O pequeno texto a seguir foi escrito pelo filósofo português
Desidério Murcho. O leitor pode lê-lo também por aqui. Fizemos pequenas adaptações para o português do Brasil.
O problema de diferenciar a
verdadeira ciência da pseudociência é conhecido em filosofia como “o problema
da demarcação”. Existirão critérios que nos permitam distinguir a ciência da
pseudociência? Se sim, quais? A primeira questão é por vezes mal entendida; o
que se pretende não é distinguir a ciência da culinária, que nunca pretendeu
ascender ao estatuto de ciência, mas de práticas que visam objetivos
cognitivos, como a astrologia ou a psicanálise.
Os debates filosóficos mostram uma
tendência irritante para permanecerem em aberto, o que neste caso específico
tem um resultado desastroso. É verdade que muitos filósofos avançam critérios
de demarcação, baseados nas suas explicações da metodologia da ciência. Mas a
metodologia científica é em si mesma um problema difícil, acerca do qual não há
consenso, como em quase tudo na filosofia. De modo que os critérios de
demarcação que um filósofo apresenta, outro filósofo rejeita. Isto tem o
terrível efeito de montar uma armadilha aos mais incautos: a falácia do apelo à
ignorância. Esta falácia consiste em afirmar que, uma vez que não
sabemos X, X é falso: uma vez que não sabemos que
critérios demarcam a ciência de outras práticas aparentemente não científicas,
não existem tais critérios e é tudo igual a tudo. É fácil de ver que isto é uma
falácia se pensarmos nisto: uma vez que eu não sei que o João está nos Açores,
o João não está nos Açores.
Na filosofia, o clima anti-ciência
aparece assim legitimado numa falácia primária. Este estado de coisas tem
algumas consequências terríveis. Por um lado, desprestigia a própria filosofia:
muitos cientistas olham-na com desconfiança. Por outro lado, afasta os alunos
mais inteligentes do estudo da filosofia, pois sentem tratar-se de um antro de
pensamentos ociosos, viciosos e retrógrados. Esta situação é particularmente
grave em países atrasados em termos culturais e acadêmicos, pois tanto impede o
desenvolvimento de uma comunidade séria e competente na área da filosofia, como
impede o diálogo entre a ciência e a filosofia — diálogo que ao longo da
história sempre enriqueceu tanto uma prática como a outra.
O antídoto para este estado de coisas
é ensinar as pessoas a discutir argumentos, estimulá-las a procurar
justificações, ao invés de se limitarem a afirmar os preconceitos que
adquiriram, mesmo que esses preconceitos tenham origem na leitura de filósofos
de renome. Sokal mostrou como os filósofos de renome podem ser péssimos guias
se os lermos passivamente. É preciso perceber que em filosofia não há
argumentos de autoridade. Só a argumentação cuidada, rigorosa e sistemática
permite distinguir uma opinião razoável de uma opinião disparatada e
preconceituosa ou injustificada. Em filosofia, a única autoridade é a
argumentação.
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