A evolução biológica é
considerada uma teoria unificada e distante de muitas
controvérsias. As razões para essa visão podem ser muitas, mas consigo pensar
em dois motivos óbvios:
(i) A biologia evolutiva é o
alicerce de boa parte do conhecimento biológico, sendo encarada como uma
espinha dorsal da biologia. Muitas hipóteses em áreas do conhecimento biológico
são baseadas em ideias evolutivas. Portanto, não haveria qualquer razão para
imaginar que essa teoria possui algum problema em sua estrutura.
(ii) Outra razão para essa
tendência pode ser uma forma de defesa às crescentes críticas motivadas por
convicções religiosas e ideológicas. Parece que se a teoria da evolução mostrar
algum sinal de incoerência, prontamente ela pode ser desacreditada por seus
detratores e ser engolida por explicações pseudocientíficas.
No entanto, pensadores muito mais
honestos e criteriosos que os encontrados no item (ii) têm expressado que
algumas ideias centrais da síntese moderna da evolução devem ser repensadas. Um
debate em torno desse tema vem sendo feito desde a década de 90 do século
passado, onde um crescente número de filósofos e biólogos têm questionado
aspectos da síntese moderna da evolução através de sólidas bases teóricas e
empíricas.
A síntese moderna da evolução
emergiu da “redescoberta” do trabalho de Mendel no início do século XX. Nessa
época, um intenso debate sobre a teoria da evolução estava em ebulição, como a
discussão dos mecanismos de herança relevantes para a evolução. Apenas partir
de 1930, um grupo de matemáticos-biólogos (como Ronald Fisher, Haldane e Sewall
Wright) estabeleceu a genética de populações, considerada a estrutura matemática
da biologia evolutiva. A partir disso, houve a articulação com as clássicas
disciplinas, como a história natural, sistemática, paleontologia, zoologia e
botânica. A estrutura básica da teoria evolutiva se manteve a mesma desde
então, com o acréscimo de algumas descobertas, principalmente no nível
molecular. No entanto, essa síntese estava longe de ser um consenso, apesar de
grande parte de a comunidade científica aceitar seus pressupostos. Talvez essa
aceitação tenha ocorrido devido à forma de se fazer ciência que a genética
evolucionista adotou, muito parecida com a da física, possuindo um grande
prestígio. Outro aspecto interessante é que, a despeito dos significantes
avanços desde o início do século XX em domínios metodológicos e disciplinares
na biologia, a síntese moderna permaneceu basicamente a mesma. Em vista disso,
e de trabalhos publicados em áreas marginalizadas pela síntese moderna, autores
estão trabalhando em uma teoria expandida da evolução, conhecida como síntese estendida da evolução. Esse
movimento encontra apoio em pesquisadores vindos de muitas direções, mais
notavelmente da biologia evolutiva do desenvolvimento (“evo-devo”),
microbiologia, ecologia, comportamento animal e estudos culturais (figura 1).
Figura 1. Representação
conceitual da contínua expansão da teoria evolutiva em termos de ideias,
fenômenos estudados e campos de investigação. Elipse menor: Teoria da evolução
darwinista (1859). Elipse intermediária: Síntese Moderna da Evolução
(1930s-1940s). Elipse maior: Síntese Estendida. Baseado em Pigliucci (2010).
Alguns conceitos emergentes
dessas áreas são distintos do quadro conceitual da síntese moderna, sendo,
portanto, desconhecidos da maioria dos biólogos. (PIGLIUCCI e MULLER, 2010). Debater
esses conceitos é fundamental, mas para não me prolongar muito nessa postagem,
me contento em apresentar algumas restrições que a sintese moderna sofre em
relação à sintese estendida. Pigliucci e Muller, em seu ótimo livro Evolution: the extended synthesis (um
paralelo ao Evolution: The Modern
Synthesis do Huxley que cunhou o
termo síntese moderna) apresentam as
seguintes mudanças no pensamento evolutivo desse novo quadro teórico:
(A) Gradualismo: a evolução
gradual é uma forte presuposição da síntese moderna. No entanto, há vários mecanismos
para a mudança descontínua, como a plasticidade fenotípica e formas de herança
não genética (como a epigenética). Além disso, já é conhecido há algum tempo
que o registro fóssil revela padrões descontínuos de evolução morfológica.
(B) Externalismo: na estrutura teórica da síntese moderna a
morfologia dos organismos é interpretada como sendo unicamente o produto de
regimes seletivos externos. Toda a direcionalidade do processo evolutivo é
assumida, na síntese moderna, como resultado da seleção natural. No entanto, a
biologia evolutiva do desenvolvimento mostra que a plasticidade dentro de
sistemas de desenvolvimento catalisam mudanças evolutivas antes das alterações
genéticas (WEST-EBERHARD, 2003). O ambiente também está sendo visto de uma forma
diferente, como na teoria da construção de nicho, que o encara em termos de causa e consequência na evolução.
(C) Genecentrismo: na síntese
moderna o gene é visto como o único agente de variação nos organismos e a
unidade fundamental de herança. Além disso, o modelo da genética de população
não aborda a construção de fenótipos a partir de genótipos. Em vez disso, a
genética de populações assume a situação mais simples: alelos individuais, em
um único locus, usando regras
mendelianas de herança. Na síntese estendida essa visão perde força e uma visão
multicausal de fatores evolutivos que agem no organismo estão emergindo para
explicar o fenótipo. Além disso, outros sistemas de herança, além do genético,
parecem importantes para a evolução. Os sistemas epigenético,
ecológico, comportamental e simbólico estão mostrando a importância de ampliar
a visão de hereditariedade, desafiando a abstração de que o fenótipo está bem
acoplado ao genótipo selecionado.
Em suma, o gradualismo, o externalismo
e o genecentrismo representam algumas formas de encarar a evolução que estão
começando a ser vistas de maneira diferente. Apesar de Pigliucci justificar que a
biologia evolutiva não está em uma mudança de paradigma (no sentido Kuhniano),
as mudanças teóricas que estão sendo propostas parecem cada vez mais acentuadas.
Somente o tempo e muito debate de alta qualidade podem nos mostrar os novos
rumos da teoria evolutiva. Mas uma coisa é certa: ao contrário do que muitos críticos
movidos por inclinações religiosas ou ideológicas gostariam, a teoria da
evolução não está em uma crise; está sim em um período de progresso no seu
poder explicativo do mundo vivo.
REFERÊNCIAS
PIGLIUCCI e MULLER. Elements of an Extended Synthesis. Evolution
the extended synthesis, 2010.
WEST-EBERHARD. Developmental Plasticity and Evolution (Oxford Univ.
Press, New York ),
2003
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