quarta-feira, 1 de julho de 2015

Como surgiram e evoluíram as tartarugas?

Na semana passada um novo fóssil trouxe luz para um dos maiores mistérios do estudo dos vertebrados: a evolução das tartarugas.
Tartaruga verde no Havaí.
Original: https://www.flickr.com/photos/34656814@N05/3222622519



Diferentes tipos de tartarugas atuais.
Autor Ernst Haeckel.
 Tartarugas são répteis tão distintos que uma criança, quando na fase de reconhecer animais, consegue distingui-los facilmente entre qualquer outro tetrápode (talvez tenha algum problema com tatus, mas é bem raro). Certamente, chamamos coletivamente estes animais de tartarugas, mas os testudíneos se diferenciam em diversas linhagens que, em geral, são distinguidas pelo seu hábito de vida: tartarugas-marinhas (marinhas), cágados (anfíbias de água-doce) e jabutis (terrestres). Estes répteis inspiram desde muito, em nós seres humanos, perguntas sobre a sua origem, o surgimento de seu casco dorsal ou mesmo de seu plastrão (casco ventral). Por duzentos anos estas características intrigaram zoólogos e paleontólogos que tentam desde então juntar evidências que revelem quando, como e porque as tartarugas (ou melhor, seus antepassados) deixaram um plano corporal típico reptiliano para ter suas costelas fusionadas e seu ventre ossificado. O enigma reside no fato de que as metodologias testadas parecem não corroborar uma mesma hipótese evolutiva, dificultando assim nosso conhecimento. Por exemplo, desde muito se discute a origem das aves, e com o advento da sistemática filogenética tanto os novos dados moleculares e fósseis apontavam na mesma direção, uma origem entre os arcossauros, mais precisamente entre os dinossauros terópodes. As aves então, não apenas são dinossauros sobreviventes, mas são o grupo vivo mais aparentado aos jacarés dentre qualquer os répteis viventes.

Paleochersis do Triássico Superior da Argentina.
Sem informações do autor.
O problema das tartarugas não é a falta de um bom registro fóssil, muito pelo contrário, é devido ao fato de que por muito tempo as mais antigas tartarugas-fósseis descobertas eram basicamente tartarugas em sua morfologia geral. Isto é, se a mesma criança do começo do texto fosse levada ao Triássico Superior, no começo da Era Mesozoica, ela provavelmente também não hesitaria em chamar de tartaruga uma Proganochelys (de 215 milhões de anos atrás) da Alemanha ou uma Paleochersis (aproximadamente 210 milhões de anos atrás) da Argentina (veja ao lado). Estas linhagens fósseis, ambas de hábitos terrestres, eram precisamente semelhantes a diversos cágados atuais. Se voltássemos no tempo um pouco mais, veríamos a antiquíssima chinesa Odontochelys (220 milhões de anos), do começo do Triássico Superior (veja abaixo), que também seria incluída sem problemas junto as tartarugas. Embora não disponha de uma carapaça, Odontochelys apresenta muitas características interessantes, como a presença de dentes (ausentes em todos os quelônios atuais) e de um plastão bem formado. A ausência de uma carapaça óssea intrigou os pesquisadores, já que muitas hipóteses sobre a origem destas características sempre priorizavam o surgimento da carapaça como sendo anterior. A hipótese de um plastrão anterior ao surgimento da carapaça é  evidenciada também pela embriologia das tartarugas modernas. Alguns teóricos aventavam que, como algumas tartarugas-marinhas atuais, a carapaça tivesse sido perdida, já que os hábitos de Odontochelys eram mais aquáticos que terrestres. Embora estes fósseis estivessem nos mostrando quando no tempo estariam os mais antigos ancestrais das tartarugas, em nada nos ajudavam a entender a qual grupo provinha esta fantástica linhagem.


Fotografias de espécimes de Odontochelys (começo do Triássico Superior - China).
Vista dorsal e ventral.

Tipos de crânios: (A) Anápsido, (B) Sínápsido e (C) Diápsido.
Sem informações do autor.
Um dos problemas mais primordiais nesta questão refere-se à presença ou não de fenestras cranianas temporais (veja ao lado) nas tartarugas. Durante a evolução dos tetrápodes no final da Era Paleozóica (entre o Período Carbonífero e o Permiano) três linhagens principais se estabeleceram: os pararépteis (hoje extintos*) que apresentavam uma condição anápsida do crânio, sem fenestras; os sinápsidos (atualmente unicamente representados pelos mamíferos) que apresentam apenas uma fenestra temporal; e os diápsidos (répteis incluindo as aves) que apresentava duas fenestras temporais. Tanto os fósseis quanto a maior parte das tartarugas atuais apresentam crânios compactos, sem fenestras, e assim foram consideradas desde muito tempo: como anápsidas. Na década de 90, por esta razão, paleontólogos buscaram nos grupos de pararépteis do Permiano possíveis candidatos que vinculassem a evolução das tartarugas observadas no Triássico. A transição do Permiano para o Triássico, marca a divisão entre duas Eras geológicas, pois representa o maior evento de extinção já testemunhado pela evolução animal. Esperava-se que as tartarugas fossem um dos poucos grupos de pararrépteis que sobreviveram a esta extinção, sendo o único deles a persistir até hoje. Assim, as tartarugas seriam parentes distantes de todos os outros répteis atuais.

Uma nova visão de um ilustre fóssil: Eunotosaurus (Permiano Médio da África do Sul).
Sem informações do autor.
Estudos moleculares, entretanto, contrastavam com as comparações morfológicas, pois indicavam que as tartarugas seriam ou mais proximamente aparentadas aos arcossauros (aves+jacarés) ou com os lepidossauros (lagartos+serpentes+tuatara). Esta última hipótese também já havia sido corroborada por alguns estudos morfológicos, mas a primeira passou a ser adotada como a explicação mais plausível pelo maior número de evidências. Foi então, que novos materiais de Eunotosaurus (veja acima), um abundante pararréptil sul-africano do Permiano Médio, produziram uma reviravolta neste cenário. Estes novos estudos mostraram diversas homologias com as tartarugas, entre elas o crescimento ósseo das costelas (veja abaixo), também observadas em Odontochelys,. crescimento das costeas culminaria então na formação da carapaça das tartarugas durante o final do Triássico. Eunotosaurus trouxe assim diversas inconsistências para esta novela científica, já que contrastava com relação: aos dados moleculares; ao surgimento do plastrão (ausente neste) e, além disso, criou um longo hiato temporal (de aproximadamente 40 milhões de anos) entre ele e as mais antigas tartarugas sem nenhum fóssil. Esta problemática foi parcialmente resolvida quando se encarou o problema sob um outro viés: muitos autores passaram a rever a condição de pararréptil de Eunotosaurus, já que ele apresenta não uma, mas duas fenestras temporais o que poderia demonstrar uma ascendência diápsida ao táxon.
Reconstituição da possível morfologia óssea de Eunotosaurus, note as costelas!
Sem informações do autor.


Elementos do crânio mostrando os dentes
e reconstituição do crânio de Pappochelys
do Triássico Médio da Alemanha.
Observe as fenestras!
Tomando Eunotosaurus como um provável diápsido do Permiano, ligado a evolução das tartarugas, qualquer novo fóssil do Triássico Inferior ou Médio, poderia trazer luz sobre esta problemática. E justamente foi isso que a nova pesquisa feita pelos pesquisadores Rainer Schoch e Hans-Dieter Sues fez. O estudo que descreve Pappochelys rosinae  (veja ao lado) o táxon mais antigo (no Triássico) mais proximamente aparentado a todas as tartarugas conhecidas foi publicado na Nature semana passada, e traz consigo novas e intrigantes evidências da evolução das tartarugas. 




Coletado próximo ao município de Vellberg na Alemanha, em rochas do Triássico Médio da Formação Erfurt, esta espécie é morfologicamente intermediaria entre a condição encontrada em Eunotosaurus e Odontochelys. Surpreendentemente Pappochelys (veja abaixo) apresenta as duas fenestras pós-orbitais, costelas expandidas e diferentemente de Eunotosaurus, apresenta também um plastrão formado pela agregação acentuada (incluindo fusão) das costelas abdominais, as gastrálias. 


Reconstituição em vida de Pappochelys do Triássico Médio da Alemanha.
Na linha abaixo reconstituição osteológica e o holótipo.
Note as costelas em amarelo e as gastrálias em vermelho.
O surgimento do plastrão, segundo os autores, deveria estar mais vinculado à proteção ventral e controle da flutuabilidade, já que se trata de um organismo de hábitos aquáticos. Outra surpresa desta pesquisa é justamente o posicionamento encontrado entre Eunotosauros, Pappochelys e todas as tartarugas primitivas proximamente aparentadas à linhagem dos lepidossauros! Isto é, não apenas as tartarugas são diápsidos modificados, como também (segundo os autores, como mostra na figura abaixo) são mais aparentadas aos lagartos que aos crocodilianos. Outra questão importante é a ligação delas com a de répteis marinhos (plesiossauros e outros, não o mosassauro do Jurassic World) extintos do Mesozóico, outro grupo enigmático quanto a sua evolução, mas sobre eles falamos em outro texto.

Resumo filogenético daquele encontrado por Schoch e Sues 2015.
Podemos agora ver as tartarugas como um grupo não imutável, mas com uma das mais complexas histórias evolutivas dentre os répteis. Sua origem diápsida é testemunha de que a evolução é a constante mudança da vida neste planeta.

* Agora são considerados extintos, já que as tartarugas não mais podem ser enquadradas entre estes animais, devido a sua condição diápsida.
Pesquisa original: Schoch & Sues 2015. Nature.
Outras referências: Li et al. 2008. Nature.

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