sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

A insuficiência da análise lógica e a relação estreita entre juízos descritivos e juízos de valor


O pequeno texto abaixo envolve algumas inquietações que venho tendo já há alguns anos. Ao fim, envolve uma tentativa de resposta. Mas a maior parte é constituída por questionamentos. O gatilho para a escrita deste texto foi a releitura de algumas páginas de um livro de cunho político, embora meu interesse aqui seja exclusivamente epistemológico. Esse “gatilho” me ocorreu quando me dei conta de que o autor do livro comete uma falácia lógica ao interpretar um trecho que citou [1]. A frase (pertencente àquele trecho) que me interessa discutir é a seguinte:

É preciso explicar ao povo a impossibilidade da realização da liberdade política pela via parlamentar, enquanto o poder permanecer nas mãos do governo czarista.

A tese (que seria preciso explicar ao povo, segundo o trecho) contida nessa frase pode ser reformulada da seguinte maneira:

T: Se o poder permanecer nas mãos do governo czarista, então será impossível a realização da liberdade política pela via parlamentar.

[Apesar de essa tese conter o operador modal “possível”, não discutirei nada a respeito de lógica modal. Apenas destacarei alguns conceitos e relações básicos da lógica clássica.]

A permanência do poder nas mãos do governo czarista, portanto, é condição suficiente para impossibilitar a realização da liberdade política pela via parlamentar.

É condição suficiente, mas não necessária. Mesmo que o poder não esteja mais nas mãos do governo czarista, ainda assim pode ser impossível a realização da liberdade política pela via parlamentar.

Isso significa que a tese acima, em termos puramente lógicos, não se compromete com a possibilidade da realização da liberdade política pela via parlamentar. Ela é compatível com a tese segundo a qual é impossível a realização da liberdade política pela via parlamentar, independente do tipo de governo (czarista ou não).

No entanto, o trecho menciona que essa liberdade é impossível “enquanto o poder permanecer nas mãos do governo czarista”. O trecho não diz simplesmente que “é impossível a realização da liberdade política pela via parlamentar”, mas afirma que esse é o caso “enquanto o poder permanecer nas mãos do governo czarista”. Essa última proposição parece cumprir um papel para além de uma condição suficiente. Parece que, para ser bem interpretada, exige mais do que uma análise puramente lógica/formal é capaz de oferecer.

Mas como, então, poderíamos interpretar tal proposição de forma a iluminar o trecho acima?

Mesmo que nosso interesse seja exclusivo naquele trecho, seria necessário levarmos em conta o texto como um todo? Ou, de modo ainda mais exigente, seria necessário levarmos em conta outros textos relacionados? Ou, ainda, o contexto no qual foi escrito? Mas como delimitar tal contexto ou, de modo mais geral, como delimitar o que precisamos levar em conta?

Tenho razões que me tornam cético sobre a possibilidade de tal delimitação em termos de condições necessárias e suficientes. Porém, não pretendo me comprometer com o ceticismo. Se não por meio de condições necessárias e suficientes, como delimitar o que precisamos levar em conta para realizar uma boa interpretação? Essa é uma pergunta de segunda ordem. Respondê-la pode iluminar nossa questão anterior, de primeira ordem, sobre como devemos interpretar a tese T. No entanto, há pelo menos duas relações possíveis entre a questão de primeira ordem (como devemos interpretar a tese T?) e a de segunda ordem (como devemos interpretar teses semelhantes à tese T?):

1. Responder à nossa questão de segunda ordem é condição necessária para uma boa interpretação da tese T.

2. Responder à nossa questão de segunda ordem pode contribuir, embora não seja necessário, para uma boa interpretação da tese T.

Como poderíamos afirmar que certa interpretação da tese T é boa sem uma resposta, mesmo que parcial, à questão sobre como devemos interpretar teses semelhantes à tese T? Para interpretar a tese T, parece que precisamos pressupor uma resposta à questão de segunda ordem, mesmo que não seja uma resposta explícita e consciente. Precisamos de critérios que tornem certa interpretação da tese T uma boa interpretação. Mas, na medida em que os critérios não são fixos, porque não se trata da especificação de condições necessárias e suficientes, eles não atuam como uma regra ou um algoritmo que determina a interpretação, mas como valores que a guiam.

Para avançarmos um pouco e buscarmos maior esclarecimento, podemos incluir uma questão de terceira ordem: como interpretar as interpretações frequentemente realizadas sobre teses semelhantes à tese T?

Enquanto as questões de primeira e de segunda ordem que abordamos possuem pretensão normativa, essa questão mais geral parece propor-se exclusivamente a descrever o processo. Sua relação com as outras questões pode ser formulada do seguinte modo:

3. Responder à nossa questão de terceira ordem pode contribuir para iluminar os processos que agem nos níveis de primeira e de segunda ordem, mas não possui quaisquer consequências nem sobre como devemos interpretar a tese T nem sobre como devemos interpretar teses semelhantes à tese T. Responder à questão de terceira ordem “apenas” nos faz entender sobre como essas interpretações são feitas. Trata-se de uma abordagem mais distanciada, que busca apenas descrever o processo sem pretensões de incidir sobre ele, de legislá-lo, revisá-lo ou criticá-lo.

Mas será mesmo assim? Pode ela ser puramente descritiva? Ao descrever o processo por meio de determinada abordagem não estamos pressupondo que essa é uma boa abordagem e uma boa descrição? E para considerarmo-las uma boa abordagem e uma boa descrição não precisamos emitir juízos normativos? Se esse é o caso, os âmbitos descritivo e normativo podem ser completamente descolados? Se ao descrever/interpretar pressupomos critérios que atuam como valores, os quais nos permitem certas descrições/interpretações em detrimento de outras e que podem ser vistas não apenas como diferentes mas como superiores (com base nesses critérios), o descritivo e o normativo não estão fortemente entrelaçados?

Comecei esse texto com uma breve análise lógica para, em seguida, colocar minhas inquietações. Trata-se de dúvidas genuínas que, a meu ver, merecem ser colocadas. Certamente, não consegui expressá-las com a clareza que eu gostaria. Mas penso que o simples fato de colocá-las no papel poderá me ajudar futuramente. Ainda assim, para ir além das dúvidas e fazer a defesa de uma tese, argumento abaixo em favor de uma posição acerca da relação entre o descritivo e o normativo. Minha tese é de que o descritivo pressupõe o normativo; dito de outra forma, que ao descrever pressupomos juízos de valor. Apesar de eu não estar sozinho nessa (e estar em boa companhia, tais como Charles Peirce, William James, John Dewey e Hilary Putnam), essa tese não é amplamente difundida. Uma possível explicação para o receio com essa tese é a suposição comum e falsa de que ela implica relativismo. Mas essa implicação só é válida se adicionarmos a premissa de que juízos de valor são completamente subjetivos (não cognitivos), não podendo passar pelo escrutínio de uma discussão racional. Dada a promiscuidade dos juízos de valor, são aqueles que defendem tal premissa que estão sujeitos a cair mais facilmente em teses relativistas.

Atualmente, eu tendo a conceber a relação entre fatos e valores, ou melhor, entre juízos descritivos e juízos normativos, de maneira similar à relação entre fatos (particulares) e teorias (gerais). Assim como é difícil conceber que alguém saiba um fato particular sem pressupor o conhecimento de alguma generalização (teoria), parece-me difícil conceber que alguém saiba um fato particular sem pressupor algum juízo de valor. Embora essa relação estreita entre fato e teoria seja hoje amplamente aceita entre os filósofos que se dedicam a tal questão, é muito menos aceita essa relação também estreita entre fato e valor.

No entanto, é possível defender que o conhecimento de fatos pressupõe o conhecimento de teorias e que, ao mesmo tempo, o conhecimento de fatos não pressupõe juízos de valor? Teorias manifestam graus de simplicidade, razoabilidade, coerência, poder explicativo, entre outros valores. Ao aceitarmos uma teoria, pressupomos que ela manifesta certos valores e que os manifesta em grau suficientemente elevado. Portanto, mesmo que tacitamente, realizamos juízos de valor. Meu argumento é simples:

(1) O conhecimento de fatos depende do conhecimento de teorias;
(2) O conhecimento de teorias depende de juízos de valor; logo,
(3) O conhecimento de fatos depende de juízos de valor.

Dessa forma, descrição e avaliação fazem parte de um mesmo processo. Os âmbitos descritivo e normativo não operam sem conexão. Há um forte entrelaçamento entre juízos descritivos e juízos de valores. O ponto crucial, que se liga ao restante do texto, é o seguinte: mesmo que tenhamos pretensões puramente descritivas, descrever pressupõe juízos de valor.


[1]. O livro a que me referi como gatilho para esse texto se chama A ideia dos sovietes, de Pano Vassilev. A frase que citei e analisei é de uma resolução sobre a questão dos sovietes proposta e aplicada pelo bolcheviques (naquele momento apenas uma facção) no congresso do Partido do Trabalho Social-Democrata Russo, ocorrido em Londres em 1907. Essa frase está no meio de um trecho da resolução, que é citada por Vassilev.

Vassilev comete uma falácia lógica ao interpretar o que chamei de tese T a partir de sua inversa, tomando-a como logicamente equivalente à tese T. A frase, que reformulei como tese T, é a seguinte: “É preciso explicar ao povo a impossibilidade da realização da liberdade política pela via parlamentar, enquanto o poder permanecer nas mãos do governo czarista”. A falácia cometida por Vassilev é esta: “Segue-se logicamente que se o ‘poder real’ escapa ao governo czarista, a ‘liberdade política’ é aplicável pela via parlamentar”. Porém, apesar de sua interpretação parecer, a primeira vista, uma contrapositiva (que tem a propriedade de preservar a verdade), trata-se de uma inversa. O que Vassilev afirma que “segue-se logicamente” é falso. No entanto, numa abordagem pragmática e sensível ao contexto, sua interpretação não parece inadequada. Mesmo que em termos lógicos seja falsa, ela possui fecundidade em captar o discurso e os objetivos do trecho. Se em vez de afirmar que segue-se logicamente [...]” Vassilev houvesse afirmado que “considerando o contexto da resolução e a perspectiva bolchevique, o objetivo do trecho era afirmar que [...]” sua interpretação poderia ser considerada mais fecunda que uma interpretação puramente lógica. Como discuti acima, a lógica clássica parece não dar conta de uma boa interpretação desse trecho.

Em todo caso, seria ingenuidade pensar que a lógica pudesse dar conta da interpretação. Apesar de sua importância, a lógica não é todo-poderosa. É de se esperar que a sensibilidade ao contexto e a ambiguidade de nossa linguagem natural não possa ser captada pela linguagem lógica, na medida em que os objetivos desta envolvem descontextualização e máxima precisão. Isso significa que não há um encaixe perfeito entre linguagem natural e linguagem lógica. Se houvesse, não seria preciso criar uma linguagem própria para a lógica. (É como aquele poema de Borges sobre a utilidade de um mapa. Se construímos um mapa com as mesmas dimensões daquilo que desejamos representar, o mapa perde sua função. Do mesmo modo, se nosso objetivo fosse construir uma lógica que se encaixasse perfeitamente à linguagem natural, então a lógica perderia sua principal função.)

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