A Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.), fundada em
1864, prezou pelo federalismo e pela ação direta desde seu primeiro
congresso, em Genebra (1866). É apenas em 1872, no congresso de
Haia, que se delibera pela participação dos trabalhadores nas
eleições. A partir daí, o socialismo passa a apresentar duas
estratégias distintas: a via que mantém a opção pela luta econômica
independente e a via que propõe a conquista do poder do Estado.
Com o início do século XX, passam a se tornar bastante claras três
estratégias distintas: (i) a luta econômica independente (seguindo
princípios organizativos básicos da Iª Internacional,
encarnada a partir desse momento no sindicalismo revolucionário), defendida -- não só -- pelos anarquistas; (ii) as reformas parlamentares como meio para o
socialismo, defendida pelos social-democratas; e (iii) a estratégia
que propõe a "ditadura do proletariado" como etapa
necessária, defendida pelos bolcheviques, após romperem com a social-democracia.
Podemos dizer que, das posições apresentadas acima, uma é reformista (social-democracia) e as outras são revolucionárias (anarquismo e bolchevismo). Ou, ainda, podemos afirmar que uma não vê o Estado como um meio adequado para se alcançar o objetivo socialista (anarquismo) e as outras vêem a necessidade de utilização do Estado nesse processo (social-democracia e bolchevismo).
Com base nessa introdução bastante esquemática, que teve o
intuito de esclarecer essas diferenças muitas vezes ocultas sob o
polissêmico conceito de "socialismo", podemos agora ficar
com o debate apresentado no texto do anarquista italiano Errico Malatesta. É importante frisar que "socialistas" no texto a seguir são os social-democratas e os bolcheviques, estando o anarquismo fora dessa definição. Para que tenha sentido a crítica de Malatesta, é preciso que isso seja notado. Faço esse destaque porque o anarquismo em geral é tratado como uma forma de socialismo, o chamado socialismo libertário. O próprio Malatesta defende essa posição (veja aqui), mas neste texto, devido à conjuntura da época, ele faz essa distinção entre "socialistas" e "anarquistas".
Trecho
inicial de Entre os Anarquistas e os Socialistas
Errico
Malatesta em Umanitá Nova, nº 153
25 de agosto
de 1920
Errico Malatesta (1853-1932) |
Diante da
atual invasão do leninismo,
o Giustizia [jornal
social-democrata italiano] permanece fiel às velhas concepções
socialistas-democratas – a social-democracia sendo tomada não no
sentido odioso que ela tomou depois das equívocas traições de
Noske e outros Scheidemann, mas no sentido que ela tinha antes da
guerra [1ª Guerra Mundial]. E este jornal aprova de bom grado as
críticas que fazemos contra a pretensa ditadura do proletariado, mas
também procura dirigi-las contra nós, contra o que ele chamaria
habitualmente, a crença dos anarquistas no milagre.
E pergunta-nos "por qual milagre a ordem comunista pode
realizar-se, não graças à organização progressiva dos
trabalhadores (como ele pensa), mas através da ação desordenada e
crítica das multidões desorganizadas às quais os anarquistas
apelam".
E [o jornal Giustizia] prossegue:
"Se consideramos a expressão ditadura do proletariado em seu
sentido exato, isto é, se compreendemos com isso o governo despótico
de uma minoria e não o governo despótico da classe operária, ou
seja, da imensa maioria, não somos destes socialistas de guerra que
pensam que a ditadura do proletariado pode construir, na primeira
tentativa, uma sociedade comunista, ou, pelo menos, acelerar
realmente sua formação. Para nós, é evidente que mesmo armado com
os instrumentos odiosos da ditadura, um governo de socialistas nada
pode fazer a mais, no que concerne à organização social, do que as
condições econômicas, intelectuais e morais das massas permitam
historicamente fazer. Todo esforço que quer ultrapassar este limite
está inevitavelmente destinado ao fracasso. Acreditar o contrário é
como se se acreditasse que um obstetra pode acelerar o
desenvolvimento de um feto com os instrumentos cirúrgicos de que ele
dispõe. Mas os anarquistas fazem ainda mais ilusões do que os
socialistas de guerra, visto que supõem que a operação cirúrgica
– a insurreição – pode trazer imediatamente ao mundo sua
própria ordem social, a partir de amanhã; enquanto nós todos vemos
que o embrião, por assim dizer, desta ordem, sequer existe, hoje, no
seio da sociedade capitalista".
Sempre
discutimos de bom grado com o Giustizia
porque este jornal mostra sempre que ele propõe-se honestamente a
chegar à verdade e esforça-se sinceramente para isso. Mas, ainda
assim, é preciso sublinhar a incompreensão que ele obstinadamente
demonstra a nosso respeito.
Talvez seja porque não saibamos fazer-nos compreender. Mas nos
parece, todavia, que esta incompreensão deve-se naturalmente à
mentalidade autoritária, ditatorial dos socialistas: eles não
podem conceber vida social sem que haja os que comandam e os outros
que obedecem.
Os democratas afirmam o direito de a maioria, ou de os grupos que
têm a pretensão de representar a maioria, fazer a lei; os
absolutistas arrogam-se, caso aconteça de eles serem os mais fortes,
o direito de impor suas próprias concepções ao resto da
humanidade, eventualmente pela violência e pelo terror; os
reformistas pensam que se pode chegar a realizar o socialismo gradual
e pacificamente; os revolucionários estão convencidos de que a
burguesia não se deixará suprimir tranquila e educadamente, e que
não permitirá que a organização dos trabalhadores questione
seriamente seus privilégios sem ela tomar a iniciativa da violência:
eles querem, pela insurreição, derrubar o obstáculo material – o
governo – que se opõe a que a ordem capitalista seja liquidada.
Mas, sejam quantos forem, os socialistas no fundo estão de acordo
para dizer que a transformação da sociedade deve fazer-se de cima,
por meio de leis e decretos impostos graças à força armada do
Estado.
Eles
dizem – quando dizem – o que fariam, como imporiam sua vontade,
seu programa, e perguntam-nos candidamente: E vocês, como
imporão seu programa?
Mas quantas vezes deveremos repetir que não queremos impor nada a
ninguém; que não acreditamos, nem possível nem desejável, fazer o
bem das pessoas contra sua vontade e que a única coisa que queremos
é que ninguém nos imponha sua própria vontade, que ninguém possa
impor aos outros uma forma de vida social se ela não for livremente
aceita?
Para
retomar a comparação obstétrica do
Giustizia, não temos
absolutamente a ilusão de que podemos, por uma operação cirúrgica,
trazer ao mundo um feto viável antes de chegar à maturidade. O que
queremos é destruir os obstáculos que impedem o feto de
desenvolver-se e que tende a estrangulá-lo no estado embrionário.
[...]
* O
trecho foi transcrito a partir da obra Anarquistas,
Socialistas e Comunistas,
que trata-se de uma compilação de textos de Malatesta publicada
pelo grupo anarquista Primer Mai, Annecy (França), traduzida por
Plínio Augusto Coêlho.
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