domingo, 11 de janeiro de 2015

A seleção natural e os genes explicam toda a evolução da vida?


Quando se trata de evolução biológica há uma crença comum: a ideia de que a seleção natural pode explicar toda – ou quase toda – a evolução da vida. Nessa narrativa evolutiva os genes também ocupam um lugar privilegiado. Esse modo de explicar a evolução foi popularizado para o público por Richard Dawkins, principalmente em sua discussão do gene egoísta e do darwinismo universal. Ficou conhecido para o público em geral que seleção natural + gene = evolução. Os biólogos, por sua vez, adotam massivamente essa perspectiva desde a década de 1940, quando foi estabelecida a Síntese Moderna da evolução.

Os genes são considerados centrais na evolução porque eles são “estáveis” e possuem capacidade replicativa, abarcando os processos de herança e variação. Essas propriedades, combinadas com a seleção natural, podem ser consideradas uma condição permanente da evolução da vida: as populações biológicas continuamente “sofrem” o escrutínio da seleção natural, a qual pode ter efeitos evolutivos graduais pela permanência dos genes ao longo das gerações. Mas afinal, qual o alcance da seleção natural e dos genes para explicar a evolução da vida? Sem querer esgotar essa questão (que está longe de algum tipo de consenso), pretendo discutir brevemente alguns aspectos do alcance explicativo da seleção natural e da genética evolutiva nos dias de hoje. 


Para compreender a posição da seleção natural e dos genes na teoria evolutiva é preciso, primeiramente, levar em conta que a Biologia Evolutiva é uma ciência histórica. E como tal, a procura de generalizações é muito mais difícil. Ela é, por isso, distinta de uma visão “ideal” de ciência, oriunda da física clássica, em que poucos fatores governam processos globalmente consistentes, podendo ser reunidos em uma equação definida. A evolução biológica, sendo genuinamente histórica, é inerentemente limitada quando se trata de determinar quão geral são os fenômenos conhecidos, mesmo que eles sejam fielmente repetíveis em experimentos laboratoriais e em campo. 


Os biólogos há muito tempo empreendem um esforço enorme para aproximar a evolução de um modelo de ciência da física e da química, na procura de “leis”. O núcleo central da Síntese Moderna, a chamada Genética de Populações, é o exemplo que mais se aproxima disso. Não é a toa que a seleção natural muitas vezes é chamada de “mecanismo” ou “força” evolutiva, em referência a essa inspiração fisicalista.

Essa ênfase enfrenta objeções da chamada tese da contingência evolutiva. John Beatty (1995) argumenta que os princípios da Genética de Populações são estados evolutivamente contingentes. Quer dizer, as regularidades que os geneticistas de populações estão interessados são regularidades contingentes, pois a própria história evolutiva produziu fenômenos que apresentam essas regularidades. Um exemplo seria o equilíbrio de Hardy-Weinberg, derivado da primeira “lei” de Mendel, o qual é um produto de uma novidade evolutiva: a formação de gametas pela meiose. Ou seja, a evolução da vida pode criar “leis” que alteram o curso evolutivo.

A seleção natural talvez seja o “processo” evolutivo mais geral que conhecemos. Mas isso não significa que ele dê conta da explicação de toda a história da vida, pois devemos considerar o contexto evolutivo de uma grande diversidade taxonômica que viveu na Terra. Tratar a seleção natural como uma “lei” ainda apresenta uma série de problemas, alguns deles discutidos a seguir.

O problema da ênfase na Seleção Natural e nos Genes

O primeiro problema de tomar a seleção natural como condição suficiente da evolução é que ela não pode explicar a origem de novas variantes, apenas a sua permanência. A Genética de Populações também não dá conta disso, pois ela diz respeito à dinâmica de genótipos existentes, mas não aborda a origem de novas características em si. Os fenômenos evolutivos mais legais, e que todo o biólogo está interessado, como a origem dos ossos, endotermia, penas, voo, sistema nervoso, tubo polínico, membros tetrápode, carapaça das tartarugas e mandíbulas dos vertebrados simplesmente não podem ser conhecidos/explicados apenas pela seleção natural. A seleção está envolvida na preservação e diversificação dessas inovações, mas não na sua origem. Outros problemas que são relevantes para a compreensão da história evolutiva dos organismos, como é o caso da especiação, evolução genômica, evolução celular pela simbiose, entre outros, também não estão apenas na alçada da seleção natural. Isso não significa que a seleção natural não está causalmente operando na evolução dessas características, mas que a origem dessas novidades precisa de uma resposta que é anterior a qualquer avaliação das pressões seletivas que atuam sobre elas.


Bom, então essas explicações estão na alçada da chamada genética evolutiva? Afinal, os biólogos normalmente se referem às mutações para explicar a origem das características... Na verdade, a história parece muito mais complicada. Não podemos nos limitar apenas aos genes para explicar a origem das novidades evolutivas, pois está em jogo mudanças em toda a hierarquia biológica: moléculas, células, organismos e ecossistemas. Nesse caso, os geneticistas tem um papel explicativo limitado, pois a variação em um nível molecular não se traduz automaticamente em uma compreensão da origem de variação nos níveis superiores da organização (Love, 2006). Compreender a origem das grandes novidades evolutivas está principalmente na alçada de disciplinas de hierarquias em nível superior, como a morfologia, paleontologia e embriologia, que historicamente tiveram um papel menor na produção de material didático e divulgação do conhecimento evolutivo. Na verdade, essas disciplinas foram colocadas de lado no meio do século passado, a partir da popularidade que a genética adquiriu na explicação evolutiva em termos de seleção que opera em populações mendelianas sujeitas a migração, mutação e recombinação. Essa pode ser uma das razões pela quais as explicações evolutivas oriundas dessas disciplinas ainda são relativamente desconhecidas, até mesmo entre os biólogos.

A comunidade científica, no entanto, está cada vez mais se dando conta da importância de outros enfoques explicativos, o que está levando os biólogos a se voltar para uma disciplina chamada Biologia Evolutiva do Desenvolvimento. Mas por que o desenvolvimento está se tornando cada vez mais especial para o pensamento evolutivo?

Isso ocorre pelos seguintes pressupostos:

(1) grande parte da evolução biológica procura explicar a evolução fenotípica;

(2) o fenótipo é um produto do desenvolvimento (com exceção de alguns organismos “simples”);

(3) qualquer alteração no fenótipo requer uma variação correspondente no desenvolvimento;

(4) muitas mudanças evolutivas ocorrem através de modificações do desenvolvimento;

(5) uma compreensão do desenvolvimento não pode ser reduzida à ação e à interação dos genes*.

Por esses motivos, a Síntese Moderna não fornece uma teoria da variação fenotípica, no sentido de oferecer uma abordagem mecanicista de como a variação que é hereditária, e exibe efeitos no fitness, são geradas durante o desenvolvimento. Isso ocorre porque a Síntese Moderna é basicamente uma teoria genética, que não considera o papel do desenvolvimento nas mudanças evolutivas (Love, 2006). Por isso, estão surgindo cada vez mais propostas de “ampliação” da Síntese Moderna, que consideram aportes da Biologia Evolutiva do Desenvolvimento e outros campos.

Admitindo isso, se coloca uma última questão: essa mudança de enfoque na teoria evolutiva (“dos genes para o fenótipo”) de alguma forma enfraquece o darwinismo ou a evolução biológica como um todo? A resposta é um sonoro NÃO. Isto não invalida as conclusões de grande parte da pesquisa na teoria evolutiva feitas até então. Em vez disso, essas novidades se referem a domínios explicativos mais amplos, que não são abrangidos pela genética evolutiva. A adequação da seleção natural não está em questão. A existência de seleção natural como um processo causal depende da presença de variação herdável que tem efeitos diferenciais no fitness. Isso não está em jogo. Da mesma forma, a importância dos genes para a evolução da vida não está em dúvida. O que está em jogo é o alcance explicativo da seleção natural e dos genes quando consideramos toda a evolução da vida, levando em conta a diversidade taxonômica e os processos em diferentes níveis hierárquicos.

Essa ampliação do pensamento evolutivo denota ainda uma das características mais importantes de um bom empreendimento científico: a teoria evolutiva é um programa de pesquisa muito frutífero. Somente uma compreensão muito imatura da ciência, ou que se apoia em cânones intocáveis, não repara que a ciência é um empreendimento crítico que reinterpreta continuamente suas bases teóricas e empíricas. Afinal, se tivéssemos todas as respostas, porque haveria ainda de ter pesquisa?  

*Esse item talvez não seja aceito por grande parte dos geneticistas. Mas cada vez mais se acumulam evidências de que a relação entre genótipo e fenótipo não é linear e fatores não-genéticos são essenciais para o desenvolvimento e a evolução (Love, 2006).

Referências

BEATTY, J. The Evolutionary Contingency Thesis. In: Wolters, G; Lennox, J (Eds.), Concepts, Theories and Rationality in the Biological Sciences. Pittsburgh University Press, p. 45-81, 1995.
LOVE, A. C. EXPLAINING EVOLUTIONARY INNOVATION AND NOVELTY: A HISTORICAL AND PHILOSOPHICAL STUDY OF BIOLOGICAL CONCEPTS. Doctoral Dissertation, University of Pittsburgh, 2006.

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