O Pensador, famosa escultura feita em bronze pelo francês Auguste Rodin. |
A lógica é uma descoberta
grega. As leis do pensamento foram observadas pela primeira vez na Grécia
antiga e foram articuladas e codificadas pela primeira vez nos Analíticos de
Aristóteles. Lógicos modernos ultrapassam Aristóteles no escopo de suas
investigações e no virtuosismo técnico do seu estilo, mas, com relação à
elegância de concepção e ao rigor de pensamento, ele é par dos modernos e, em
todas as coisas, seu pai intelectual.
Aristóteles era consciente de
suas próprias proezas: admiravelmente imodesto, ele trombeteou seu feito e
solicitou a gratidão da posterioridade. No entanto, Deus, como John Locke
causticamente observou, “não foi tão parcimonioso para com os homens a ponto de
fazê-los criaturas tão somente de duas pernas e deixar que Aristóteles os
tornasse racionais”. Embora os predecessores de Aristóteles não tenham estudado
a arte do raciocínio, eles eram especialistas em sua prática; ainda que não
fossem lógicos profissionais, eram pensadores de profundidade e poder. De fato,
tampouco havia alguém mais consciente disto do que o próprio Aristóteles: o
homem aristotélico é essencialmente um raciocinador e os escritos de
Aristóteles descrevem e enaltecem as realizações daqueles homens que, pela
primeira vez, descobriram e mapearam os amplos oceanos sobre os quais iria
navegar o imponente galeão da sua própria filosofia.
Entre aqueles viajantes, Platão
e Sócrates foram preeminentes. Também eles, no entanto, tinham à sua disposição
um útil conjunto de equipamentos de auxílio navegacional. Esses equipamentos
foram preparados por um bando misto de médicos e poetas, cientistas e
charlatões, sobre os quais o título costumeiro impõe uma comunidade espúria.
Eles são os filósofos pré-socráticos, e suas obras são o assunto desse livro. O
termo “pré-socrático” é um pouco estendido: alguns dos pensadores que eu irei
discutir eram contemporâneos de Sócrates ao invés de seus antecessores. Além
disso, o termo “filósofo” é elástico por sua própria natureza: meus
“pré-socráticos” são homens de interesses e profissões amplamente
diversificados. As tormentas do tempo não foram gentis com eles: seus navios
estão naufragados, restando apenas umas poucas tábuas em pedaços. Contudo, nossa
escassa evidência mostra algo dos homens: revela (para mudar a metáfora) que
eles procuraram e beberam das fontes da razão e se esta libação original e
inebriante em certas ocasiões produziu um delírio trêmulo em seus cérebros,
ainda devemos a eles um débito imensurável por sua intoxicação precoce. Seu
andar ébrio ensinou-nos a caminhar de modo mais estável. Se eles não tivessem
bebido, nós apenas cambalearíamos.
Os filósofos pré-socráticos
tinham uma característica em comum de suprema importância: eles eram racionais.
É a sua racionalidade que este livro aspira a exibir e a celebrar. No entanto,
a racionalidade pré-socrática é geralmente mal compreendida, e, às vezes,
negada erradamente. Deixem-me elucidar brevemente a minha afirmação segundo a
qual os pré-socráticos eram homens racionais.
Em primeiro lugar, dessa
afirmação não se segue que os gregos, como uma raça, fossem particularmente
devotados à razão ou peculiarmente desprovidos de superstição. Os estudos
modernos ilustraram abundantemente como a tolice, a irracionalidade e as
cadeias da superstição eram tão opressivas na Grécia clássica como em qualquer
outra época ou região. O grego médio era, sem dúvida, tão tolo quanto o inglês
médio e os homens instruídos dos séculos sexto e quinto antes de Cristo eram
tão bárbaros e intolerantes quanto os homens ilustrados de hoje. Os filósofos
pré-socráticos não eram típicos de seus companheiros: eles elevavam-se acima do
vulgar.
Novamente, é um erro simples
pensar que a racionalidade é a marca ou a prerrogativa da ciência natural. Os
pré-socráticos eram, de fato, os primeiros cientistas empíricos e, nos livros
de história, são as empreitadas científicas dos pensadores antigos que ocupam
lugar de destaque. Contudo, a razão é onívora. Ela não pasta exclusivamente em
campos científicos e os pré-socráticos não confinaram suas capacidades de
raciocinar a uma dieta monotonamente científica. São os aspectos não-científicos
do pensamento pré-socrático com os quais eu estou primeiramente preocupado:
Irei discutir sua metafísica, não sua meteorologia.
Em terceiro lugar, não se deve
supor que homens racionais precisam resolutamente rejeitar o sobrenatural. Os
estudiosos geralmente, e acertadamente, contrastam as cosmogonias
naturalísticas dos filósofos milésios com histórias mitológicas tais como as
que encontramos na Teogonia de Hesíodo. No entanto, a essência do
contraste é, algumas vezes, mal representada: o que é significativo não é que a
teologia cedeu lugar à ciência ou os deuses às forças naturais, mas, ao invés
disso, que as fábulas desacompanhadas de argumentos foram substituídas por
teorias argumentadas, que o dogma deu lugar à razão. A teologia e o
sobrenatural podem ser tratados dogmaticamente ou racionalmente: se os
pré-socráticos rejeitam as vazias afirmações de devoção e poesia, esta
rejeição, de modo algum traz consigo o repúdio de todas as coisas divinas e
sobre-humanas.
Em quarto lugar, os homens
racionais não são obrigados a inventar suas ideias por eles mesmos,
indiferentes, autônomos e impermeáveis a toda influência – especialistas
clássicos, com sucesso limitado, investigaram as origens e antecedentes das
opiniões pré-socráticas. Muitos estudiosos, tendo localizado, ou conjecturado,
a fonte de uma opinião, inferem que qualquer argumento oferecido para aquela
opinião é mera racionalização: crenças tomadas de empréstimo, eles supõem,
necessariamente são desacompanhadas de raciocínio. O absurdo desta inferência é
patente: evidentemente, podemos comprar opiniões de outros homens e então desenvolvê-las
por nós mesmos. Os pré-socráticos, como todos os homens racionais, compraram
muitas das suas opiniões no varejo.
Finalmente, nem sempre o que é
racional está certo; crenças acompanhadas de raciocínio são frequentemente
falsas, e o raciocínio – mesmo um raciocínio bom e admirável – não é
invariavelmente claro e cogente. Poucas opiniões pré-socráticas são verdadeiras
e um número ainda menor de suas opiniões são bem fundamentadas. Apesar disso,
elas são, em um sentido atenuado, mas significativo, racionais: elas são
caracteristicamente apoiadas por argumentos, assentadas em razões, estabelecidas
com base em evidência.
Assim, ao dizer que os
pré-socráticos eram homens racionais, eu não quero dizer não mais do que isto:
que as teorias ousadas e de amplo espectro que eles desenvolveram foram
apresentadas não como pronunciamentos ex cathedra para que os crentes as
aceitem e para que os ímpios as ignorem, mas como conclusões de argumentos,
como proposições acompanhadas de raciocínio para que homens razoáveis as
contemplem e debatam. Ao sustentar que os pré-socráticos foram os pais do
pensamento racional, eu sustento apenas que eles foram os primeiros homens a
conscientemente subordinar afirmações a argumentos e os dogmas à lógica. Alguns
leitores podem perguntar-se se uma tal fraca forma de racionalidade não é uma
propriedade excessivamente comum para merecer admiração: a eles eu recomendo o
aforismo do bispo Berkeley: Todos os homens têm opiniões, mas poucos homens
pensam.
* Esse texto traduzido faz
parte do livro The Presocratic Philosophers, de Jonathan Barnes (1982). É a primeira seção (The art of thinking) do seu capítulo inicial (The Springs of Reason).
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