quinta-feira, 16 de abril de 2015

Solução homeopática? (1 de 3)

Este é o primeiro de uma série de três breves textos sobre homeopatia. Sim, tem um trocadilho no título.

Muitas pessoas acreditam em homeopatia. Eu tenho uma tendência a simpatizar muito com essas pessoas, mas por outras razões. Muitos estão envolvidos em coisas tão legais que eu quase me sinto mal de ter que falar isso aqui. Muitas delas acreditam em muitas coisas que eu também acredito: acham que a indústria farmacêutica é uma das nossas instituições mais podres; estão atentas aos efeitos colaterais dos remédios convencionais; acham que nos alimentamos mal; pensam que o mundo poderia ser bem melhor do que é, etc. Concordo com tudo isso e com muito mais. Entretanto eu não acho que homeopatia seja uma coisa boa. Eu não acredito que ela funcione e não creio que seja solução para qualquer problema. Não detenho a palavra final sobre o assunto (e nem sobre nenhum outro) e estou pronto pra ser convencido do contrário. Só faço um pedido: leiam sem preconceito e deixem um pouco de lado as paixões...




Vou dividir o assunto em três partes: a primeira (essa postagem) é uma explicação sobre como a homeopatia "funciona". Nessa parte pretendo afirmar que a homeopatia falha ao apresentar um mecanismo de ação válido - ela não possui suporte lógico. Na segunda parte, vou falar um pouco sobre alguns estudos científicos que testaram a hipótese da homeopatia enquanto tratamento médico (incluindo um trabalho de revisão recém saído do forno). A função da segunda parte é dizer que a homeopatia não apresenta evidências confiáveis a seu favor - ela não possui suporte empírico. Na terceira e última parte vou falar um pouco sobre aspectos sociais da homeopatia e mostrar como ela pode ser maléfica apesar de aparentar ser uma alternativa válida ao universo (podre, concordo) dos medicamentos convencionais. Vamos lá...

Há mais ou menos 200 anos um médico alemão chamado Samuel Hahnemann sugeriu um método novo para combater as doenças que se opunha à medicina altamente intervencionista e assassina da época. O método homeopático se baseia na “lei dos similares”: se uma pessoa apresenta um sintoma, podemos pegar uma substância que cause esse mesmo sintoma e administrá-la em doses infinitamente pequenas ao paciente. A ideia básica é, portanto, tratar “fogo com fogo”, desde que o tratamento seja um fogo infinitamente pequeno, que não cause mal algum. A suposição de Hahnemann é de que essas pequenas doses ativariam os mecanismos de cura do corpo humano, que estariam precisando de um empurrãozinho. Aliás, segundo a “lei dos infinitesimais”, quanto menor a dose, mais poderoso é o remédio (algo bem diferente do que é reconhecido pela farmacologia moderna)...

Hahnemann e seu cabelo diluído.
A grande pergunta é: por que essa lógica deve ser válida? Não há motivo algum para acreditar que ingerir uma dose pequena (na verdade, inexistente, como veremos a seguir) de um veneno irá combater um sintoma semelhante à ingestão do mesmo veneno em doses maiores. Esse parece ser um pensamento que se faz presente também em outras situações. É uma espécie de lógica de ponta-cabeça que por algum motivo nos pode soar razoável, embora não sobreviva ao pensamento minimamente crítico. A expressão “Hair of the dog”, por exemplo, tem origem na crença de que colocar um pelo de um cão raivoso sobre a ferida causada pela mordida do mesmo diminuiria as chances da pessoa mordida ser infectada. A expressão, entretanto, é usada para se referir à dose de álcool ingerida com o intuito de curar uma ressaca (prática comum por aí)... nesse caso, existe algum fundamento bioquímico para sustentar essa hipótese, embora eu desconheça estudos que tenham demonstrado sua eficiência. De qualquer forma, a "lei dos similares" não faz sentido.


Bom, aqui já poderíamos colocar um ponto final... Mas não. Vamos abraçar essa lógica amputada e sigamos adiante.
Eu disse que a homeopatia se baseia na administração de quantidade muito pequenas de certas substâncias a fim de cessar os efeitos que a ingestão de doses maiores dessas mesmas substâncias causariam. Agora vamos falar um pouco sobre o tamanho dessa “dose pequena”.
Imagine que você pegue 10 ml de vinagre e coloque em um litro de água (ou álcool). Ai você agita o recipiente contendo essa solução, pega mais 10 ml dela e coloca em mais um litro de água. Novamente, você agita o recipiente, pega 10 ml dessa solução duplamente diluída e coloca em mais um litro de água. Faça isso 30 vezes consecutivas. Ao final, pegue um frasco de vidro, encha-o com essa solução que passou por 30 diluições e você terá vinagre homeopático. No rótulo dele virá a inscrição 30C (lembrando que C é o caractere romano para o número 100). Agora vamos pensar: qual é a menor quantidade de uma substância que podemos imaginar? Pense no vinagre. Qual é a menor quantidade de vinagre imaginável? Uma molécula. Não podemos conceber a existência de meia molécula de vinagre, nem mesmo dois terços de uma. O problema é que, numa diluição 30C, para termos confiança de que dentro de um recipiente está, no mínimo, uma molécula de vinagre, esse recipiente teria que conter 1,000,000,000,000,000,000,000,000,000,000,000,000,000,000,000,000,000,000,000,000 moléculas de água. Caso você queira saber o volume que isso ocupa, prepare-se: o recipiente para armazenar essa quantidade de água teria 30,000,000,000 (trinta bilhões) de vezes o tamanho da Terra. Tudo isso para capturar o quê? Uma única molécula de vinagre com diluição 30C. Ah, só pra constar: existem remédios homeopáticos com diluições de até 200C. Oscillococcinum é um medicamento homeopático feito a partir de órgãos de patos (atenção, vegetarianos e veganos: um dilema ético-estatístico!) com diluição 200C. Para capturar uma única molécula do pobre pato, precisaríamos de aproximadamente 100200 moléculas de água. Isso é um número muito, mas muito maior do que a estimativa do número de partículas em todo o universo. Quantas moléculas de vinagre existem no seu vinagre homeopático? Muito, mas muito, muito, muito, muito provavelmente nenhuma. Aqui poderíamos colocar um segundo ponto final. Se não há molécula, de onde vem o efeito?

Para quem defende a homeopatia, isso não é um problema. Eles argumentam da seguinte forma: ao fazer as agitações dos frascos entre uma diluição e outra (um processo chamado de sucussão), estamos dinamizando a água (atente para o vocabulário obscuro - característica gritante das pseudociências). O que é dinamizar a água? É fazer com que a água assuma uma conformação específica que será conservada através de uma propriedade chamada “memória da água”. Assim, mesmo que não haja nenhuma molécula da substância, as propriedades que a água assumiu enquanto estava em contato com a substância e passou pelo processo de sucussão serão conservadas. É a água, por si só, mantendo essa conformação, que desempenhará no seu corpo o efeito da molécula de vinagre. Isso existe? A resposta prática é não.

O efeito da “memória da água” sobre células do sistema imunológico foi descrito por um imunologista francês chamado Jacques Benveniste e foi publicado na revista Nature (!) em 1988. O corpo editorial da revista enviou cientistas independentes ao laboratório de Benveniste para replicar o experimento. O que eles fizeram foi simplesmente impedir que os pesquisadores soubessem quais culturas de células receberiam o o tratamento homeopático e quais receberiam o placebo (experimento cego). Dessa vez não houve diferença... ou seja, a hipótese da memória da água foi refutada. A Nature relatou o ocorrido numa edição seguinte. Benveniste foi afastado da academia e fundou uma instituição que continuava a pesquisar o assunto, chegando a supor que o efeito de memória da água poderia ser transferido de um recipiente a outro por meio da internet (é sério).
Jacques Benveniste e seus frascos de água com amnésia.
Eu fico aqui me perguntando por que a água não guarda memória de outras coisas...ao meu estado, aproximadamente um terço da chuva chega por meio das células de umidade da Amazônia. Aqui chove água da floresta amazônica. Isso significa que aqui chove pirarucu homeopático? E a água que passa por todos os processos de tratamento? Encanamentos... Só de pensar quanta coisa já entrou em contato com a água que ingerimos... se ela conservar memória de tudo... melhor parar.

Aqui se acaba a primeira parte. Expus um pouco do mecanismo de (não) ação da homeopatia. Coisas importantes pra lembrar: não tem nada naquele frasquinho, só água (ou álcool). E a água não guarda memória do que esteve ali. Certamente esse método era positivo na época de Hahnemann, visto que a medicina daquele tempo apresentava técnicas que mais matavam pessoas do que salvavam: sangrias, drenagens, ventosas, etc. Até eu teria mais chance com umas gotas de água...


Até a próxima sucussão!


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