quarta-feira, 20 de abril de 2016

O golpe, os limites da política profissional e o ideal libertário

Quem acompanha a TV Câmara sabe que, se a votação de domingo (17.04.2016) foi um show de horrores, em outras ocasiões os discursos não são tão diferentes e sempre causam dor de estômago!

Assistir o proceder da política institucional  da democracia burguesa indireta  nos dá elementos para identificar um problema estrutural nesse sistema e acaba por reforçar o ideal socialista-libertário.


O parlamento é uma fábrica de traidores; seu funcionamento pressupõe "políticos profissionais", que são descolados da base a qual deveriam servir. Forma-se uma nova classe, a dos que governam em contraposição aos que são governados. Não há qualquer controle efetivo da população sobre as decisões dos parlamentares, que representam unicamente os interesses dos seus próprios partidos e de quem os financia.

Nesse sistema, a disputa pelo poder do Estado sempre se sobrepõe à construção de um poder popular. Mesmo quando determinados partidos dizem se preocupar com o segundo, se há tensão entre os dois (o que frequentemente é o caso) se opta pelo primeiro. A história do PT deixa isso bastante claro: o trabalho para empoderar a base foi sendo substituído pelo trabalho para se manter e se ampliar no poder. Não é difícil perceber que a disputa pelas estruturas do Estado é fundamental pra quem joga esse jogo, ou seja, para os partidos eleitorais. O que em geral não se reconhece  ou não se quer reconhecer  é que isso gera tensões com a luta por empoderamento desde a base. Esforços junto às comunidades são realocados para a política de gabinete, acionada de cima e por meio do Estado.

Bueno, a votação pelo impedimento da presidenta acaba de passar na Câmara, e parece improvável que isso seja revertido no senado. Em todo caso, independente do resultado, fica claro que o que precisamos fortalecer é a classe e não pedir migalhas a políticos profissionais; precisamos de muita organização e combate pela via direta, fora dessas estruturas que histórica e funcionalmente mantém a dominação; e isso precisa ser realizado por meio de práticas coerentes com os fins a que buscamos.

Discursos, mesmo revolucionários, no interior da ordem estabelecida não fazem muito se não são acompanhados de ações também revolucionárias. E se esses discursos são feitos no ambiente platônico do parlamento, dificilmente contribuem para a luta de classes e a construção de um poder efetivamente popular.

Se a política institucional desanima, ela ao menos deveria animar uma nova forma de fazer política. Uma política de fato comprometida com o povo e realizada por ele mesmo, de forma coletiva, de baixo pra cima, respeitando direitos humanos e o meio ambiente de que dependemos. Sem dúvida isso envolve um trabalho de longo prazo  e é preciso que estejamos cientes disso  mas só alcançaremos esse objetivo se o levarmos a sério. E isso significa trabalhar com as prioridades e as práticas moldadas para contribuir com esse processo.

Como diria Malatesta: "Quem se põe a caminho e se engana de estrada, não vai aonde quer, mas aonde o conduz o caminho tomado".

Ser contra o impedimento da presidenta não implica fortalecer o atual governo, mas sim ir contra o golpe branco em marcha que, ao que tudo indica, passará ileso pisando com seu grande coturno em nossas cabeças. Se passar, precisaremos de mais luta e resistência para que mais direitos não sejam perdidos. Mas também é crucial não esquecermos que o coturno sempre esteve sobre nossas cabeças.

Os sistemas político e econômico não têm vida separada. Isoladamente, sequer podem ser analisados de forma adequada. Os dois se retroalimentam e se mantém, formando um único sistema político-econômico. Sabemos bem que esse sistema, da forma em que está posto, é nefasto pra classe oprimida. Ele patrola povos originários e meio ambiente, como se esses não existissem. Mas não para por aí. Prioritariamente, o Estado serve aos grandes grupos econômicos e a si mesmo. Esses grupos se beneficiam e patrocinam seus representantes, que agem pensando no seu umbigo e no de seus patrocinadores. Quanto de recursos públicos escoaram pra bancos e pro agronegócio? E quanto pra reforma agrária, pra demarcação de terras indígenas e quilombolas e pra agroecologia?


Mas numa retórica de democracia liberal, esses parlamentares representam o POVO, que possui um interesse crucial em comum: desenvolver a nação. Se é às custas de outras nações e de povos no interior da própria nação, pouco importa. Deliberadamente se oculta as distinções de classe e de hierarquia no interior do tal "povo". E aqui está o ponto: se o golpe é indefensável, essa democracia também o é. Ela é uma fraude por pelo menos dois motivos: é "representativa" (executada de cima pra baixo, e não de baixo pra cima) e "burguesa" (grandes grupos econômicos dão a linha da política e são tudo, menos democráticos).

Disso resulta que o Estado não é neutro, a ser moldado da forma que se queira. Ele foi construído historicamente para servir como instrumento de dominação e seu papel fundamental não variou. Se queremos lutar por um povo emancipado, livre de toda tutela e que possa construir a vida coletiva com dignidade e autonomia, a estratégia a ser adotada envolve um ambiente fora das estruturas do Estado e, obviamente, fora do patrocínio empresarial.

Essa estratégia precisa estar de acordo com o objetivo de uma política emancipatória produzida de baixo pra cima. Para isso, a prática libertária é fundamental. Trabalho de base e organização das comunidades periféricas. Empoderamento dessas comunidades. Vida política comunitária ativa. Ocupação dos espaços públicos. Atos de rua. Lutas e reivindicações pela ação direta e fortalecimento dos direitos. Essa é a saída.

Não podemos deixar a política nas mãos de intermediários engravatados. A política quem deve fazer é o povo hoje classe oprimida, sem que a política seja feita em seu nome. O povo emancipado, que construirá a política coletivamente, com delegados que expressem decisões tomadas em assembleias populares e que sejam parte da comunidade. Um povo emancipado também depende de uma economia autogestionada. Trabalho deliberado e executado por meio de associações livres, sem a separação de quem manda e quem executa, quem pensa e quem faz.


  •  Igualdade e liberdade;
  •  Individual e coletivo.

Esses pares de conceitos não são opostos, mas complementares por necessidade. Não se alcança um sem o outro.

Indivíduos emancipados pressupõem um povo emancipado; um povo emancipado pressupõe indivíduos emancipados.

* Esse texto, assim como os outros, não representa necessariamente a opinião de todos os membros do blog. Publiquei uma versão similar em minha página do facebook.

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