lógica e de seus
sentimentos verdadeiros, eles proclamaram que seu programa e seu objetivo eram
os deles. Foi um travestismo verdadeiramente bufão, mas forçado. Tiveram de
fazê-lo, sob pena de ver-se suplantados e abandonados por todos, de tanto que a
paixão que essa revolução havia provocado em todo mundo fora poderosa.”
Encontramos o mesmo processo durante a
Revolução russa, com O Estado e a Revolução de Lênin, que passa por
conter o auge da teoria marxista do definhamento do Estado, mas que é só um
amálgama confuso. Lênin redigiu esse livro para tentar aproximar-se do
movimento libertário russo, muito ativo em uma época em que o Partido
bolchevique representava muito pouco.
O que se passa na realidade? Os movimentos
revolucionários apresentam um certo número de constantes entre as quais a
predisposição a constituir instituições autônomas nas quais as massas tentam
organizar-se. Esta é uma tendência natural. As vanguardas autoproclamadas não
têm evidentemente lugar nesse movimento inicial, mas elas fazem o que podem
para recuperá-lo: para isso, devem seguir a correnteza, e, em seguida, retomar
a situação quando as coisas estão sob controle. No caso da Revolução russa, não
é necessário fazer um desenho: a história mostrou qual era a realidade do
leninismo. No caso de A Guerra Civil na França, há um meio simples
para saber o que Marx pensava realmente: basta reportar-se a uma carta que ele
escreveu a seu amigo Sorge, na qual exprime sua fúria ao constatar que os communards refugiados em Londres não se
juntaram a ele:
“E
eis a minha recompensa por ter perdido quase cinco meses trabalhando a favor
dos refugiados, e por ter salvado sua honra, pela publicação de A Guerra
Civil na França.”
Este livro de Marx muito serviu para tentar
dar ao marxismo uma pequena aparência vagamente libertária — malgrado tudo o que
seu autor escreveu sob outro ponto de vista —, e poderá eventualmente ainda
servir de manifesto libertário aos marxistas que quiserem refazer a fachada de
sua doutrina. A carta a Sorge revela a realidade do que Marx pensava.
Em matéria de teoria do Estado e do poder,
encontramos, na realidade, aproximadamente tudo o que se quer em Marx.
O flerte libertário de A Guerra Civil na
França é decerto percebido como perfeitamente isolado por Franz Mehring;
mas Lênin faz dele um dogma marxista, porque, num dado momento, isso lhe era
conveniente e porque necessitava do apoio dos anarquistas. Em A Crítica do Programa de Gotha (1875),
Marx não diz palavra da Comuna como forma de poder revolucionário, enquanto
Engels alude vagamente a essa questão numa carta a Bebel:
“Assim,
proporíamos pôr em toda parte no lugar do termo ‘Estado’ a palavra ‘Gemeinwesen’,
excelente antigo termo alemão respondendo muito bem ao termo francês ‘comuna’.”
Por ocasião do vigésimo aniversário da
Comuna, Engels escreve um prefácio à Guerra
Civil na França, e diz:
“O
filisteu social-democrata foi recentemente arrebatado por um terror salutar ao
ouvir a expressão ditadura do proletariado. Pois bem, senhores, desejais saber
com que essa ditadura se parece? Observai a Comuna de Paris. Era a ditadura do
proletariado.”
Esta expressão recobre acepções
completamente diferentes; em 1850, significava ditadura jacobina sem
representação popular, isto é, o contrário do que diz Engels em 1891.
A “ditadura do proletariado” é esvaziada de
todo o seu sentido porquanto pode designar simultaneamente um regime dos mais
autoritários e dos mais libertários! Mas não é tudo. Ainda em 1891, Engels faz
a crítica do programa que a social-democracia alemã dava-se em Erfurt, e ele
escreve:
“Uma
coisa absolutamente certa é que nosso partido e a classe operária só podem
chegar à dominação sob a forma da república democrática. Esta última é
inclusive a forma específica da ditadura do proletariado, como já o demonstrou
a grande Revolução francesa.”
No mesmo ano, Engels dá como modelo da
ditadura do proletariado a Comuna e a república democrática, unitária.
De fato, a fórmula “ditadura do
proletariado” recobre ao menos três conceitos:
– No Manifesto Comunista e no programa de Erfurt, significa uma
república jacobina e democrática;
– No 18 Brumário e nas Lutas de Classes na França, significa
uma ditadura revolucionária ultracentralizada sem representação popular;
– Em A Guerra Civil na França,
significa uma federação vagamente libertária.
As concepções sobre a forma do poder
operário em Marx e Engels são determinadas muito mais pelas circunstâncias de
tempo e espaço — reservando-se o direito de mudar de opinião no transcurso do
mesmo ano, como fez Engels em 1891 — do que por princípios precisos. Assim,
cada um pode achar o que busca, bastando procurar no texto adequado.
Nós também podemos jogar nesse jogo. No
caso de alguns quererem absolutamente convencer-nos de que Marx e Engels
falavam seriamente em matéria de abolição do Estado, teríamos sempre o recurso
de lembrar o que Engels escrevia a Carlo Cafiero, em 1° de julho de 1871:
“No
que concerne à abolição do Estado, esta é uma velha frase filosófica alemã da
qual nos servimos muito quando éramos jovens inexperientes e arrogantes.”
Olá, tudo bem? Saberia me dizer onde eu acho a carta do Engels para o Cafiero? Obrigado.
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