O texto a seguir foi escrito por Pablo Ortellado, doutor em filosofia e prof. no curso de Gestão de Políticas Públicas da USP. Pode-se lê-lo também por aqui. As imagens foram incluídas por nós.
A história do zapatismo tem uma questão analítica central: como a mais ou menos anacrônica guerrilha das Forças de Libertação Nacional (FLN) dos anos 1980 se transformou no moderno zapatismo do levante de janeiro de 1994 – zapatismo que subordinou o militarismo à ação política da sociedade civil, que combinou a tradicional organização indígena com a democracia radical europeia, que substituiu o materialismo marxista por um discurso político fundado na ética e, finalmente, que apareceu como a vanguarda do movimento “antiglobalização” na ênfase que dá aos novos centros de poder transnacionais.
Originalmente, as FLN se constituíram como um agrupamento marxista-leninista formado por militantes da classe média urbana que acreditavam que a via da luta pacífica estava esgotada e que apenas uma guerra popular poderia derrotar o império americano e dar início a um processo de libertação nacional que conduzisse ao socialismo. Apesar desse caráter tradicional, partilhado por outros grupos guerrilheiros dos anos 1980, as FLN logo subordinaram a estratégia propriamente militar ao trabalho político, pois acreditavam que a insurreição libertadora não aconteceria no curto prazo. Essa estratégia foi aprofundada com a formação do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e a gradual aproximação com as lideranças tradicionais das comunidades indígenas de Chiapas. Esse longo e tumultuado processo de aproximação e quase fusão da organização militar do EZLN com as lideranças tradicionais de algumas comunidades indígenas foi talvez o principal passo no processo de subordinar os aspectos militares da luta aos aspectos políticos. Com essa fusão, as principais decisões militares passaram a ser tomadas formalmente pelas comunidades e a própria estrutura militar passou a ser respaldada por uma ampla rede de milicianos e bases de apoio.
Mas o que de fato consolidou essa estratégia foi a reação da sociedade civil mexicana ao levante de 1994. Ao simultaneamente demonstrar apoio às reivindicações zapatistas e exigir o fim das hostilidades, a sociedade civil indicou que a consolidação e mesmo a sobrevivência do zapatismo não poderia ser garantida militarmente, mas apenas por meios políticos. Assim, os zapatistas que já sabiam que não tinham meios militares para derrotar sozinhos o exército mexicano, perceberam que teriam o apoio de uma significativa parcela da sociedade mexicana, mas apenas na medida em que abrissem mão da via militar exclusiva. A pronta assimilação dessa mensagem deu origem a uma nova forma de fazer política que foi teatralizada nas negociações de paz nas quais a sociedade civil desarmada cercou o prédio onde ocorriam os diálogos, protegendo os militares zapatistas (essa mesma cena se repetiu nas caravanas zapatistas à cidade do México, nas quais a sociedade civil proveu segurança política aos guerrilheiros). Os zapatistas também criaram encontros de diálogo e apoio entre as comunidades e a sociedade civil (os Aguacalientes) que depois foram substituídos por instituições permanentes de contato chamadas deCaracóis. Esses vínculos entre as comunidades zapatistas e os apoiadores da sociedade civil impediram que o governo mexicano iniciasse uma impopular guerra aberta, restringindo-se a uma guerra de baixa intensidade.
A subordinação da estratégia militar à luta política era realmente inusitada para uma organização militar – e particularmente inusitada porque a política que era praticada pelos zapatistas era essencialmente não-institucional, centrada na aliança com a sociedade civil. De qualquer maneira, o EZLN rapidamente incorporou essa lição como doutrina norteadora e passou a se apresentar nos comunicados zapatistas como um exército de “soldados [que lutam] para que um dia não sejam necessário os soldados”. Essa censura ao militarismo não expressava apenas a esperança de paz, mas apontava para a contradição entre um projeto político radicalmente democrático e a inevitável hierarquia militar. Essa contradição dissolveu-se em parte com a criação das Juntas de Bom Governo em 2003. Orientada pelo princípio do “mandar obedecendo” (em que o governo municipal se reporta às deliberações das assembleias), a constituição do "bom governo" era fruto da passagem de comando político dos municípios autônomos do exército para a comunidade – uma renúncia que normalmente não se espera de quem já exerce o poder. Alegando que “os exércitos não foram feitos para governar, mas para defender”, o EZLN passou o comando dos municípios para as Juntas e se restringiu à tarefa de oferecer proteção contra os ataques do “mau governo”.
O redirecionamento da luta militar para a luta política e a incorporação da sociedade civil marcaram a emergência de uma ambígua estratégia política que foi chamada de “extremista” pela direita e “reformista” pela esquerda revolucionária. Os zapatistas, dissuadidos pela sociedade civil de persistir no levante armado, começaram a promover diálogos com essa mesma sociedade civil com o objetivo de conseguir uma reforma política, uma reforma das leis indígenas e a autonomia das comunidades zapatistas.
O discurso zapatista evidentemente reivindicava a herança da revolução mexicana – herança que havia sido em grande parte apropriada pelo corrompido e dominante Partido Revolucionário Institucional (PRI). Assim, a despeito do seu caráter armado e revolucionário, o discurso zapatista incluía referências constantes às conquistas e valores da revolução de 1917. Como podia ser então revolucionário se era constitucionalista? Como podia exigir mudanças nas leis e se recusar a almejar o poder do estado? Como podia reivindicar a autonomia das comunidades indígenas e ser um exército de libertação nacional? A resposta para esses dilemas estava na máxima zapatista de “um mundo onde caibam vários mundos”. Tentando ultrapassar as antinomias entre reforma e revolução e o institucional e o não-institucional, os zapatistas criaram uma forma ambígua e pragmática de fazer política que apontava para a pluralidade e para a convivência, sem perder o antagonismo e o horizonte de transformação social radical. À medida que “aprofundavam sua autonomia” (querendo dizer, ao mesmo tempo, o desenvolvimento da democracia direta e a independência do poder do estado mexicano), os zapatistas lutavam para mudar o quadro legal por meio de uma reforma política e das leis indígenas (o que facilitaria o desenvolvimento da autonomia). Essa concepção heterodoxa e pragmática foi logo chamada de reformista pela extrema esquerda revolucionária porque não aspirava tomar ou destruir o poder do estado. No entanto, ela logo foi reconhecida e apropriada por diversas formas de lutas urbanas que já se desenvolviam desde os anos 1960 e cuja estratégia consistia justamente no desenvolvimento de práticas autônomas dentro e contra o capitalismo, prefigurando a sociedade a que se aspirava.
Outra característica marcante e distintiva dos zapatistas é a dimensão ética do seu discurso e da sua estratégia. Isso chama ainda mais a atenção em um movimento que tem suas origens no marxismo que sempre se diferenciou das correntes socialistas “utópicas” por substituir uma crítica moral do capitalismo por uma análise materialista da história. Para o marxismo, o advento de uma nova sociedade não era simples fruto de uma ação voluntarista orientada pela indignação moral, mas seria resultado de processos históricos concretos que criariam condições objetivas para uma intervenção política comunista. Isso fez com que o discurso teórico marxista fosse sempre muito centrado na análise da história econômico-política, enquanto na base dos movimentos dos trabalhadores sempre tivesse prevalecido um discurso moral. Essa dualidade presente em quase todos os movimentos com orientação marxista foi muito pouco discutida, talvez porque essa diferença de abordagem reforçasse a distinção intelectual entre os dirigentes e os dirigidos. Mas desde o advento da teologia da libertação, o discurso ético ganhou proeminência na política de esquerda e não parece coincidência que a igreja tenha desempenhado papel tão importante na gênese do zapatismo.
Mas parece haver outras raízes para a heterodoxia teórica do zapatismo. Em parte, ela pode estar na formação do seu líder Marcos, que, a se acreditar nas especulações sobre a sua identidade, defendeu uma tese de mestrado sobre educação “com mais influências de Foucault e Derrida que de Althusser” e parece ter contribuído para que o programa das FLN contemplasse já em 1992 uma “aplicação criativa e renovadora” do marxismo-leninismo. Contudo, fundamentalmente, a heterodoxia zapatista parece mesmo provir do discurso das bases. Dissolvendo a tradicional antinomia marxista que opunha o discurso materialista da direção ao discurso moral das bases, o programa horizontalista dos zapatistas incorporou a crítica moral ao capitalismo como teoria. Ao que tudo indica, a assimilação das lideranças tradicionais das comunidades indígenas na estrutura de poder zapatista trouxe com ela o discurso moral que sempre acompanhou as bases. É a isso que se deve o papel de conceitos como o de “dignidade” que estão no centro do discurso zapatista, assim como o rechaço à política fundada em interesses que se expressou no lema “Para todos tudo, para a gente nada”. Parece que é isso também que permite a centralidade estratégica dos aspectos literários dos comunicados escritos pelo subcomandante Marcos. Evidentemente, para o desenvolvimento dessa estratégia era preciso antes que o próprio Marcos tivesse o talento literário que tem, assim como concentrasse, de maneira pouco horizontal, toda a comunicação relevante. Mas o desenvolvimento dos aspectos literários no discurso zapatista que inclui elementos mágicos, éticos e políticos só aconteceu porque se buscou resgatar o papel efetivo que esses elementos sempre desempenharam na cultura política da base.
O zapatismo se caracterizou também por vincular uma luta tipicamente local como a dos indígenas de Chiapas com os processos mais amplas da economia global. Não foi por acaso que o levante zapatista foi deflagrado no primeiro de janeiro de 1994, dia em que o México passava a integrar o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA). Os zapatistas estiveram entre os primeiros que compreenderam que os processos globais de desregulamentação da economia tinham impacto direto na política local. Isso tinha ficado muito claro para eles com a reforma do artigo 27 da Constiuição mexicana que permitia que as terras comunais (os ejidos) pudessem ser comercializadas. Essa medida foi uma entre várias medidas “modernizantes” que precederam a adesão do México ao NAFTA e causaram grande impacto social nas áreas rurais pobres.
Da mesma forma que os zapatistas incorporaram a ação da sociedade civil mexicana na sua luta por “liberdade, democracia e justiça” no México, também buscaram incluir a “sociedade civil internacional” na sua luta contra o neoliberalismo. Como já foi notado por John Hollloway, o conceito de sociedade civil dos zapatistas não se refere à esfera não-econômica e não-estatal de uma maneira geral, mas aos grupos que estão em luta e que não aspiram ao poder do estado – é, portatno, um conceito que cria uma identidade antagonista aberta. Os zapatistas se esforçaram por reunir os grupos dessa sociedade civil internacional para dar início a um processo de luta articulada contra o neoliberalismo que não podia ser combatido no âmbito local ou mesmo nacional. Assim, em 1996, eles realizaram o I Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra o Neoliberalismo que precedeu e serviu de inspiração para iniciativas posteriores como o Fórum Social Mundial e redes de luta internacionais como a Ação Global dos Povos e a Via Campesina.
Por ligar as questões populares e indígenas com as grandes questões globais – o acordo do NAFTA e a ascensão do neoliberalismo –, por seu apelo por um novo mundo baseado na democracia direta e na justiça social e pela sua peculiar incorporação da estética e da ética na prática politica, os zapatistas abriram caminho para uma onda de novos movimentos sociais e políticos. O zapatismo é reivindicado pelo movimento “antiglobalização”, pelo movimento piqueteiro na Argentina, com seu lema de “Dignidade, trabalho e mudança social” e pelos centros sociais dos jovens da Europa.
Há duzentos anos, Kant havia dito que o significado histórico da revolução francesa não deveria ser buscado do que ele efetivamente foi, mas na “universal e desinteressada simpatia” que despertou nos homens. Quando os zapatistas pegaram em armas em 1994 e, depois, quando foram aos poucos substituindo o fogo pela palavra e desenvolvendo os Caracóis e asJuntas de Bom Governo, comitẽs e grupos de solidariedade aos zapatistas começaram a aparecer espontaneamente em todo o mundo. Esses grupos traduziram os comunicados zapatistas para dezenas de línguas e organizaram manifestações em centenas de cidades. Assim, não apenas permitiram que a experiência zapatista florescesse, como o caráter espontâneo e desinteressado das suas ações demonstrou a disposição dos homens e mulheres do nosso tempo para construir um futuro orientado não exatamente pelo que o zapatismo é, mas por tudo aquilo que ele significa.
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