domingo, 19 de junho de 2016

A arte do pensar: os filósofos pré-socráticos e a racionalidade

O Pensador, famosa escultura feita em bronze pelo francês Auguste Rodin.

A lógica é uma descoberta grega. As leis do pensamento foram observadas pela primeira vez na Grécia antiga e foram articuladas e codificadas pela primeira vez nos Analíticos de Aristóteles. Lógicos modernos ultrapassam Aristóteles no escopo de suas investigações e no virtuosismo técnico do seu estilo, mas, com relação à elegância de concepção e ao rigor de pensamento, ele é par dos modernos e, em todas as coisas, seu pai intelectual.

Aristóteles era consciente de suas próprias proezas: admiravelmente imodesto, ele trombeteou seu feito e solicitou a gratidão da posterioridade. No entanto, Deus, como John Locke causticamente observou, “não foi tão parcimonioso para com os homens a ponto de fazê-los criaturas tão somente de duas pernas e deixar que Aristóteles os tornasse racionais”. Embora os predecessores de Aristóteles não tenham estudado a arte do raciocínio, eles eram especialistas em sua prática; ainda que não fossem lógicos profissionais, eram pensadores de profundidade e poder. De fato, tampouco havia alguém mais consciente disto do que o próprio Aristóteles: o homem aristotélico é essencialmente um raciocinador e os escritos de Aristóteles descrevem e enaltecem as realizações daqueles homens que, pela primeira vez, descobriram e mapearam os amplos oceanos sobre os quais iria navegar o imponente galeão da sua própria filosofia.

Entre aqueles viajantes, Platão e Sócrates foram preeminentes. Também eles, no entanto, tinham à sua disposição um útil conjunto de equipamentos de auxílio navegacional. Esses equipamentos foram preparados por um bando misto de médicos e poetas, cientistas e charlatões, sobre os quais o título costumeiro impõe uma comunidade espúria. Eles são os filósofos pré-socráticos, e suas obras são o assunto desse livro. O termo “pré-socrático” é um pouco estendido: alguns dos pensadores que eu irei discutir eram contemporâneos de Sócrates ao invés de seus antecessores. Além disso, o termo “filósofo” é elástico por sua própria natureza: meus “pré-socráticos” são homens de interesses e profissões amplamente diversificados. As tormentas do tempo não foram gentis com eles: seus navios estão naufragados, restando apenas umas poucas tábuas em pedaços. Contudo, nossa escassa evidência mostra algo dos homens: revela (para mudar a metáfora) que eles procuraram e beberam das fontes da razão e se esta libação original e inebriante em certas ocasiões produziu um delírio trêmulo em seus cérebros, ainda devemos a eles um débito imensurável por sua intoxicação precoce. Seu andar ébrio ensinou-nos a caminhar de modo mais estável. Se eles não tivessem bebido, nós apenas cambalearíamos.

Os filósofos pré-socráticos tinham uma característica em comum de suprema importância: eles eram racionais. É a sua racionalidade que este livro aspira a exibir e a celebrar. No entanto, a racionalidade pré-socrática é geralmente mal compreendida, e, às vezes, negada erradamente. Deixem-me elucidar brevemente a minha afirmação segundo a qual os pré-socráticos eram homens racionais.

Em primeiro lugar, dessa afirmação não se segue que os gregos, como uma raça, fossem particularmente devotados à razão ou peculiarmente desprovidos de superstição. Os estudos modernos ilustraram abundantemente como a tolice, a irracionalidade e as cadeias da superstição eram tão opressivas na Grécia clássica como em qualquer outra época ou região. O grego médio era, sem dúvida, tão tolo quanto o inglês médio e os homens instruídos dos séculos sexto e quinto antes de Cristo eram tão bárbaros e intolerantes quanto os homens ilustrados de hoje. Os filósofos pré-socráticos não eram típicos de seus companheiros: eles elevavam-se acima do vulgar.

Novamente, é um erro simples pensar que a racionalidade é a marca ou a prerrogativa da ciência natural. Os pré-socráticos eram, de fato, os primeiros cientistas empíricos e, nos livros de história, são as empreitadas científicas dos pensadores antigos que ocupam lugar de destaque. Contudo, a razão é onívora. Ela não pasta exclusivamente em campos científicos e os pré-socráticos não confinaram suas capacidades de raciocinar a uma dieta monotonamente científica. São os aspectos não-científicos do pensamento pré-socrático com os quais eu estou primeiramente preocupado: Irei discutir sua metafísica, não sua meteorologia.

Em terceiro lugar, não se deve supor que homens racionais precisam resolutamente rejeitar o sobrenatural. Os estudiosos geralmente, e acertadamente, contrastam as cosmogonias naturalísticas dos filósofos milésios com histórias mitológicas tais como as que encontramos na Teogonia de Hesíodo. No entanto, a essência do contraste é, algumas vezes, mal representada: o que é significativo não é que a teologia cedeu lugar à ciência ou os deuses às forças naturais, mas, ao invés disso, que as fábulas desacompanhadas de argumentos foram substituídas por teorias argumentadas, que o dogma deu lugar à razão. A teologia e o sobrenatural podem ser tratados dogmaticamente ou racionalmente: se os pré-socráticos rejeitam as vazias afirmações de devoção e poesia, esta rejeição, de modo algum traz consigo o repúdio de todas as coisas divinas e sobre-humanas.

Em quarto lugar, os homens racionais não são obrigados a inventar suas ideias por eles mesmos, indiferentes, autônomos e impermeáveis a toda influência – especialistas clássicos, com sucesso limitado, investigaram as origens e antecedentes das opiniões pré-socráticas. Muitos estudiosos, tendo localizado, ou conjecturado, a fonte de uma opinião, inferem que qualquer argumento oferecido para aquela opinião é mera racionalização: crenças tomadas de empréstimo, eles supõem, necessariamente são desacompanhadas de raciocínio. O absurdo desta inferência é patente: evidentemente, podemos comprar opiniões de outros homens e então desenvolvê-las por nós mesmos. Os pré-socráticos, como todos os homens racionais, compraram muitas das suas opiniões no varejo.

Finalmente, nem sempre o que é racional está certo; crenças acompanhadas de raciocínio são frequentemente falsas, e o raciocínio – mesmo um raciocínio bom e admirável – não é invariavelmente claro e cogente. Poucas opiniões pré-socráticas são verdadeiras e um número ainda menor de suas opiniões são bem fundamentadas. Apesar disso, elas são, em um sentido atenuado, mas significativo, racionais: elas são caracteristicamente apoiadas por argumentos, assentadas em razões, estabelecidas com base em evidência.

Assim, ao dizer que os pré-socráticos eram homens racionais, eu não quero dizer não mais do que isto: que as teorias ousadas e de amplo espectro que eles desenvolveram foram apresentadas não como pronunciamentos ex cathedra para que os crentes as aceitem e para que os ímpios as ignorem, mas como conclusões de argumentos, como proposições acompanhadas de raciocínio para que homens razoáveis as contemplem e debatam. Ao sustentar que os pré-socráticos foram os pais do pensamento racional, eu sustento apenas que eles foram os primeiros homens a conscientemente subordinar afirmações a argumentos e os dogmas à lógica. Alguns leitores podem perguntar-se se uma tal fraca forma de racionalidade não é uma propriedade excessivamente comum para merecer admiração: a eles eu recomendo o aforismo do bispo Berkeley: Todos os homens têm opiniões, mas poucos homens pensam.


* Esse texto traduzido faz parte do livro The Presocratic Philosophers, de Jonathan Barnes (1982). É a primeira seção (The art of thinking) do seu capítulo inicial (The Springs of Reason).

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