terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Do mau legado de Galileu



Hoje é um tanto inócuo dizer que a Terra gira em torno do Sol. Não é exatamente o tipo de discurso que faz você se sentir inteligente numa conversa de bar. Não serve nem mesmo para as festas de fim de ano: sua vó não vai achar que você é o gênio da família se você vier com esse papo.

O que hoje é um assunto monótono, entretanto, já foi motivo de muita polêmica. Muita água rolou pra tirar a Terra do centro do Universo e colocá-la num lugar geometricamente não tão atraente - "apenas" um pedaço de pedra girando em torno do Sol. Galileu defendeu a ideia copernicana do heliocentrismo e isso foi uma afronta ao que se julgava verdadeiro na época - a ideia de que a Terra é o centro de todo o Universo. Ir contra essa ideia é contrariar, em suma, duas grandes forças: em nível social, o poder da Igreja sobre as pessoas, perpetuado através da manutenção da ignorância; em nível individual, o egocentrismo. A quebra de paradigma promovida por Copérnico e Galileu foi um dos golpes orientados à noção individual de que somos o centro de tudo. Outros exemplos são a ideia de ancestralidade comum entre humanos e outros organismos sugerida por Darwin, a sugestão da existência do subconsciente defendida por Freud, a descoberta de exoplanetas e outros locais onde a existência de vida é provável, etc. Todas essas ideias confrontam nossa sensação de que somos uma peça especial do Universo, o fim para o qual tudo mais é meio.


Não é preciso falar que Galileu sofreu nas mãos da Igreja por defender sua tese. Embora tenha tido mais sorte que Giordano Bruno, Galileu foi obrigado a negar publicamente a ideia do heliocentrismo. Tudo o que sabemos hoje indica que Galileu estava certo e a Igreja estava errada. Se ontem foi considerado louco por muitos, hoje é tido como um dos pais da astronomia moderna.

A história de Galileu (e muitos outros) deixou legado para bem e para mal. A necessidade de se ouvir e avaliar opiniões distintas por meio de evidências é uma dimensão fundamental da ciência, sem a qual seu progresso seria pouco provável. Por outro lado, a construção do "mito do heroi" na ciência abre as portas para a Síndrome da Galileu: quando um indivíduo ou grupo de indivíduos acredita ser o descobridor de um conhecimento inovador, que veio para mudar o mundo, mas, na verdade, aquilo que defende não tem o menor cabimento.

Os portadores da Síndrome de Galileu vêem a resistência da comunidade científica em aceitar suas ideias como uma evidência de que estão certos. A estratégia é estereotipar os cientistas como "cabeças fechadas" e "pouco abertos a novas propostas". Daí é um passo para se passar por inovador... Quanto mais ouvem "não", mais se sentem corroborados e sua crença é reforçada. Claro: só grandes lutas criam verdadeiros herois.

A diferença entre o verdadeiro Galileu e suas autoproclamadas reincarnações é a seguinte: Galileu apresentou ideias com suporte empírico que eram ignoradas pela manutenção de um dogma mantido por interesses. Os portadores da Síndrome de Galileu apresentam ideias mantidas por interesses e são rebatidos por um corpo de evidências contrárias.

Quem são e onde estão?

PS.: Qualquer relação com eventos recentes não é mera coincidência.

3 comentários:

  1. Essa posição de achar que se está certo porque a comunidade de especialistas não aceita as suas ideias é bem contraditória. Se você aceita as inovações e resoluções de problemas dos cientistas de determinada área (digamos, nas biólogicas) e, com isso, confia nas suas deliberações, porque se desconfia especificamente de alguma sub-área (por exemplo, só por acaso, biologia evolutiva)?
    Na ausência de qualquer prova de objetividade externa à comunidade científica, não há critério melhor que a decisão coletivamente acordada dos especialistas.

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