segunda-feira, 24 de maio de 2010

REVOLUÇÃO NO PENSAMENTO EVOLUTIVO - Parte I: Mutações “interpretativas”

Buenas, prendas e xirús!

Hoje lhes trago a primeira parte desta série na qual proseio a respeito de novas descobertas que deixam qualquer geneticista mais eriçado do que graxaim quando vê um cusco. Bueno... as descobertas não são tão novas assim. Algumas teorias, na verdade, nunca foram totalmente abandonadas, apenas foram ofuscadas pela força que ganhou o neodarwinismo no século XX. Essas visões vêm ganhando lugar no estudo da evolução desde a década de 70.

Aqui, me baseio no livro de Eva (não... não a costela) Jablonka e Marion Lamb: “Evolução em quatro dimensões”. Elas trazem fatos que já não podem ser ignorados pela comunidade científica e que desafiam a visão neodarwinista da evolução centrada no gene.. São eles:
- Há mais coisas na hereditariedade do que genes.
- Algumas variações hereditárias são não-aleatórias em sua origem.
- Algumas informações adquiridas são herdadas.
- Mudanças evolutivas podem resultar de instrução, assim como de seleção.
A la pucha! Calma vivente! Isso não é heresia! A evolução não é apenas uma mudança na freqüência alélica e a visão de replicador-veículo está se tornando bastante difusa. Tentarei explicar tudo isso com clareza ao longo da série.

Além das novas descobertas, as autoras trazem muitas críticas no modo de como são interpretadas as relações genótipo-fenótipo e o que elas chamam de “astrologia genética”. Possuem uma visão bastante sistêmica (relembrando o tópico do Reis) e colocam muitas complicações para essas interpretações. Por exemplo, menos de 2% das doenças são monogênicas. Os outros 98% são influenciados por vários genes e pelas condições ambientais. A astrologia genética, muito apreciada pela mídia por sinal (“Foi descoberto o gene do homossexualismo!”), tem a péssima mania de generalizar pesquisas com determinada população. As interações entre os genes e o fenótipo são muito mais complexas do que se pensa e um gene que possa ter uma influencia significativa em uma característica num determinado lugar, pode não fazer diferença em outro. Muitas vezes, quando um gene é silenciado por uma mutação, a sua expressão é compensada pelos outros genes, não resultando em diferença alguma no fenótipo. Além disso, temos o ambiente, que pode ter uma influência tão importante quanto os genes, ou até mais, nas características de um organismo. Entonces, a rede é complexa, pelo menos, na maioria das vezes.

Bueno, agora entrando no tema principal deste tópico: as mutações. Existem dois tipos de mutações bem definidas e aceitas na comunidade científica. O primeiro é a mutação aleatória, que é, sem delongas, resultado de imperfeições no processo de replicação do ADN, mudanças causadas por genes saltadores ou alterações causadas por substâncias químicas (tanto internas como externas) ou agentes físicos externos (raio X, ultravioleta...).
O outro tipo é a mutação dirigida, presente (pelo que sabe até agora) apenas em processos do desenvolvimento de um organismo. Um exemplo bem claro é o nosso sistema imunológico. Durante a maturação dos linfócitos, o ADN é deslocado, cortado, colado e alterado de diversas maneiras para codificar diferentes tipos de anticorpos. Para mais exemplos de mutações dirigidas recomendo o livro.
Até pouco tempo atrás, a idéia de que existem mutações que não são apenas erros produzidos ao acaso (e aqui não entrarei no mérito da discussão do significado do acaso) era um absurdo. A única especificidade reconhecida nas mutações era a do efeito de alguns agentes mutagênicos, como por exemplo, a radiação ultravioleta, que afeta principalmente regiões do ADN ricas em duas timinas ou mais (T-T...). Porém, essas regiões estão espalhadas por todo o genoma, portanto essas radiações não afetam nenhuma região específica.

Hoje em dia, muitos geneticistas já aceitam que essa idéia de mutação é inadequada. Essas mutações, chamadas de “interpretativas” pelas escritoras, estariam num espectro entre as mutações aleatórias e as dirigidas e teriam certa importância na evolução adaptativa. As mutações “interpretativas” são em parte aleatórias, pois a mudança não é feita para determinada função, mas também são, em parte, dirigidas, porque ocorrem em determinada região do ADN e/ou determinado momento. Explicarei agora os quatro tipos conhecidos de mutações “interpretativas”.

O primeiro tipo é a mutação induzida global, ela ocorre em casos de estresse, em condições emergenciais, como por exemplo, não conseguir mais sobreviver ou se reproduzir. Quando um organismo se encontra em alguma dessas situações, ele aumenta a taxa de mutação de todo o seu genoma. Muitos irão perecer pelas mutações deletérias, mas a chance de aparecerem indivíduos com alguma mutação benéfica também aumenta. Esse fenômeno foi bem estudado em bactérias, que aumentam suas taxas de mutação quando se encontram em um ambiente que as impede de continuar crescendo e se multiplicando, mas também existem trabalhos com plantas. Existe certa controvérsia com relação a esse tipo de mutação. Alguns cientistas argumentam que esse tipo de mutação é uma causa induzida pelo estresse e não uma resposta a ele.

Mas sobre o segundo tipo de mutação, a hipermutação local, não há dúvidas de que é adaptativo. Ao invés de ocorrerem num momento útil para o organismo, elas ocorrem num local útil. Existem regiões no ADN que possuem taxas de mutação centenas, ou até milhares, de vezes mais altas que outras. Um exemplo estudado é o das bactérias causadoras da meningite, que possuem altas taxas de mutação nos genes que codificam a estrutura de sua superfície para tentar “escapar” do sistema imunológico de seu hospedeiro. Essas regiões altamente mutáveis também foram encontradas em regiões que codificam veneno, em organismos que dependem dele para capturar presas ou defender-se de predadores. Essas mutações são importantes para manterem esses organismos atualizados na “corrida armamentista” evolutiva. (Para entender como funciona esse processo, recomendo novamente o livro).

O terceiro tipo de mutação, a mutação induzida local, ocorre, assim como a primeira, em situações extremas, mas especificamente em genes que ajudam o organismo a lidar com a nova situação. Esse tipo de mutação foi encontrado em Escherichia coli. Essas bactérias, em tempos de abundância de alimento, inativam genes para a síntese de aminoácidos, porém, quando o alimento se torna escasso esses genes são ativados. O que se descobriu é que, quando esses genes ativados estão falhos, essas bactérias aumentam a taxa de mutação somente nesse local para aumentar as chances de que ocorra uma mutação benéfica e o indivíduo possa sobreviver.

O último tipo de mutação é a mutação induzida regional. Se conhece muito pouco sobre esse processo e não se sabe se ele é adaptativo ou não. Foi encontrada, por exemplo, na mostarda, um choque térmico leva a uma perda em seqüências no ADN que codificam ARNr e essas mudanças são hereditárias porque essas células também originam os tecidos germinativos. Porém, não existem evidências que essas mutações aumentam ou diminuem o sucesso reprodutivo dessas plantas.

Enfim... seria mesmo estranho que tudo no mundo vivo é produto da evolução, menos as mutações. Quando reconhecemos que nem todas as mutações são erros aleatórios, a dicotomia entre fisiologia/desenvolvimento e evolução, afinal, torna-se não tão absoluta assim. Aqui entra uma crítica severa à visão determinista de replicadores e veículos de Richard Dawkins, porque o que acontece no corpo pode influenciar o processo que gera mudanças nos genes.

Que fique bem claro que eu (e aqui as autoras do livro se incluem) não quero retirar a importância dos preceitos neodawinistas, mas eles estão se mostrando insuficientes para explicar todos os processos evolutivos. Temos que abrir a cabeça e enriquecer as nossas idéias sobre evolução, sem arrogância e sem preconceito.

A próxima parte será sobre sistemas de herança epigenéticos (SHEs), que mostrarei que algumas variações fenotípicas podem ser passadas adiante. Que?! Herança de caracteres adquiridos?! Lamarckismo?! É o que veremos na próxima parte...

Um abraço e te aprochega sem frescura pra comentar ou perguntar!

12 comentários:

  1. Ótimo, muito bom livro e muito bom o texto. Apesar de não considerar a visão do gene egoísta determinista. Tal abordagem de Dawkins é apenas, ao bom observador e estudioso, um dos diversos pontos de sustentação da TSE.

    Outro ponto interessante é o tiro na nuca da proposição do mero acaso no processo evolutivo tão criticado por aqueles que se opõem a TSE.

    Abraços guapos!

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  2. Muito bom!
    Consigo alinhar isso conforme o que foi proposto por Darwin. Pode-se alterar o mecanismo de herança ou a unidade que transmite informação, mas a boa e velha sobrevivência diferencial entre variantes persiste!

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  3. Excelente texto!
    Um adendo positivo (ao meu ver) para os adoradores das teorias evolutivas, especificamente num assunto -de tal forma- polêmico, mas não menos intrigante.

    "...Que?! Herança de caracteres adquiridos?! Lamarckismo?!"

    Confesso que fiquei surpreso, porem não menos ansioso pela próxima parte.

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  4. Muito bom. Acredito que todos estão ansiosos pra segunda parte.
    Vou querer o livrinho da Eva emprestado!
    xD

    Abraços.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Muito bom, Brackinho.

    A meu ver, a Jablonka mostra uma ampliação no "nicho" que a mutação e a seleção natural atuam. No entanto, não parece que a mutação e a seleção tiveram mudanças conceituais, apenas se tornaram mais "generalistas" em suas atuações. Desculpem a analogia com conceitos da Ecologia, mas até que eu gostei.

    Na verdade, a mutação e a seleção ocorrem de outras maneiras além das que conhecíamos. Ou seja, parece que são mais poderosas ainda! Por isso não me parece que as novas descobertas abalam o conceito tradicional da Evolução, até porque não constitui uma teoria alternativa pra explicar a Evolução.

    É obvio que são descobertas fantásticas, porque falam de situações que nem imaginávamos; porém, o tutano desse mecanismo, ou o cerne do processo evolutivo, continua o mesmo: variação, preservação das variações vantajosas e uma conseqüente alteração na composição das espécies ao longo da história.

    É isso, abraços!

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  7. Pois é Claudinho...
    Depende do conceito de mutação que é usado. Se tu usares aquele conceito de que mutação é uma mudança aleatória no código genético, aí sim, essa definição deve sofrer alterações.
    Não que essas descobertas abalem o conceito tradicional de evolução, mas sim algumas linhagens do pensamento evolutivo, como a TSE. Até porque (particularmente talvez) não considero que exista mais de uma teoria da evolução, e sim divergências de como ela funciona.
    Por isso a idéia continua a mesma, mudanças sendo selecionadas, só que agora está parecendo que essas mudanças podem não ser tão aleatórias assim.
    E sobre o Dawkins, se ele não é um determinista, não sei mais quem poderia ser...
    Abraços

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  8. Excelente texto, parabéns. A percepção cada vez maior de que as mutações não poderiam ser tão aleatórias quanto se pensava, ao meu ver, pode mudar radicalmente determinados conceitos ultrapassados e explicar finalmente a teoria da evolução de Darwin sem ter que considerar novamente o "deus das lacunas". Acredito mesmo que a grande maioria das mutações sejam orientadas ou induzidas pelo meio e que Lamack estava tão certo quanto Darwin - um complementa o outro.

    Abraços.

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  9. Não conhecia o Blog dos colegas ainda... Ótimo texto e muito boa as considerações céticas sobre o tema!

    Às vezes pela própria linguagem utilizadas por divulgadores da evolução (como próprio dawkins), parece que as inferências sao totalmente deterministas, centrada apenas no gene, sem considerar todas relações que moldam os "produtos finais". Entretanto, acho que há um bom concílio entre esse determinismo e todo o resto por "baixo dos panos", visto que apenas estamos começando o entendimento dessas complexas relações.

    A epigenética certamente tem muito a nos dizer; viva a falta de dogmas na biologia (ao menos na maior parte dos biólogos) que nos permite quebrar paradigmas!!

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  10. Olá coleguinas! É a primeira vez que acesso o blog, e gostei muito do texto. Brack, achei muito boas as tuas considerações. Eu já tinha visto algumas coisas sobre o que escreveste, mas ainda não li esse livro.
    Também acho que essas idéias revolucionam as mais antigas, mas ainda não acho que elas resolvam todas as "lacuna". Acho que incluindo esses novos conhecimentos no entendimento de mutação e evolução, abre-se um leque de novos questionamentos a serem pensados. Contudo vou aguardar os próximos textos para ver se muitas perguntas já não serão respondidas.Hehe...Bjs a todos. (obs: Darwin não refutou as idéias de Lamarck, mas às "aprimorou", e se não fossem os conhecimentos (adquiridos) de Lamarck provavelmente Darwin não teria chegado às conclusões que chegou).

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  11. Darwin dizia que deveriam haver vários mecanismos para a evolução ocorrer... e pensar que ele pensava nisso mas talvez nunca tenha sonhado com isso é muito maluco.

    Mas minha pergunta é... se essas mutações são "induzidas" elas necessitam de um mecanismo de "ativação" ou um processo que "crie" essa indução através das gerações... meu ponto é... (e eu não li o livro)... não existiriam genes que evoluindo por preceitos neodarwinstas (i.e. aleatórios) fossem responsáveis pela manutenção destes processos mutagênicos dirigidos?

    Acho que aquela frase... a vida encontra um meio é a que melhor define a evolução... só acho que podemos reconhecer o que é mais difundido pq aparentemente vemos o que ancestralmente vem dando mais certo (mut. aleatórias) mas novos mecanismos dirigidos devem ter surgidos diversas vezes e estes ao que parece não devem ser tão raros assim...

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