Quando se trata de evolução biológica há uma
crença comum: a ideia de que a seleção natural pode explicar toda – ou quase
toda – a evolução da vida. Nessa narrativa evolutiva os
genes também ocupam um lugar privilegiado. Esse modo de explicar a evolução foi
popularizado para o público por Richard Dawkins, principalmente em sua
discussão do gene egoísta e do darwinismo universal. Ficou conhecido para o público
em geral que seleção natural + gene =
evolução. Os biólogos, por sua vez, adotam massivamente essa perspectiva desde a
década de 1940, quando foi estabelecida a Síntese Moderna da evolução.
Os
genes são considerados centrais na evolução porque eles são “estáveis” e
possuem capacidade replicativa, abarcando os processos de herança e variação. Essas
propriedades, combinadas com a seleção natural, podem ser consideradas uma
condição permanente da evolução da vida: as populações biológicas continuamente
“sofrem” o escrutínio da seleção natural, a qual pode ter efeitos evolutivos
graduais pela permanência dos genes ao longo das gerações. Mas afinal, qual o alcance da seleção natural e dos genes para explicar
a evolução da vida? Sem querer esgotar essa questão (que está longe de
algum tipo de consenso), pretendo discutir brevemente alguns aspectos do
alcance explicativo da seleção natural e da genética evolutiva nos dias de hoje.
Para compreender a posição da seleção natural e
dos genes na teoria evolutiva é preciso, primeiramente, levar em conta que a
Biologia Evolutiva é uma ciência histórica. E como tal, a procura de
generalizações é muito mais difícil. Ela é, por isso, distinta de uma visão
“ideal” de ciência, oriunda da física clássica, em que poucos fatores governam
processos globalmente consistentes, podendo ser reunidos em uma equação
definida. A evolução biológica, sendo genuinamente histórica, é inerentemente
limitada quando se trata de determinar quão geral são os fenômenos conhecidos,
mesmo que eles sejam fielmente repetíveis em experimentos laboratoriais e em
campo.
Os biólogos há muito tempo empreendem um
esforço enorme para aproximar a evolução de um modelo de ciência da física e da
química, na procura de “leis”. O núcleo central da Síntese Moderna, a chamada Genética
de Populações, é o exemplo que mais se aproxima disso. Não é a toa que a
seleção natural muitas vezes é chamada de “mecanismo” ou “força” evolutiva, em
referência a essa inspiração fisicalista.
Essa
ênfase enfrenta objeções da chamada tese da contingência evolutiva. John Beatty
(1995) argumenta que os princípios da Genética de Populações são estados
evolutivamente contingentes. Quer dizer, as regularidades que os geneticistas
de populações estão interessados são regularidades contingentes, pois a própria
história evolutiva produziu fenômenos que apresentam essas regularidades. Um
exemplo seria o equilíbrio de Hardy-Weinberg, derivado da primeira “lei” de
Mendel, o qual é um produto de uma novidade evolutiva: a formação de gametas
pela meiose. Ou seja, a evolução da vida
pode criar “leis” que alteram o curso evolutivo.
A
seleção natural talvez seja o “processo” evolutivo mais geral que conhecemos.
Mas isso não significa que ele dê conta da explicação de toda a história da
vida, pois devemos considerar o contexto evolutivo de uma grande diversidade
taxonômica que viveu na Terra. Tratar a seleção natural como uma “lei” ainda
apresenta uma série de problemas, alguns deles discutidos a seguir.
O problema da ênfase na Seleção Natural e nos Genes
O primeiro problema de tomar a seleção natural
como condição suficiente da evolução é que ela não pode explicar a origem de
novas variantes, apenas a sua permanência. A Genética de Populações também não
dá conta disso, pois ela diz respeito à dinâmica de genótipos existentes, mas
não aborda a origem de novas características em si. Os fenômenos evolutivos
mais legais, e que todo o biólogo está interessado, como a origem dos ossos,
endotermia, penas, voo, sistema nervoso, tubo polínico, membros tetrápode,
carapaça das tartarugas e mandíbulas dos vertebrados simplesmente não podem ser
conhecidos/explicados apenas pela seleção natural. A seleção está envolvida na preservação e diversificação dessas
inovações, mas não na sua origem. Outros problemas que são relevantes para
a compreensão da história evolutiva dos organismos, como é o caso da
especiação, evolução genômica, evolução celular pela simbiose, entre outros, também
não estão apenas na alçada da seleção natural. Isso não significa que a seleção
natural não está causalmente operando na evolução dessas características, mas
que a origem dessas novidades precisa de uma resposta
que é anterior a qualquer avaliação das pressões seletivas que atuam sobre elas.
Bom,
então essas explicações estão na alçada da chamada genética evolutiva? Afinal,
os biólogos normalmente se referem às mutações para explicar a origem das
características... Na verdade, a história parece muito mais complicada. Não
podemos nos limitar apenas aos genes para explicar a origem das novidades
evolutivas, pois está em jogo mudanças em toda a hierarquia biológica:
moléculas, células, organismos e ecossistemas. Nesse caso, os geneticistas tem
um papel explicativo limitado, pois a variação em um nível molecular não se
traduz automaticamente em uma compreensão da origem de variação nos níveis
superiores da organização (Love, 2006). Compreender a origem das grandes
novidades evolutivas está principalmente na alçada de disciplinas de hierarquias
em nível superior, como a morfologia, paleontologia e embriologia, que
historicamente tiveram um papel menor na produção de material didático e
divulgação do conhecimento evolutivo. Na verdade, essas disciplinas foram colocadas
de lado no meio do século passado, a partir da popularidade que a genética adquiriu na explicação evolutiva em termos de seleção que opera em
populações mendelianas sujeitas a migração, mutação e recombinação. Essa pode ser uma das razões pela quais as
explicações evolutivas oriundas dessas disciplinas ainda são relativamente
desconhecidas, até mesmo entre os biólogos.
A
comunidade científica, no entanto, está cada vez mais se dando conta da
importância de outros enfoques explicativos, o que está levando os biólogos a se voltar
para uma disciplina chamada Biologia Evolutiva do Desenvolvimento. Mas por que
o desenvolvimento está se tornando cada vez mais especial para o pensamento
evolutivo?
Isso
ocorre pelos seguintes pressupostos:
(1)
grande parte da evolução biológica procura explicar a evolução fenotípica;
(2)
o fenótipo é um produto do desenvolvimento (com exceção de alguns organismos
“simples”);
(3)
qualquer alteração no fenótipo requer uma variação correspondente no
desenvolvimento;
(4)
muitas mudanças evolutivas ocorrem através de modificações do desenvolvimento;
(5) uma compreensão do desenvolvimento não pode ser reduzida à ação e à interação
dos genes*.
Por
esses motivos, a Síntese Moderna não fornece uma teoria da variação fenotípica,
no sentido de oferecer uma abordagem mecanicista de como a variação que é
hereditária, e exibe efeitos no fitness,
são geradas durante o desenvolvimento. Isso ocorre porque a Síntese Moderna é
basicamente uma teoria genética, que não considera o papel do desenvolvimento
nas mudanças evolutivas (Love, 2006). Por isso, estão surgindo cada vez mais
propostas de “ampliação” da Síntese Moderna, que consideram aportes da Biologia
Evolutiva do Desenvolvimento e outros campos.
Admitindo
isso, se coloca uma última questão: essa mudança de enfoque na teoria evolutiva
(“dos genes para o fenótipo”) de alguma forma enfraquece o darwinismo ou a evolução
biológica como um todo? A resposta é um sonoro NÃO. Isto não invalida as
conclusões de grande parte da pesquisa na teoria evolutiva feitas até então. Em
vez disso, essas novidades se referem a
domínios explicativos mais amplos, que não são abrangidos pela genética
evolutiva. A adequação da seleção natural não está em questão. A existência
de seleção natural como um processo causal depende da presença de variação
herdável que tem efeitos diferenciais no fitness.
Isso não está em jogo. Da mesma forma, a importância dos genes para a evolução
da vida não está em dúvida. O que está em jogo é o alcance
explicativo da seleção natural e dos genes quando consideramos toda a evolução da vida, levando em
conta a diversidade taxonômica e os processos em diferentes níveis
hierárquicos.
Essa
ampliação do pensamento evolutivo denota ainda uma das características mais
importantes de um bom empreendimento científico: a teoria evolutiva é um programa
de pesquisa muito frutífero. Somente uma compreensão muito imatura da ciência,
ou que se apoia em cânones intocáveis, não repara que a ciência é um
empreendimento crítico que reinterpreta continuamente suas bases teóricas e
empíricas. Afinal, se tivéssemos todas as respostas, porque haveria ainda de
ter pesquisa?
*Esse item talvez não seja aceito
por grande parte dos geneticistas. Mas cada vez mais se acumulam evidências de
que a relação entre genótipo e fenótipo não é linear e fatores não-genéticos
são essenciais para o desenvolvimento e a evolução (Love, 2006).
Referências
BEATTY, J. The Evolutionary Contingency Thesis. In: Wolters, G; Lennox,
J (Eds.), Concepts, Theories and
Rationality in the Biological Sciences. Pittsburgh University Press, p.
45-81, 1995.
LOVE, A. C. EXPLAINING EVOLUTIONARY
INNOVATION AND NOVELTY: A HISTORICAL AND PHILOSOPHICAL STUDY OF BIOLOGICAL
CONCEPTS. Doctoral Dissertation, University of Pittsburgh, 2006.
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