Na semana passada um novo fóssil trouxe luz para um dos maiores mistérios do estudo dos vertebrados: a
evolução das tartarugas.
Tartaruga verde no Havaí.
Original: https://www.flickr.com/photos/34656814@N05/3222622519Diferentes tipos de tartarugas atuais. Autor Ernst Haeckel. |
Paleochersis do Triássico Superior da Argentina. Sem informações do autor. |
O problema das
tartarugas não é a falta de um bom registro fóssil, muito pelo contrário, é devido ao fato de que por muito tempo as mais antigas
tartarugas-fósseis descobertas eram basicamente tartarugas em sua morfologia
geral. Isto é, se a mesma criança do começo do texto fosse levada ao Triássico
Superior, no começo da Era Mesozoica, ela provavelmente também não hesitaria em chamar de tartaruga uma Proganochelys (de 215 milhões de
anos atrás) da Alemanha ou uma Paleochersis
(aproximadamente 210 milhões de anos atrás) da Argentina (veja ao lado). Estas linhagens fósseis,
ambas de hábitos terrestres, eram precisamente semelhantes a diversos cágados atuais.
Se voltássemos no tempo um pouco mais, veríamos a antiquíssima chinesa Odontochelys (220 milhões de anos), do
começo do Triássico Superior (veja abaixo), que também seria incluída sem problemas junto as tartarugas. Embora não disponha de uma carapaça, Odontochelys apresenta muitas características interessantes, como a presença de dentes (ausentes em
todos os quelônios atuais) e de um plastão bem formado. A ausência de uma
carapaça óssea intrigou os pesquisadores, já que muitas hipóteses sobre a
origem destas características sempre priorizavam o surgimento da carapaça como sendo
anterior. A hipótese de um plastrão anterior ao surgimento da carapaça é evidenciada também pela embriologia das tartarugas modernas. Alguns teóricos
aventavam que, como algumas tartarugas-marinhas atuais, a carapaça tivesse sido
perdida, já que os hábitos de Odontochelys
eram mais aquáticos que terrestres. Embora estes fósseis estivessem nos mostrando quando no tempo estariam os mais antigos ancestrais das tartarugas, em nada nos ajudavam
a entender a qual grupo provinha esta fantástica linhagem.
Fotografias de espécimes de Odontochelys (começo do Triássico Superior - China). Vista dorsal e ventral. |
Tipos de crânios: (A) Anápsido, (B) Sínápsido e (C) Diápsido. Sem informações do autor. |
Um dos
problemas mais primordiais nesta questão refere-se à presença ou não de fenestras
cranianas temporais (veja ao lado) nas tartarugas. Durante a evolução dos tetrápodes no final da Era
Paleozóica (entre o Período Carbonífero e o Permiano) três linhagens principais
se estabeleceram: os pararépteis (hoje extintos*) que apresentavam uma condição
anápsida do crânio, sem fenestras; os sinápsidos (atualmente unicamente
representados pelos mamíferos) que apresentam apenas uma fenestra temporal; e
os diápsidos (répteis incluindo as aves) que apresentava duas fenestras
temporais. Tanto os fósseis quanto a maior parte das tartarugas atuais
apresentam crânios compactos, sem fenestras, e assim foram consideradas desde
muito tempo: como anápsidas. Na década de 90, por esta razão, paleontólogos buscaram
nos grupos de pararépteis do Permiano possíveis candidatos que vinculassem a
evolução das tartarugas observadas no Triássico. A transição do Permiano para o
Triássico, marca a divisão entre duas Eras geológicas, pois representa o maior evento
de extinção já testemunhado pela evolução animal. Esperava-se que as tartarugas
fossem um dos poucos grupos de pararrépteis que sobreviveram a esta extinção,
sendo o único deles a persistir até hoje. Assim, as tartarugas seriam parentes
distantes de todos os outros répteis atuais.
Uma nova visão de um ilustre fóssil: Eunotosaurus (Permiano Médio da África do Sul). Sem informações do autor. |
Estudos
moleculares, entretanto, contrastavam com as comparações morfológicas, pois indicavam
que as tartarugas seriam ou mais proximamente aparentadas aos arcossauros
(aves+jacarés) ou com os lepidossauros (lagartos+serpentes+tuatara). Esta
última hipótese também já havia sido corroborada por alguns estudos
morfológicos, mas a primeira passou a ser adotada como a explicação mais
plausível pelo maior número de evidências. Foi então, que novos materiais de Eunotosaurus (veja acima), um abundante pararréptil
sul-africano do Permiano Médio, produziram uma reviravolta neste cenário. Estes
novos estudos mostraram diversas homologias com as tartarugas, entre elas o
crescimento ósseo das costelas (veja abaixo), também observadas em Odontochelys,. O crescimento das costeas culminaria então na formação da
carapaça das tartarugas durante o final do Triássico. Eunotosaurus trouxe assim diversas inconsistências para esta novela científica, já que contrastava
com relação: aos dados moleculares; ao surgimento do plastrão (ausente neste)
e, além disso, criou um longo hiato temporal (de aproximadamente 40 milhões de
anos) entre ele e as mais antigas tartarugas sem nenhum fóssil. Esta
problemática foi parcialmente resolvida quando se encarou o problema sob um
outro viés: muitos autores passaram a rever a condição de pararréptil de Eunotosaurus, já que ele apresenta não uma,
mas duas fenestras temporais o que poderia demonstrar uma ascendência diápsida
ao táxon.
Reconstituição da possível morfologia óssea de Eunotosaurus, note as costelas!
Sem informações do autor.
|
Elementos do crânio mostrando os dentes e reconstituição do crânio de Pappochelys do Triássico Médio da Alemanha. Observe as fenestras! |
Tomando Eunotosaurus como um provável diápsido do Permiano, ligado a evolução das
tartarugas, qualquer novo fóssil do Triássico Inferior ou Médio, poderia trazer
luz sobre esta problemática. E justamente foi isso que a nova pesquisa feita
pelos pesquisadores Rainer Schoch e Hans-Dieter Sues fez. O estudo que descreve
Pappochelys rosinae (veja ao lado) o táxon mais
antigo (no Triássico) mais proximamente aparentado a todas as tartarugas
conhecidas foi publicado na Nature semana passada, e traz consigo novas e intrigantes evidências da evolução das tartarugas.
Coletado próximo ao município de Vellberg na Alemanha, em rochas do
Triássico Médio da Formação Erfurt, esta espécie é morfologicamente
intermediaria entre a condição encontrada em Eunotosaurus e Odontochelys.
Surpreendentemente Pappochelys (veja abaixo) apresenta
as duas fenestras pós-orbitais, costelas expandidas e diferentemente de Eunotosaurus, apresenta também um
plastrão formado pela agregação acentuada (incluindo fusão) das costelas
abdominais, as gastrálias.
Reconstituição em vida de Pappochelys do Triássico Médio da Alemanha. Na linha abaixo reconstituição osteológica e o holótipo. Note as costelas em amarelo e as gastrálias em vermelho. |
O surgimento do plastrão, segundo os autores,
deveria estar mais vinculado à proteção ventral e controle da flutuabilidade,
já que se trata de um organismo de hábitos aquáticos. Outra surpresa desta
pesquisa é justamente o posicionamento encontrado entre Eunotosauros, Pappochelys
e todas as tartarugas primitivas proximamente aparentadas à linhagem dos
lepidossauros! Isto é, não apenas as tartarugas são diápsidos modificados, como também (segundo os autores, como mostra na figura abaixo) são mais aparentadas aos lagartos que aos
crocodilianos. Outra questão importante é a ligação delas com a de répteis
marinhos (plesiossauros e outros, não o mosassauro do Jurassic World) extintos
do Mesozóico, outro grupo enigmático quanto a sua evolução, mas sobre eles
falamos em outro texto.
Resumo filogenético daquele encontrado por Schoch e Sues 2015. |
Podemos agora ver
as tartarugas como um grupo não imutável, mas com uma das mais complexas
histórias evolutivas dentre os répteis. Sua origem diápsida é testemunha de que
a evolução é a constante mudança da vida neste planeta.
* Agora são considerados extintos, já que as tartarugas não mais podem ser enquadradas entre estes animais, devido a sua condição diápsida.
Pesquisa original: Schoch & Sues 2015. Nature.
Outras referências: Li et al. 2008. Nature.
* Agora são considerados extintos, já que as tartarugas não mais podem ser enquadradas entre estes animais, devido a sua condição diápsida.
Pesquisa original: Schoch & Sues 2015. Nature.
Outras referências: Li et al. 2008. Nature.
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