Essa
postagem era para ser um comentário ao texto do Leonardo Luvison, que acaba de ser
publicado aqui no Adaga. O texto dele tem por título O que as críticas ao corte de verbas de pesquisa científica no Brasil tem a ver com determinada concepção de ciência?. Como
esse meu “comentário” ficou um pouco grande para uma caixa de comentário, fiz
pequenas reformulações e decidi postá-lo como um novo texto. Então aí vai.
Entendo que as concepções sobre como a ciência
funciona e como deveria funcionar precisam fazer parte de um debate explícito entre
aqueles que efetivamente praticam a ciência. Esse debate é o coração da filosofia da ciência (enquanto
investigação normativa) e da história e
sociologia da ciência (enquanto investigação descritiva), mas entendo que
ele não deve estar restrito aos filósofos, sociólogos e historiadores da
ciência. Penso que uma discussão entre os próprios cientistas sobre a natureza da atividade científica (incluindo sua
dimensão social) poderia contribuir para que eles tenham um melhor entendimento
da ciência – a partir de uma visão geral sobre sua prática no contexto atual (tecnocientífico) e em relação aos objetivos
ou ideais que deveriam regular a atividade científica – e de um estreitamento
maior entre os cientistas e a sociedade. Além disso, esse debate poderia
fomentar o desenvolvimento de uma Ciência Cidadã.
Eu compartilho com o Leonardo as ideias
expostas nos três subtópicos do seu texto. Entendo que os cientistas brasileiros
contemporâneos em geral (i) continuam
a ter uma mentalidade colonizada, (ii)
possuem uma concepção de ciência fortemente marcada pelo produtivismo, gerando
uma competitividade muitas vezes prejudicial e aproximando a atividade
científica de um modo de produção de mercadorias, e (iii) não enxergam a proposta de uma “Ciência Serena” (Slow Science;
veja seu Manifesto e mais informações aqui)
como uma alternativa viável à “mcdonaldização” da ciência, isto é, ao modo como
a ciência é atualmente praticada. O potencial de uma “ciência serena” para
melhorar a qualidade da produção científica sequer é pensado entre os grandes
grupos de pesquisa. Ainda são poucos os cientistas de renome que reivindicam
essa mudança, e é necessário que o movimento aumente se quisermos salvar a
ciência como um empreendimento criativo, produtor de conhecimento relevante e confiável
para a fundamentação de políticas públicas.
Juntamente com o Leonardo, discordo da
concepção proposta pela neurocientista Susana Herculano sobre como a ciência
deveria funcionar. Inclusive, a construção pela grande mídia de sua imagem como
porta-voz dos cientistas já era de se esperar, na medida em que muitos dos
valores que ela endossa são também os endossados pelas principais instituições de
nossa sociedade. Não é difícil entender porque (nem com que objetivos) a mídia
lhe convoca para dar seus depoimentos sobre os problemas da ciência realizada
no Brasil. Após sua participação no programa Roda Viva, em março de 2013, ela
escreveu um texto em seu blogue intitulado O que eu não disse no Roda Viva. Ela cita brevemente três propostas que,
segundo ela, melhorariam a ciência produzida no Brasil. São propostas que, a
meu ver, prejudicariam imensamente a ciência aqui produzida. Não vou expor aqui
as minhas críticas porque as expus nos comentários do seu texto. Mas, como fiz
naquele comentário, deixo o vínculo para um texto de outro neurocientista, o
qual expõe uma visão incompatível com a da profª. Herculano e que está mais
próxima da concepção que defendo. O texto é do prof. Jorge Quillfeldt e tem por
título NBIC: paradigma ou propaganda? A ascenção das patentes e o fim do proce(gre)sso científico. Mesmo que esse texto não seja uma resposta às propostas da profª.
Herculano, até porque foi escrito antes, considero que possui uma posição
diametralmente oposta às suas e que antecipa alguns problemas importantes de suas propostas, em especial acerca do financiamento privado da pesquisa científica.
Bueno, mas afora as concordâncias com o texto do Leonardo, eu diria que possuo uma divergência significativa, se o
entendi bem. A questão é que essas concordâncias não me parecem suficientes
para afirmar que eu “compreendo os cortes
frente à conjuntura atual”, como ele afirmou no item “(i)” de sua
introdução. Eu entendo que essa afirmação pressupõe os cortes como algo
inevitável (dada a atual conjuntura) e, dessa forma, entende que cortar parte
do investimento na ciência pode ser uma medida razoável. Dado esse pressuposto,
parece legítimo defender que áreas de maior urgência, como saúde e educação
básica, devam sofrer menos com os cortes quando comparadas à área da pesquisa científica.
No entanto, penso que o próprio ajuste fiscal,
que envolve os cortes no MEC e no CNPq, elaborado pelo nosso ex-ministro da
fazenda Joaquim Levy – um exemplar Chicago
Boy (doutor em economia pela Universidade de Chicago, famosa pela formação
de economistas neoliberais) – com o aval de nossa presidenta Dilma, merece uma
profunda e lúcida crítica. Por isso considero problemático dar como pressuposto
a inevitabilidade dos cortes. Quase 50% (R$ 958 bilhões em 2014) do Orçamento
Federal foi (e já é a vários anos) destinado ao pagamento de juros e
amortizações da dívida “pública”. Isso equivale a 12 vezes o que foi destinado
à educação e 11 vezes ao investido na saúde em 2014. Essa grana, que poderia
melhorar significativamente as condições de vida da população brasileira, é
utilizada para garantir os lucros exorbitantes do sistema financeiro.
Certamente a quantia da dívida já foi paga diversas vezes, mas o sistema é
elaborado (com juros altíssimos) de modo a impossibilitar seu pagamento. A
sociedade, principalmente as classes mais baixas, são mantidas na miséria para
que banqueiros continuem lucrando bilhões. É isso que esse sistema injusto da
dívida efetivamente cria. Uma miséria para a maioria e um lucro bilionário para
poucos. Ele é uma mola propulsora da desigualdade.
Esse é um (talvez o principal) argumento
que me faz ir contra o ajuste executado em 2015. Entendo como inaceitável que
se tire um real sequer do investimento na produção científica brasileira. Por
que não implementar uma Auditoria Cidadã da Dívida antes de um ajuste desse porte? Por sinal, hoje mesmo (28.12.2015), saiu uma Carta Aberta do movimento pela auditoria cidadã da dívida.
Bueno, tendo a concordar
com a maior parte do texto, mas entendo que não podemos aceitar a
inevitabilidade dos cortes. A fórmula neoliberal nos é sempre apresentada como
a consequência de uma decisão puramente racional e técnica (e isso em geral vem
junto a uma retórica da doutrina do choque).
No entanto, nenhum planejamento econômico é executado sem uma concepção
política responsável por moldar suas prioridades. Por que o ajuste e não uma
moratória para a dívida? Por que cortar o investimento em áreas de grande
interesse público em vez de taxar grandes fortunas?
Com base nessa crítica, um texto escrito
por mim teria algumas divergências em relação ao texto do Leonardo. Primeiro, eu desvincularia a crítica do
ajuste fiscal dos argumentos apresentados. Isto é, eu apresentaria a crítica,
como foi feita, da mentalidade colonizada e da concepção produtivista e
mercantilizada da ciência, junto à noção de que “menos pode ser mais” (slow science), mas desvincularia essa
argumentação da crítica aos cortes na pesquisa científica. Segundo, eu não pressuporia os cortes como algo inevitável dada a
atual conjuntura. Antes de tudo, os cortes precisam ser criticados e de forma
alguma naturalizados. Terceiro, se
minha interpretação do texto não foi correta, isto é, se o texto não pressupõe
a necessidade do ajuste, então não entendo por que vincular a argumentação aos
cortes. Em outros termos, se meu segundo ponto de divergência não é de fato uma
divergência, então eu escreveria o texto de forma distinta, desvinculando a
questão do ajuste do resto da argumentação (como expus no primeiro ponto de
divergência). Por exemplo, eu apresentaria as concepções apresentadas nos três
subtítulos mas não faria a associação que é proposta no título (e que é, de
fato, o objetivo do texto), a qual é apresentada em forma de pergunta: “O que as críticas ao corte de verbas de
pesquisa científica no Brasil tem a ver com determinada concepção de ciência?”.
Para
finalizar: essa é de fato a proposta mais fundamental do blogue
Adaga de Occam. Tratar de assuntos polêmicos, principalmente nos limiares entre
filosofia, ciência e sociedade, e interagir por meio da escrita. Dificilmente
isso se dá com a frequência em que gostaríamos, e tenho a impressão que esta é
a primeira postagem com o objetivo de “comentar”, “responder” e “acrescentar
algo” a uma postagem anterior. Penso que esse tipo de debate pode ser mais
enriquecedor do que tratar de diversos assuntos sem polemizá-los. Essa
estratégia de comentar fazendo uma nova postagem, como eu acabo de fazer,
parece ter um potencial interessante. Ela tem o pressuposto de levar o texto a
sério e entrar no debate. É estimulante intelectualmente. Espero a resposta da
resposta, Léo. J Um abraço.
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