domingo, 19 de outubro de 2014

Socialismo(s): libertário, ditatorial ou reformista?

A Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.), fundada em 1864, prezou pelo federalismo e pela ação direta desde seu primeiro congresso, em Genebra (1866). É apenas em 1872, no congresso de Haia, que se delibera pela participação dos trabalhadores nas eleições. A partir daí, o socialismo passa a apresentar duas estratégias distintas: a via que mantém a opção pela luta econômica independente e a via que propõe a conquista do poder do Estado.

Com o início do século XX, passam a se tornar bastante claras três estratégias distintas: (i) a luta econômica independente (seguindo princípios organizativos básicos da Iª Internacional, encarnada a partir desse momento no sindicalismo revolucionário), defendida -- não só -- pelos anarquistas; (ii) as reformas parlamentares como meio para o socialismo, defendida pelos social-democratas; e (iii) a estratégia que propõe a "ditadura do proletariado" como etapa necessária, defendida pelos bolcheviques, após romperem com a social-democracia.

Podemos dizer que, das posições apresentadas acima, uma é reformista (social-democracia) e as outras são revolucionárias (anarquismo e bolchevismo). Ou, ainda, podemos afirmar que uma não vê o Estado como um meio adequado para se alcançar o objetivo socialista (anarquismo) e as outras vêem a necessidade de utilização do Estado nesse processo (social-democracia e bolchevismo).

Com base nessa introdução bastante esquemática, que teve o intuito de esclarecer essas diferenças muitas vezes ocultas sob o polissêmico conceito de "socialismo", podemos agora ficar com o debate apresentado no texto do anarquista italiano Errico Malatesta. É importante frisar que "socialistas" no texto a seguir são os social-democratas e os bolcheviques, estando o anarquismo fora dessa definição. Para que tenha sentido a crítica de Malatesta, é preciso que isso seja notado. Faço esse destaque porque o anarquismo em geral é tratado como uma forma de socialismo, o chamado socialismo libertário. O próprio Malatesta defende essa posição (veja aqui), mas neste texto, devido à conjuntura da época, ele faz essa distinção entre "socialistas" e "anarquistas".

Trecho inicial de Entre os Anarquistas e os Socialistas

Errico Malatesta em Umanitá Nova, nº 153
25 de agosto de 1920

Errico Malatesta (1853-1932)
Diante da atual invasão do leninismo, o Giustizia [jornal social-democrata italiano] permanece fiel às velhas concepções socialistas-democratas – a social-democracia sendo tomada não no sentido odioso que ela tomou depois das equívocas traições de Noske e outros Scheidemann, mas no sentido que ela tinha antes da guerra [1ª Guerra Mundial]. E este jornal aprova de bom grado as críticas que fazemos contra a pretensa ditadura do proletariado, mas também procura dirigi-las contra nós, contra o que ele chamaria habitualmente, a crença dos anarquistas no milagre. E pergunta-nos "por qual milagre a ordem comunista pode realizar-se, não graças à organização progressiva dos trabalhadores (como ele pensa), mas através da ação desordenada e crítica das multidões desorganizadas às quais os anarquistas apelam".

E [o jornal Giustizia] prossegue:

"Se consideramos a expressão ditadura do proletariado em seu sentido exato, isto é, se compreendemos com isso o governo despótico de uma minoria e não o governo despótico da classe operária, ou seja, da imensa maioria, não somos destes socialistas de guerra que pensam que a ditadura do proletariado pode construir, na primeira tentativa, uma sociedade comunista, ou, pelo menos, acelerar realmente sua formação. Para nós, é evidente que mesmo armado com os instrumentos odiosos da ditadura, um governo de socialistas nada pode fazer a mais, no que concerne à organização social, do que as condições econômicas, intelectuais e morais das massas permitam historicamente fazer. Todo esforço que quer ultrapassar este limite está inevitavelmente destinado ao fracasso. Acreditar o contrário é como se se acreditasse que um obstetra pode acelerar o desenvolvimento de um feto com os instrumentos cirúrgicos de que ele dispõe. Mas os anarquistas fazem ainda mais ilusões do que os socialistas de guerra, visto que supõem que a operação cirúrgica – a insurreição – pode trazer imediatamente ao mundo sua própria ordem social, a partir de amanhã; enquanto nós todos vemos que o embrião, por assim dizer, desta ordem, sequer existe, hoje, no seio da sociedade capitalista".

Sempre discutimos de bom grado com o Giustizia porque este jornal mostra sempre que ele propõe-se honestamente a chegar à verdade e esforça-se sinceramente para isso. Mas, ainda assim, é preciso sublinhar a incompreensão que ele obstinadamente demonstra a nosso respeito.

Talvez seja porque não saibamos fazer-nos compreender. Mas nos parece, todavia, que esta incompreensão deve-se naturalmente à mentalidade autoritária, ditatorial dos socialistas: eles não podem conceber vida social sem que haja os que comandam e os outros que obedecem.

Os democratas afirmam o direito de a maioria, ou de os grupos que têm a pretensão de representar a maioria, fazer a lei; os absolutistas arrogam-se, caso aconteça de eles serem os mais fortes, o direito de impor suas próprias concepções ao resto da humanidade, eventualmente pela violência e pelo terror; os reformistas pensam que se pode chegar a realizar o socialismo gradual e pacificamente; os revolucionários estão convencidos de que a burguesia não se deixará suprimir tranquila e educadamente, e que não permitirá que a organização dos trabalhadores questione seriamente seus privilégios sem ela tomar a iniciativa da violência: eles querem, pela insurreição, derrubar o obstáculo material – o governo – que se opõe a que a ordem capitalista seja liquidada. Mas, sejam quantos forem, os socialistas no fundo estão de acordo para dizer que a transformação da sociedade deve fazer-se de cima, por meio de leis e decretos impostos graças à força armada do Estado.

Eles dizem – quando dizem – o que fariam, como imporiam sua vontade, seu programa, e perguntam-nos candidamente: E vocês, como imporão seu programa?

Mas quantas vezes deveremos repetir que não queremos impor nada a ninguém; que não acreditamos, nem possível nem desejável, fazer o bem das pessoas contra sua vontade e que a única coisa que queremos é que ninguém nos imponha sua própria vontade, que ninguém possa impor aos outros uma forma de vida social se ela não for livremente aceita?

Para retomar a comparação obstétrica do Giustizia, não temos absolutamente a ilusão de que podemos, por uma operação cirúrgica, trazer ao mundo um feto viável antes de chegar à maturidade. O que queremos é destruir os obstáculos que impedem o feto de desenvolver-se e que tende a estrangulá-lo no estado embrionário. [...]

* O trecho foi transcrito a partir da obra Anarquistas, Socialistas e Comunistas, que trata-se de uma compilação de textos de Malatesta publicada pelo grupo anarquista Primer Mai, Annecy (França), traduzida por Plínio Augusto Coêlho.

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