quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Salva-Vidas de chumbo


Buenas!

Desta vez trago mais uma buena payada do companheiro uruguayo Eduardo Galeano.
O texto traz mais dois exemplos, atuais, da velha política latinoamericana de entreguismo e dependência, com origem naquela distante e "gloriosa" data de 12 de outubro de 1492: a soja e a celulose. Hoje, bem mascarada pela promessa de progresso e desenvolvimento, essa mesma política continua sugando as enormes riquezas da América Latina em direção às economias mandantes, comprometendo a biodiversidade e agravando a desigualdade social.

A maldição da sua própria riqueza, como coloca Galeano na sua grande obra "As veias abertas da América Latina".

"A divisão internacional do trabalho consiste em que uns países se especializam em ganhar e outros em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: se especializou em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se lançaram através do mar e cravaram-lhe os dentes na garganta. Passaram os séculos e a América Latina aperfeiçoou suas funções. Este já não é o reino das maravilhas onde a realidade derrotava a fábula e a imaginação era humilhada pelos troféus da conquista, as jazidas de ouro e as montanhas de prata. Mas a região segue trabalhando de serva. Continua existindo à serviço das necessidades alheias, como fonte e reserva de petróleo e ferro, cobre e carne, frutas e café, matérias primas e alimentos com destino aos países ricos que ganham, consumindo-os, muito mais do que a América Latina ganha produzindo-os."
Eduardo Galeano, Las venas abiertas de América Latina, 1971 (tradução livre).

Segue o texto!


Salva-Vidas de chumbo
Eduardo Galeano, agosto de 2006. Tradução retirada de http://raivosos.blogspot.com/2006/10/salva-vidas-de-chumbo.html

Pelo que diz a voz de comando, nossos países devem acreditar na liberdade do comércio (embora ela não exista), honrar os compromissos (embora eles sejam desonrosos), atrair investimentos (embora eles sejam indignos) e ingressar no cenário internacional (embora pela porta dos fundos).
Ingressar no cenário internacional: o cenário internacional é o mercado. O mercado mundial, onde compram-se países. Nada de novo. A América Latina nasceu para obedecê-lo, quando o mercado mundial nem era chamado assim, e de um jeito ou de outro continuamos atados ao dever de obediência.
Esta triste rotina dos séculos começou com o ouro e a prata, e continuou com o açúcar, o tabaco, o guano, o salitre, o cobre, o estanho, a borracha, o cacau, a banana, o café, o petróleo... O que esses esplendores nos deixaram? Nos deixaram sem herança nem bonança. Jardins transformados em desertos, campos abandonados, montanhas esburacadas, águas apodrecidas, longas caravanas de infelizes condenados à morte antecipada, palácios vazios onde perambulam fantasmas..
Agora, chegou a vez da soja transgênica e da celulose. E outra vez repete-se a história das glórias fugazes, que ao som de seus clarins nos anunciam longas tristezas.
***
Será que o passado ficou mudo?
Nós nos negamos a escutar as vozes que nos alertam: os sonhos do mercado mundial são os pesadelos dos países que se submetem aos seus caprichos. Continuamos aplaudindo o seqüestro dos bens naturais que Deus, ou o Diabo, nos deu, e assim trabalhamos pela nossa própria perdição e contribuímos para o extermínio da pouca natureza que nos resta neste mundo.
Argentina, Brasil e outros países latino-americanos estão vivendo a febre da soja transgênica. Preços tentadores, rendimentos multiplicados. A Argentina é, e já faz tempo, o segundo maior produtor mundial de transgênicos, depois dos Estados Unidos. No Brasil, o governo de Lula executou uma dessas piruetas que pouco favor fazem à democracia, e disse sim à soja transgênica, embora seu partido tenha dito não durante toda a campanha eleitoral.
Isso é pão hoje e fome amanhã, como denunciam alguns sindicatos rurais e organizações ecologistas. Mas já sabemos que os peões ignorantes se negam a entender as vantagens do pasto de plástico e da vaca a motor, e que os ecologistas são uns estraga-prazeres que não dizem coisa-com-coisa.
***
Os advogados dos transgênicos afirmam que não está provado que prejudiquem a saúde humana. Em todo caso, também não está provado que não a prejudiquem. E já que são assim tão inofensivos, por que os fabricantes de soja transgênica se negam a esclarecer, nas embalagens, que vendem o que vendem? A etiqueta de soja transgênica não seria sua melhor publicidade?
Acontece que existem evidências de que estas invenções do Doutor Frankenstein fazem mal à saúde do solo e reduzem a soberania nacional. Exportamos soja ou exportamos solo? Estamos ou não estamos presos nas gaiolas da Monsanto e de outras grandes empresas de cujas sementes, herbicidas e pesticidas passamos a depender?
Terras que produziam de tudo para o mercado local agora se consagram a um único produto para a demanda estrangeira. Nós nos desenvolvemos para fora e nos esquecemos de dentro. O mono-cultivo é uma prisão, sempre foi, e agora, com os transgênicos, é muito mais. A diversidade, por sua vez, liberta. A independência se reduz ao hino e à bandeira, se a soberania alimentar não é assentada. A autodeterminação começa pela boca. Só a diversidade produtiva pode nos defender das súbitas despencadas de preços que são costume, mortífero costume, do mercado mundial.
As imensas extensões destinadas à soja transgênica estão arrasando os bosques nativos e expulsando os camponeses pobres. Poucos braços ocupam essas explorações altamente mecanizadas, que ao mesmo tempo exterminam as plantações pequenas e as hortas familiares com os venenos que fumigam. Multiplica-se o êxodo rural às grandes cidades, onde se supõe que os expulsos vão consumir, se tiverem sorte, o que antes produziam. É a agrária reforma: a reforma agrária pelo avesso.
***
A celulose também está na moda, em vários países.
Agora, o Uruguai está querendo se transformar num centro mundial de produção de celulose para abastecer de matéria prima barata as longínquas fábricas de papel.
Trata-se de monocultivos para a exportação, na mais pura tradição colonial: imensas plantações artificiais que dizem ser bosques e se convertem em celulose num processo industrial que arroja detritos químicos nos rios e torna o ar irrespirável.
No Uruguai, começaram por duas fábricas enormes, uma das quais já está a meio construir. Depois surgiu outro projeto, e já se fala de outro, e outro mais, enquanto mais e mais hectares estão sendo destinados à fabricação de eucaliptos em série. As grandes empresas internacionais nos descobriram no mapa do mundo, e caíram de súbito amor por este Uruguai onde não há tecnologia capaz de controlá-las, o estado outorga subsídios e evita impostos, os salários são raquíticos e as árvores brotam num piscar de olhos.
Tudo indica que nosso país, pequenino, não irá agüentar o asfixiante abraço desses grandalhões. Como costuma acontecer, as bênçãos da natureza se transformam em maldições da história. Nossos eucaliptos crescem dez vezes mais depressa que os da Finlândia, e isso se traduz assim: as plantações industriais serão dez vezes mais devastadoras. No ritmo de produção previsto, boa parte do território nacional está sendo espremida até a última gota de água. Os gigantes sedentos vão secar nosso solo e nosso subsolo.
Trágico paradoxo: este país foi o único lugar do mundo em que a propriedade da água foi submetida a plebiscito popular. Por esmagadora maioria, os uruguaios decidiram, em 2004, que a água seria propriedade pública. Não haverá maneira de evitar o seqüestro dessa vontade popular?
***
A celulose, é preciso reconhecer, transformou-se em algo assim como uma causa patriótica, e a defesa da natureza não desperta entusiasmo. Pior: em nosso país, algumas palavras que não eram palavrões, como ecologista e ambientalista, estão se transformando em insultos que crucificam os inimigos do progresso e os sabotadores do trabalho.
Celebra-se a desgraça como se fosse boa notícia. Mais vale morrer de contaminação do que morrer de fome: muitos desempregados acreditam que não existe outro remédio além de escolher entre duas calamidades, e os mercadores de ilusões desembarcam oferecendo milhares e milhares de empregos. Acontece que uma coisa é a publicidade, e outra é a realidade. O MST, movimento dos camponeses sem terra, divulgou dados eloqüentes, e que não valem apenas para o Brasil: a celulose gera um emprego a cada 185 hectares, e a agricultura familiar cria cinco empregos a cada dez hectares.
As empresas prometem o melhor. Trabalho a rodo, investimentos milionários, controles rígidos, ar puro, água limpa, terra intacta. E eu me pergunto: já que é assim, por que não instalam essas maravilhas em Punta del Este, para melhorar a qualidade de vida e estimular o turismo em nosso balneário principal?

Um comentário:

  1. nada como um Galeano...

    Não tem como chegar no fim do texto sem se retorcer na cadeira e pensar na extrema injustiça com o meio ambiente e os pequenos trabalhadores! Acabo de ler o Galeano e sempre me vem um sentimento de "não posso ficar parado sem fazer nada".´

    Nós que pensamos assim temos que, de alguma maneira, atuar em movimentos socias e ambientais. Não podemos pensar, pensar e não agir. Eu penso nisso como um dever, pelo simples motivo de vivermos numa sociedade e, por isso, termos o papel de agir como cidadãos.

    Como disse Bertrand Russel, "O homem não é um animal solitário, e enquanto perdura a vida em sociedade, a realização de si mesmo não pode ser o supremo princípio ético."

    Continuemos na luta contra Pai Querê, na luta pela reforma agrária e, agora, na luta contra o complexo Garabi... na verdade, contra o modelo energético e o modelo de agricultura vigente no Brasil!

    Abraços baguais

    ResponderExcluir