sexta-feira, 2 de abril de 2010

A cultura nativista e suas relações com a terra e a natureza local

“Pampa - matambre esverdeado
Dos costilhares do prata
Que se agranda e se dilata
De horizontes estaqueados
Couro recém pelechado
Que tem pátria nas raízes
Aos teus bárbaros matizes
Os tauras e campeadores
Misturaram sangue às cores
Prá desenhar três países...” Payador, Pampa e Guitarra - de Jayme Caetano Braun

Bueno, xirus e chinocas de toda clina, resolvi preparar um mate e me aprochegar pra uma tertúlia. Vim tratar de questões a respeito da cultura dos pampas e sua ligação com a terra e a paisagem natural.

Vou tirar as alpargatas pra sentir melhor esse chão, abrir um botão da minha bombacha pra liberar o bucho; só não vou tirar o chapéu porque não sou muito de convenção (a não ser aquelas úteis pra se prosseguir num raciocínio). Agora sim, che, vamo pôr os olhos no horizonte.


Uma tentativa de definição do nativismo gaúcho é a seguinte:

O nativismo é um movimento cultural cuja união está na identificação pessoal e na semelhança de produção artística de seus membros. Os guerreiros desta tribo são os admiradores da música nativa, da poesia gaúcha e da pajada rio-grandense. Seguem seus ídolos, mas não lhes dão exclusividade. Aplaudem e consomem o produto cultural dos que mais se identificam. Cantam as belezas de sua querência, envergam indumentária típica e demonstram amor pela sua terra. (Adaptado de Jornal do Nativismo)

Mas nosso nativismo não pode abranger apenas o Rio Grande do Sul. Essa mesma cultura nativa ultrapassa fronteiras; une três pátrias, três bandeiras num mesmo fogo de chão! Mas como pode um movimento cultural, do qual faz parte o Rio Grande do Sul (estado brasileiro), ter mais força na Argentina e no Uruguai do que no resto do Brasil? A resposta é simples, esse movimento está embasado na arte, mais especificamente numa arte da natureza, que expressa as belezas da região, como os rios, a flora, a fauna e os costumes. Assim, essa arte da natureza não respeita limites nacionais, seu principal determinante é o ambiente. Oigalê arte xucra!

As fronteiras que delimitam países são usadas para fins políticos e administrativos. Não vemos, de fato, nenhuma linha que separe um lado do outro. Há, inclusive, próximo ao limite dos países, uma mescla de hábitos, de vestimentas e até de idiomas. Ou seja, essas fronteiras existem apenas para fins operacionais. As verdadeiras pátrias, na verdade, são os Biomas! E, como sabemos, uma boa porção do Rio Grande do Sul (aproximadamente 63%), praticamente todo o Uruguai e uma parte da Argentina são compostos pelo mesmo Bioma: o Bioma Pampa. A representação dessa união das nações num só nativismo está em várias músicas gaúchas, como em Rio de Três pátrias, de Amauri Castro e Jorge Guedes:
“...lá prás bandas do Uruguai (os cidadãos)
são potros formando juncos porque são do mesmo campo,
são tentos da mesma lonca, raios da mesma cambota,
cordas da mesma viola, acordes do mesmo canto.
Enquanto proseam homens três sotaques diferentes,
no mesmo fogo de chão, chimarreando mate quente....”

Ou como Orelhano, de Mário Eleú Silva e freqüentemente interpretada por Dante Ramón Ledesma:

“Orelhano, de marca e sinal
Fulano de tal, de charlas campeiras
Mesclando fronteiras, retratas na estampa
Rigores do pampa e serenas maneiras
Orelhano, brasileiro, argentino
Castelhano, campesino, gaúcho de nascimento
São tranças de um mesmo tento, sustentando um ideal
Sem sentir a marca quente, nem o peso do buçal...”

Há outro lado fascinante nesse nativismo que é sua forte relação com a natureza local. Aqui o habitual, o comum não perde a importância, pelo contrário, é enfatizado, é o centro de toda essa arte. Quantas músicas não falam do rio Uruguai, da Tarrã, do ratão-do-banhado, do tatu, da corticeira? Isso contribui bastante para se criar relações culturais da região com sua paisagem, fauna e flora nativas.

Ou como diz uma frase louca de bagual: “Pra cantar o mundo canta primeiro a tua aldeia”. Assim, a sociedade se sente parte da natureza e se integra a ela, ficando possivelmente mais participativa e crítica em relação a questões ambientais. Tais como a construção de uma barragem ou a possível extinção de uma espécie.

Mas não vamo ter medo de entrar nas questões sociais, questões essas causadas por um sistema de visão fechada e reducionista e, além disso, extremamente inconseqüente.

A profunda alteração na paisagem natural dos campos, devido a um modelo de desenvolvimento imediatista e cego para as possíveis conseqüências, visando o lucro acima de qualquer impacto ambiental ou social, voltada para a produção em larga escala de apenas uma espécie (normalmente exótica e/ou transgênica) tem diversas conseqüências extremamente danosas e muitas delas irreversíveis. Pra doer no lombo do índio véio, uma monocultura por si só é prejudicial ao ambiente, mas, além disso, ela vem associada a latifúndios, o que impossibilita o pequeno agricultor de competir no mercado. Ou seja, uma monocultura tem dois lados, infelizmente dois lados ruins: altera de maneira drástica o ambiente e contribui para a exclusão social. O impacto social é mostrado nessa música de Cenaír Maicá e Jayme Caetano Braun – Da Terra Nasceram Gritos:

“Mataram meus infinitos
e me expulsaram dos campos;
Da terra nasceram gritos,
Dos gritos brotaram cantos!...

...Entretanto - bem ou mal,
Não me emociono,
Com os que combatem
As verdades do meu canto;
Sem ter direito de comer nem o que planto,
Só não entendo é tanta terra
E pouco dono!

Mas mesmo assim,
Tenho pra dar um outro tanto,
Se precisarem do meu sangue
Noutra guerra;
Mesmo sem terra,
Hei de voltar grito de terra,
Pelo ‘milagre’
Das espigas do meu canto!!!”


E em Mágoas de Posteiro, também do Jayme e do Cenair:

“...Campo lavrado no lugar que era o potreiro
Campo lavrado no pelado do rodeio
E o braço erguido no pedaço de um esteio
Adeus pra sempre do meu rancho de posteiro...

...O ronco estranho do trator substituindo
A voz dos pastos, da ternura e da inocência
Monocultura, tenazmente destruindo
Memória e campo que roubaram da consciência

Eu tenho ganas que este maula sem respeito
Que fez lavoura da invernada onde eu vivia
Tente arrancar a grama verde de poesia
Deste Rio Grande que carrego no meu peito.”

A conservação de espécies, ecossistemas ou biomas não dependem apenas de pesquisadores trabalhando nessa área, mas também e, principalmente, de alterações nas leis ambientais ou o cumprimento adequado delas. Porém, para que isso aconteça, é necessário que a sociedade esteja participando ativamente desse processo. E ela só participará se conhecer o que se está debatendo. Isso se desenvolve com um pensamento sistêmico, por exemplo, de que resultamos de processos naturais assim como um rio ou outras espécies e, portanto, fazemos parte desse sistema.

As relações culturais de várias regiões com suas floras e faunas nativas são essenciais para evitar a descaracterização da paisagem natural e a constante tentativa de homogeneização dos ambientes. Portanto, as culturas nativistas relacionadas às espécies nativas (ou ao Bioma do qual fazem parte) são mantenedoras da diversidade, tanto cultural como biológica.

É isso gauchada, não vou me estender mais, meu mate já ta lavado. Só vou deixar uma frase do gaudério Mano Lima, “Pois olha, eu acho que a terra é tão importante que todo homem que se preza devia levar um punhado dela no bolso da bombacha.” Até a próxima payada, um quebra costela do tamanho do Pampa.


Claudio Reis

3 comentários:

  1. Che loco, que coisa bem linda.

    Do Rodrigo Cambará ouvi, através da boca de vocês, que a verdadeira pátria é o bioma.
    Somos todos meio bugres, meio uruguayos(o Brack mais), um pouco cavalo e muito pampa. Já não se sustentam, por exemplo, rixas absurdas com argentinos(que muitos já me disseram ser extremamente cordatos, na grande maioria).

    Grande abraço

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  2. Um dos mais baguais peleadores resolver finalmente passar a chaira na Adaga. E o assunto é de chorar de tão bonito: a paisagem como modelador da cultura; a geografia física como determinante da humana! E daí decorre um dos pontos-chave da ideologia conservacionista!

    Abraço!

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  3. Louco de bueno!

    Muito bem frisada a importância das populações locais nas relações com a fauna e flora locais e a descaracterização do pampa que está sendo transformado numa imensa "floresta" (deserto verde) de eucaliptos.

    pra ilustrar coloco um o vínculo da charge do Santiago:
    http://centrodeestudosambientais.files.wordpress.com/2009/02/santiago_pampa33.jpg

    Abraço

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