segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

A ciência e o corte de verbas no Brasil: comentários sobre o post anterior

Essa postagem era para ser um comentário ao texto do Leonardo Luvison, que acaba de ser publicado aqui no Adaga. O texto dele tem por título O que as críticas ao corte de verbas de pesquisa científica no Brasil tem a ver com determinada concepção de ciência?. Como esse meu “comentário” ficou um pouco grande para uma caixa de comentário, fiz pequenas reformulações e decidi postá-lo como um novo texto. Então aí vai.


Entendo que as concepções sobre como a ciência funciona e como deveria funcionar precisam fazer parte de um debate explícito entre aqueles que efetivamente praticam a ciência. Esse debate é o coração da filosofia da ciência (enquanto investigação normativa) e da história e sociologia da ciência (enquanto investigação descritiva), mas entendo que ele não deve estar restrito aos filósofos, sociólogos e historiadores da ciência. Penso que uma discussão entre os próprios cientistas sobre a natureza da atividade científica (incluindo sua dimensão social) poderia contribuir para que eles tenham um melhor entendimento da ciência – a partir de uma visão geral sobre sua prática no contexto atual (tecnocientífico) e em relação aos objetivos ou ideais que deveriam regular a atividade científica – e de um estreitamento maior entre os cientistas e a sociedade. Além disso, esse debate poderia fomentar o desenvolvimento de uma Ciência Cidadã.

Eu compartilho com o Leonardo as ideias expostas nos três subtópicos do seu texto. Entendo que os cientistas brasileiros contemporâneos em geral (i) continuam a ter uma mentalidade colonizada, (ii) possuem uma concepção de ciência fortemente marcada pelo produtivismo, gerando uma competitividade muitas vezes prejudicial e aproximando a atividade científica de um modo de produção de mercadorias, e (iii) não enxergam a proposta de uma “Ciência Serena” (Slow Science; veja seu Manifesto e mais informações aqui) como uma alternativa viável à “mcdonaldização” da ciência, isto é, ao modo como a ciência é atualmente praticada. O potencial de uma “ciência serena” para melhorar a qualidade da produção científica sequer é pensado entre os grandes grupos de pesquisa. Ainda são poucos os cientistas de renome que reivindicam essa mudança, e é necessário que o movimento aumente se quisermos salvar a ciência como um empreendimento criativo, produtor de conhecimento relevante e confiável para a fundamentação de políticas públicas.

Juntamente com o Leonardo, discordo da concepção proposta pela neurocientista Susana Herculano sobre como a ciência deveria funcionar. Inclusive, a construção pela grande mídia de sua imagem como porta-voz dos cientistas já era de se esperar, na medida em que muitos dos valores que ela endossa são também os endossados pelas principais instituições de nossa sociedade. Não é difícil entender porque (nem com que objetivos) a mídia lhe convoca para dar seus depoimentos sobre os problemas da ciência realizada no Brasil. Após sua participação no programa Roda Viva, em março de 2013, ela escreveu um texto em seu blogue intitulado O que eu não disse no Roda Viva. Ela cita brevemente três propostas que, segundo ela, melhorariam a ciência produzida no Brasil. São propostas que, a meu ver, prejudicariam imensamente a ciência aqui produzida. Não vou expor aqui as minhas críticas porque as expus nos comentários do seu texto. Mas, como fiz naquele comentário, deixo o vínculo para um texto de outro neurocientista, o qual expõe uma visão incompatível com a da profª. Herculano e que está mais próxima da concepção que defendo. O texto é do prof. Jorge Quillfeldt e tem por título NBIC: paradigma ou propaganda? A ascenção das patentes e o fim do proce(gre)sso científico. Mesmo que esse texto não seja uma resposta às propostas da profª. Herculano, até porque foi escrito antes, considero que possui uma posição diametralmente oposta às suas e que antecipa alguns problemas importantes de suas propostas, em especial acerca do financiamento privado da pesquisa científica.

Bueno, mas afora as concordâncias com o texto do Leonardo, eu diria que possuo uma divergência significativa, se o entendi bem. A questão é que essas concordâncias não me parecem suficientes para afirmar que eu “compreendo os cortes frente à conjuntura atual”, como ele afirmou no item “(i)” de sua introdução. Eu entendo que essa afirmação pressupõe os cortes como algo inevitável (dada a atual conjuntura) e, dessa forma, entende que cortar parte do investimento na ciência pode ser uma medida razoável. Dado esse pressuposto, parece legítimo defender que áreas de maior urgência, como saúde e educação básica, devam sofrer menos com os cortes quando comparadas à área da pesquisa científica.

No entanto, penso que o próprio ajuste fiscal, que envolve os cortes no MEC e no CNPq, elaborado pelo nosso ex-ministro da fazenda Joaquim Levy – um exemplar Chicago Boy (doutor em economia pela Universidade de Chicago, famosa pela formação de economistas neoliberais) – com o aval de nossa presidenta Dilma, merece uma profunda e lúcida crítica. Por isso considero problemático dar como pressuposto a inevitabilidade dos cortes. Quase 50% (R$ 958 bilhões em 2014) do Orçamento Federal foi (e já é a vários anos) destinado ao pagamento de juros e amortizações da dívida “pública”. Isso equivale a 12 vezes o que foi destinado à educação e 11 vezes ao investido na saúde em 2014. Essa grana, que poderia melhorar significativamente as condições de vida da população brasileira, é utilizada para garantir os lucros exorbitantes do sistema financeiro. Certamente a quantia da dívida já foi paga diversas vezes, mas o sistema é elaborado (com juros altíssimos) de modo a impossibilitar seu pagamento. A sociedade, principalmente as classes mais baixas, são mantidas na miséria para que banqueiros continuem lucrando bilhões. É isso que esse sistema injusto da dívida efetivamente cria. Uma miséria para a maioria e um lucro bilionário para poucos. Ele é uma mola propulsora da desigualdade.


Esse é um (talvez o principal) argumento que me faz ir contra o ajuste executado em 2015. Entendo como inaceitável que se tire um real sequer do investimento na produção científica brasileira. Por que não implementar uma Auditoria Cidadã da Dívida antes de um ajuste desse porte? Por sinal, hoje mesmo (28.12.2015), saiu uma Carta Aberta do movimento pela auditoria cidadã da dívida.

Bueno, tendo a concordar com a maior parte do texto, mas entendo que não podemos aceitar a inevitabilidade dos cortes. A fórmula neoliberal nos é sempre apresentada como a consequência de uma decisão puramente racional e técnica (e isso em geral vem junto a uma retórica da doutrina do choque). No entanto, nenhum planejamento econômico é executado sem uma concepção política responsável por moldar suas prioridades. Por que o ajuste e não uma moratória para a dívida? Por que cortar o investimento em áreas de grande interesse público em vez de taxar grandes fortunas?

Com base nessa crítica, um texto escrito por mim teria algumas divergências em relação ao texto do Leonardo. Primeiro, eu desvincularia a crítica do ajuste fiscal dos argumentos apresentados. Isto é, eu apresentaria a crítica, como foi feita, da mentalidade colonizada e da concepção produtivista e mercantilizada da ciência, junto à noção de que “menos pode ser mais” (slow science), mas desvincularia essa argumentação da crítica aos cortes na pesquisa científica. Segundo, eu não pressuporia os cortes como algo inevitável dada a atual conjuntura. Antes de tudo, os cortes precisam ser criticados e de forma alguma naturalizados. Terceiro, se minha interpretação do texto não foi correta, isto é, se o texto não pressupõe a necessidade do ajuste, então não entendo por que vincular a argumentação aos cortes. Em outros termos, se meu segundo ponto de divergência não é de fato uma divergência, então eu escreveria o texto de forma distinta, desvinculando a questão do ajuste do resto da argumentação (como expus no primeiro ponto de divergência). Por exemplo, eu apresentaria as concepções apresentadas nos três subtítulos mas não faria a associação que é proposta no título (e que é, de fato, o objetivo do texto), a qual é apresentada em forma de pergunta: “O que as críticas ao corte de verbas de pesquisa científica no Brasil tem a ver com determinada concepção de ciência?”.

Para finalizar: essa é de fato a proposta mais fundamental do blogue Adaga de Occam. Tratar de assuntos polêmicos, principalmente nos limiares entre filosofia, ciência e sociedade, e interagir por meio da escrita. Dificilmente isso se dá com a frequência em que gostaríamos, e tenho a impressão que esta é a primeira postagem com o objetivo de “comentar”, “responder” e “acrescentar algo” a uma postagem anterior. Penso que esse tipo de debate pode ser mais enriquecedor do que tratar de diversos assuntos sem polemizá-los. Essa estratégia de comentar fazendo uma nova postagem, como eu acabo de fazer, parece ter um potencial interessante. Ela tem o pressuposto de levar o texto a sério e entrar no debate. É estimulante intelectualmente. Espero a resposta da resposta, Léo. J Um abraço.

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