segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Organismo e ambiente: quem é quem nessa história?

Imagem: http://www.wakaleo.net/
Toda teoria é um modelo. E como modelo, precisa ser didático; para nós mesmos. Da mesma forma que o professor esquematiza processos complexos para que os alunos em sala de aula "captem" a essência da matéria, sem pequenas nuances, exceções, variações, detalhes que dariam um nó nas cabeças que estão vendo aquilo como novidade, o cientista simplifica o mundo para si mesmo.

Darwin precisou romper com uma visão integralista e muitas vezes mesmo holística da natureza para chegar à sua forma de explicar o mundo vivo. Antes dele não havia muita distinção entre o físico e o biológico, entre o interno e o externo, e como tal, entre o ambiental e o hereditário. Foi preciso uma separação absoluta entre os processos internos, que geravam o organismo, e os externos, que geravam o ambiente.




Os primeiros, que mais tarde vieram a ser conhecidos como mutação e recombinação, são totalmente independentes dos segundos. A história do ambiente, por sua vez, é gerada por mudanças geológicas, no nível do mar, climáticas e catastróficas, e portanto também são independentes das primeiras. O organismo confronta este cenário, o mundo ao seu redor, ou "ambiente", com suas leis e mecanismos próprios, e se adapta a ele; ou perece. Outros organismos também são vistos como parte do ambiente de uma espécie, mas estes só interagem, novamente, por meio do processo seletivo. O organismo do pensamento evolutivo darwiniano, assim, é apenas o objeto passivo de forças internas e externas independentes entre si.

Richard Lewontin é um daqueles biólogos com forte veia filosófica. Geneticista de populações, escreveu muito sobre o pensamento evolutivo e biológico. A dicotomia organismo-ambiente, nas palavras dele em A Tripla Hélice (1998), "foi um passo essencial para o desenvolvimento da biologia moderna. Sem ela, ainda estaríamos chafurdando na lama de um holismo obscurantista que misturava orgânico e inorgânico em um todo impossível de ser analisado". Mas para continuarmos o progresso no entendimento da natureza, segundo ele, precisamos reconsiderar a relação entre organismo e ambiente. Lewontin considera que a metáfora da adaptação - antes um importante instrumento heurístico para a construção da teoria da evolução - é agora um obstáculo para a compreensão efetiva do processo evolutivo, e sugere a substituição pela idéia de construção.


Não existe organismo sem ambiente


Em primeiro lugar, não existe organismo sem ambiente. Isto se torna mais óbvio se pensarmos no conceito do ambiente como algo que "envolve" ou que "cerca". Oras, para que haja envolvimento é preciso que haja um algo no centro para ser envolvido. Além do mais, ainda que eras glaciais e interglaciais, erupções de vulcões, evaporação dos oceanos sejam processos que se dão independentemente de quaisquer seres vivos, os seus resultados - depósitos de gelo, cinzas vulcânicas e fontes de água - não são ambientes, mas sim condições físicas das quais ambientes podem ser construídos. São as relações entre os indivíduos e seu entorno que determinam quais elementos do mundo exterior são relevantes para eles. Neste sentido, nos aproximamos do conceito de nicho, bastante variável, mas que geralmente gira entorno do conjunto de elementos determinados pelas atividades vitais de cada espécie. A delimitação entre organismo e ambiente se torna ainda mais difusa quando consideramos "artefatos" feitos por aqueles, como o ninho do joão-de-barro, ou formigueiros e cupinzeiros - abarcados pelo conceito de fenótipo estendido por Dawkins (1982).




Não existe ambiente sem organismo


Em um sentido de dependência e construção bastante parecido com o caso acima, tão pouco existe um ambiente sem organismo. Este problema pode ser ilustrado por um exemplo prático surgido na busca pela vida em Marte.

No primeiro veículo de aterrissagem enviado ao planeta foi acoplado um tubo que sugaria a poeira marciana para o interior de um frasco de reação cheio de um meio de cultura para a vida microbiana. O carbono no carboidrato do meio havia sido marcado radiativamente, de modo que o dióxido de carbono liberado quando as células usam um carboidrato para obter energia seria detectado por um contador de radiatividade. Para a alegria e delírio dos cientistas que monitoravam o experimento, a máquina em solo marciano começou a mandar sinais de quantidades crescentes de dióxido de carbono radiativo. De repente, contudo, a produção cessou - um padrão desconhecido para culturas bacterianas em crescimento. O esperado era que o nível de CO2 atingisse um patamar e declinasse gradualmente, à medida que as células começassem a morrer. O concenso entre os cientistas foi de que não havia vida em Marte e a produção inicial de dióxido de carbono havia sido o resultado de uma quebra no meio de cultura catalisada por partículas finas de poeira.

O problema do raciocínio por trás deste projeto foi ter apresentado um nicho ecológico à Marte e perguntado se este nicho seria preenchido. Os projetistas achavam que o ambiente era independente do organismo no sentido que vai deste para aquele. Como saber qual é o ambiente da vida marciana se não "vimos" organismos marcianos? Os ambientes, assim, não são preexistentes aos organismos, e sim consequência destes.

Mudanças no organismo causadas pelo ambiente podem ser herdadas


Uma mudança de paradigma mais empírica (visto que a discussão até aqui se deu basicamente no nível conceitual) na relação organismo-ambiente se refere aos efeitos transgeracionais, e portanto, evolutivamente importantes que se dão em ambos os sentidos. Primeiro, existem evidências de que alterações ambientais causadas no organismo são herdadas. Plantas de rabanete-selvagem atacadas por lagartas da borboleta Pieris rapae produzem 10 vezes mais compostos químicos defensivos e desenvolvem uma densidade de tricomas 30% maior. As gerações formadas por suas mudas, ainda que não expostas ao herbívoro, mantêm alterações na mesma direção (Agrawal et al. 1999; exemplo retirado do livro "Ecological Developmental Biology, de Gilbert & Epel, 2008). Estes e outros exemplos de polifenismo transgeracional, ainda que sejam casos excepcionais, abrem as portas para a busca de uma nova forma de adaptação que reaproxima as idéias de Lamarck do processo evolutivo.


Mudanças no ambiente causadas pelos organismos podem ser herdadas


Por fim, alterações no ambiente causadas pelos organismos também podem ser herdadas. Os proponentes de uma recente área de estudo denominada Construção de Nicho defendem que, uma vez que as alterações no ambiente causadas pelos organismos se perpetuam para as gerações seguintes, estas seja consideradas mais um sistema de herança, a herança ecológica - definida como "a herança, via um ambiente externo, de uma ou mais pressões seletivas naturais previamente modificadas por organismos construtores de nicho".

João-de-barro modificando seu "ambiente"
Dawkins reconhecia que qualquer gene expressado por meio de um fenótipo estendido deveria afetar a probabilidade de sobrevivência e reprodução do seu organismo portador, e portanto sua própria representação na geração subsequente. Contudo, ele não considerava que o mesmo gene deve afetar também a aptidão de outros genótipos, de características sem relação direta com o fenótipo em questão, por alterar seu ambiente seletivo. A represa construídas por um castor, por exemplo, modifica as pressões seletivas do ambiente do castor, afetando a aptidão de genes envolvidos nas mais diversas atividades da vida deste organismo, como comportamento de alimentação, suscetibilidade à predação, doenças, estratégias de história de vida, sistemas sociais, etc.

A inclusão do conceito de herança ecológica na agora emergente síntese estendida da evolução implica que, em cada geração, uma prole herdará não apenas genes, mas também um ambiente seletivo local modificado ou previamente escolhido relativo a estes genes. Então, o que cada prole realmente herda é uma relação organismo-ambiente, ou nicho, de seus ancestrais.

Este novo modelo tem implicações muito mais amplas para o entendimento do processo evolutivo, em parte pela forma como passa a integrar processos ecológicos e de desenvolvimento, e força-nos a rever pré-conceitos estabelecidos no início da gênese do darwinismo. Organismo e ambiente, aos poucos, voltam a ser vistos como um todo integrado e indissolúvel.

3 comentários:

  1. Ótimo texto, André!
    Esse é um tema que me instiga bastante já há algum tempo.
    Acho que podemos dizer que 'A Tripla Hélice' (Lewontin, 1998) é um livro introdutório bem interessante pra esse tema. E o mais interessante é que esses processos - além de vários outros - estão sendo retomado com os proponentes da Síntese Estendida. Vale a pena o pessoal ler a postagem que tu te remeteu aí no texto (http://adagadeoccam.blogspot.com.br/2013/05/sintese-estendida-daevolucao.html). Eu gostaria apenas de retomar a tua última frase, a respeito de que "Organismo e ambiente, aos poucos, voltam a ser vistos como um todo integrado e indissolúvel." Acho que esse é um ponto fundamental, principalmente se tivermos em mente a ideia que tu expôs (e que o próprio Lewontin deixa claro) de que foi importantíssima a distinção entre organismo e ambiente pra construção da teoria de descendência com modificação, do Darwin. E provavelmente a constrição de teorias realizada pela síntese moderna também foi importante pro avanço no conhecimento. Mas, dado o conhecimento científico atual, parece bastante necessário incluirmos seriamente na teoria evolutiva a relação organismo-ambiente e suas consequências.
    É interessante entendermos que esse "todo integrado" como tu chamou não é o tal do holismo obscurantista a que o Lewontin se refere, mas é a própria ideia do Lewontin. Certamente precisamos da análise das partes, mas igualmente necessitamos conectá-las. É a própria análise que nos mostra isso, não uma visão obscurantista de que "TUDO é um todo integrado e indissolúvel".
    Novamente: muy bueno o texto e o tema escolhido!
    Abraço

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    1. Certamente, Cláudio! E bem observado o teu acréscimo de que a "constrição" de teorias da síntese talvez tenha sido necessária, mas que, assim como a separação organismo-ambiente, também é metodológica e portanto precisamos nos desapegar dela pra termos uma noção mais realista da evolução. Sobre o "todo integrado", já te adianto que tem a ver com o tema do meu próximo texto, já em preparação, e que talvez tu ache ele um pouco holista (o que não acho ruim em si, desde que não obscurantista), hehehe. Valeu!

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  2. Boa, André!

    Quanto ao teu texto futuro, infelizmente ainda não posso opinar! hehehe

    Mas eu me alinho bastante com essas posições filosóficas do Lewontin, que estão entre o reducionismo exagerado e o holismo obscurantista. Acho que vieses um pouco mais reducionistas e um pouco mais holistas são inclusive saudáveis pra ciência. Constitui uma diversidade importante de ser mantida. Seria inclusive interessante se avaliar como essa relação se dá no interior das ciências. Parece-me que traz um embate frutífero.

    Em junho de 2011 fiz uma postagem aqui no Adaga de crítica ao reducionismo fisicalista transcrevendo parte de um texto do filósofo da biologia Elliot Sober. Segue o vínculo: http://adagadeoccam.blogspot.com.br/2011/06/filosofia-da-biologia-o-reducionismo.html

    E neste texto de 2010 também flertei com um certo holismo: http://adagadeoccam.blogspot.com.br/2010/05/visao-reducionista-e-visao-sistemica-na.html

    Hoje em dia, gosto bastante do que o Mario Bunge chama de "sistemismo". Ele afirma que o sistemismo é "a cosmovisão segundo a qual o mundo é um sistema de sistemas mais do que um bloco sólido [holismo] ou um agregado de particulares [reducionismo]".

    Mas voltando ao teu texto, achei extremamente interessante porque traz ideias emergentes na biologia e na evolução. Dificilmente isso é tratado nos cursos de graduação em biologia. É um tema que me instiga bastante e me deixa apreensivo pensando no que isso vai dar, como isso vai se desenvolver com o tempo e como se dará essa unificação tão pretendida pela Síntese Estendida da Evolução.

    Grande abraço

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