sábado, 19 de setembro de 2015

Filosofia e pseudociência

O pequeno texto a seguir foi escrito pelo filósofo português Desidério Murcho. O leitor pode lê-lo também por aquiFizemos pequenas adaptações para o português do Brasil.

O problema de diferenciar a verdadeira ciência da pseudociência é conhecido em filosofia como “o problema da demarcação”. Existirão critérios que nos permitam distinguir a ciência da pseudociência? Se sim, quais? A primeira questão é por vezes mal entendida; o que se pretende não é distinguir a ciência da culinária, que nunca pretendeu ascender ao estatuto de ciência, mas de práticas que visam objetivos cognitivos, como a astrologia ou a psicanálise.

Os debates filosóficos mostram uma tendência irritante para permanecerem em aberto, o que neste caso específico tem um resultado desastroso. É verdade que muitos filósofos avançam critérios de demarcação, baseados nas suas explicações da metodologia da ciência. Mas a metodologia científica é em si mesma um problema difícil, acerca do qual não há consenso, como em quase tudo na filosofia. De modo que os critérios de demarcação que um filósofo apresenta, outro filósofo rejeita. Isto tem o terrível efeito de montar uma armadilha aos mais incautos: a falácia do apelo à ignorânciaEsta falácia consiste em afirmar que, uma vez que não sabemos Xé falso: uma vez que não sabemos que critérios demarcam a ciência de outras práticas aparentemente não científicas, não existem tais critérios e é tudo igual a tudo. É fácil de ver que isto é uma falácia se pensarmos nisto: uma vez que eu não sei que o João está nos Açores, o João não está nos Açores.

Na filosofia, o clima anti-ciência aparece assim legitimado numa falácia primária. Este estado de coisas tem algumas consequências terríveis. Por um lado, desprestigia a própria filosofia: muitos cientistas olham-na com desconfiança. Por outro lado, afasta os alunos mais inteligentes do estudo da filosofia, pois sentem tratar-se de um antro de pensamentos ociosos, viciosos e retrógrados. Esta situação é particularmente grave em países atrasados em termos culturais e acadêmicos, pois tanto impede o desenvolvimento de uma comunidade séria e competente na área da filosofia, como impede o diálogo entre a ciência e a filosofia — diálogo que ao longo da história sempre enriqueceu tanto uma prática como a outra.

O antídoto para este estado de coisas é ensinar as pessoas a discutir argumentos, estimulá-las a procurar justificações, ao invés de se limitarem a afirmar os preconceitos que adquiriram, mesmo que esses preconceitos tenham origem na leitura de filósofos de renome. Sokal mostrou como os filósofos de renome podem ser péssimos guias se os lermos passivamente. É preciso perceber que em filosofia não há argumentos de autoridade. Só a argumentação cuidada, rigorosa e sistemática permite distinguir uma opinião razoável de uma opinião disparatada e preconceituosa ou injustificada. Em filosofia, a única autoridade é a argumentação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário