1. O Congresso representa a sociedade?
Os dados dessa imagem são esclarecedores e impõem uma
resposta fortemente negativa à essa questão. Mas quero explorar a atitude
comum, em face desses dados, que acaba por jogar a culpa no colo da população,
que "não sabe votar". Se cada um de nós votasse diferentemente, mudaríamos a composição do Congresso e sairíamos desse impasse. Esse diagnóstico do problema e a proposta para solucioná-lo envolve unicamente o nível individual. São as pessoas, individualmente, que estão gerando o problema. "Não sabem votar!". A interpretação comum da corrupção entre os políticos também é um exemplo paradigmático dessa perspectiva. Não há qualquer papel para o modo como a política é estruturada e executada. Essa visão identifica a causa da corrupção como sendo a pessoa de má índole. Isso pressupõe que os níveis acima do individual, tal como o das instituições, não fazem parte do problema.
2. Infelizmente, esse diagnóstico é falho e sua
solução também. Tudo foi (e continua sendo) muito bem organizado para que a
democracia formal mantenha seu papel de dominação. Essas decisões foram (e
continuam sendo) tomadas independente do voto popular.
3. Por motivos muito anteriores ao voto, numa
sociedade de classes o setor economicamente dominante tenderá a ser
politicamente dominante. A classe oprimida, apesar de ser a grande maioria,
tenderá a ser sub-representada.
4. Além disso, buscar a representatividade de todos
numa sociedade de classes não deixa de ser problemático. Em termos práticos,
acaba por estabelecer uma política de pacto de classes e, consequentemente,
legitimar a dominação.
5. Meu diagnóstico é outro, e envolve um nível
acima do individual. Há um sistema político-econômico que faz a demarcação do
campo em que devemos, supostamente, jogar; que impõe consensos na sociedade;
que induz o moralmente certo e o errado, o legítimo e o ilegítimo, o possível e
o impossível. Consequentemente, defendo que para solucionar esse problema
devemos enfrentar o sistema responsável por gerá-lo. A solução é mais complexa
do que promover o voto em T, U e V em vez de X, Y e Z. Essas letras podem ser
interpretadas como nomes de candidatos ou como partidos eleitorais, tanto faz.
Não pressuponho que todos os candidatos e partidos sejam iguais. O ponto é que
suas diferenças não são suficientes para resolver o problema em questão.
6. No meu entendimento, a solução envolve, como
falei, o enfrentamento a esse sistema político-econômico responsável por manter
a miséria e a exploração. Mas esse enfrentamento deve ser prioritariamente
realizado POR FORA DESSE SISTEMA. Uma luta popular que reivindique tudo o que
puder dessa democracia formal, mas que atue pela ação direta tanto nessas
reivindicações como na CONSTRUÇÃO DO FUTURO NO PRESENTE. Essa é outra tese que
eu gostaria de enfatizar.
7. Não é (i) jogando o jogo da democracia burguesa,
mas também não é unicamente (ii) pela luta para que o Estado garanta os
direitos individuais e coletivos de quem mais precisa; é também (iii)
construindo o futuro aqui e agora, com as pessoas de carne e osso, tal como se
encontram, e com as práticas e ideais que podemos atualmente contar. Apenas
levando a sério o item (iii), em conjunto com (ii), poderemos ter alternativa
para um futuro verdadeiramente humano. É bom que se diga, esse futuro é
libertário e não autoritário; é socialista e não capitalista; é feminista e não
patriarcal; é etnicamente democrático e não racista; é baseado na
complementação (e não oposição) entre liberdade e igualdade, entre individual e
coletivo.
8. Finalizo com essa grande ironia: o pensamento
individualista do senso comum, que vê, como citei no início, o problema e a
solução do nosso impasse político no voto "acertado" é, na verdade,
um efeito de níveis acima do individual. Para explicar por que esse pensamento
é tão difundido, precisamos mencionar o papel histórico e prático do sistema
político-econômico na formação dos valores sociais. É uma ironia porque, para
explicar o individualista, precisamos lançar mão do que ele nega. O pensamento
individualista é tão difundido, em parte, porque é fomentado pelo sistema
político-econômico atual.
9. "As ideias da classe dominante são, em cada
época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante
da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que
tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção
espiritual." (Marx e Engels)
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NOTAS FINAIS. Gostaria de fazer uma ressalva (em N1) à citação acima e expor uma observação mais geral (em N2):
N1. Essa citação, a meu ver, assim como várias
outras citações de Marx, precisam ser interpretadas como tendências mais do que
determinismos. Ela certamente capta fatores importantes, assim como deixa
outros de fora. Se a tomamos literalmente, é melhor abandoná-la; mas se a
enfraquecemos, ela parece bastante útil. Poderíamos fazer o mesmo procedimento
com a já clássica ideia de que "a luta de classes é o motor da
história". Numa interpretação literal, todos os aspectos historicamente
relevantes seriam subordinados à luta de classes. Isso parece obviamente falso
ou, então, apenas uma perspectiva, dentre outras, de olhar para a história. No
entanto, há uma terceira e mais caridosa interpretação: a luta de classes
realmente parece um fator importante na moldagem das sociedades. Portanto, é de
grande utilidade à análise social. Isso significa que pode ser oneroso
desconsiderá-la.
N2. Gosto de interpretar as análises sociais
verbais como se fossem modelos matemáticos com seus parâmetros e variáveis. Com
isso quero dizer que vejo essas análises como uma idealização e simplificação
exagerada de uma realidade imensamente mais complexa; que essas análises, mesmo
que falsas, podem ser úteis; que é preferível trabalhar com elas, tentando
reformulá-las, a começar do zero. É certamente um modo antipopperiano de
proceder. Mas, como queria Popper, isso não implica o compromisso com uma única
doutrina ou perspectiva teórica, o que diferentemente queria (com alguma
sofisticação) Thomas Kuhn. Nesse sentido, também é um modo de proceder
antikuhniano.
Aspectos doutrinais e de valores não devem moldar a
ciência como um todo, satisfazendo melhor uma perspectiva em detrimento de
outra. Ciência e ideologia estão conectadas, mas uma não deve virar refém da
outra. A ciência deve atuar com uma pluralidade de valores. Cada perspectiva no
interior da ciência será moldada por valores específicos, mas isso não é um
problema; ao contrário, é o que fomenta a realização científica. A questão é
que a ciência como um todo não pode ser refém de uma única perspectiva. Além
disso, como um conhecimento em construção, a ciência partirá de certas
perspectivas e precisa estar constantemente aberta a reformulações e
reinterpretações, desde que pareçam mais adequadas ao novo contexto ou frente
aos novos achados empíricos.
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