sexta-feira, 20 de março de 2015

Vermes, Fezes e Tubarões de Água-Doce: Uma história de 270 milhões de anos

Onde hoje se situa o município de São Gabriel, há aproximadamente 270 milhões de anos atrás, existiam ecossistemas completamente diferentes dos atuais. Nenhum mamífero, nenhum lagarto ou serpente caçavam nestas matas, nenhuma flor desabrochava nos pampas e o canto dos pássaros inexistia. Se observássemos a região iríamos indagar se não estaríamos em um filme de ficção científica em um ambiente árido quase que extra-terrestre. Em um destes oásis, em uma época de estiagem, um braço d’água ficou isolado, os peixes amarronzados e brilhantes acabaram presos em seu próprio ambiente. Foi o suficiente para que parte desse ecossistema acabasse perpetuado em camadas de rocha sedimentar. "Congelados" pelo tempo profundo, retornaram a superfícies vestígios de uma época em que tubarões nadavam em rios e os "anfíbios" poderiam facilmente ser confundidos com grandes crocodilos.

 Figura 01 – Afloramento onde foram encontrados coprólitos (fezes fossilizadas). Em detalhe a grande descoberta: um coprólito de tubarão!
Foto:  Voltaire Paes Neto. Foto do Detalhe:  modificado de Dentzien-Dias et al 2012.

A ictiofauna de água doce do final do Permiano era bem diferente da atual. Enquanto que hoje dominam os peixes de nadadeira raiadas (actinopterígios), naquela época tubarões, celacantídeos e dipnoicos eram bastante diversos nestes ambientes. Os tetrápodes aquáticos como “anfíbios” e pararépteis também são esperados mas seus fósseis são mais raros. O isolamento do braço de rio que aprisionou diversos destes peixes possivelmente foi promovido por uma severa estação seca. Nesta “poça” além dos peixes, suas fezes acabaram por se acumular, e o ambiente anóxico promovido pela maior estabilidade da coluna d'água facilitou com que fossem melhor preservados. Após esta seca intensa provavelmente uma enchente reconectou o braço isolado permitindo a saída de muitos destes peixes, porém as fezes continuaram lá. Soterradas após milhões de anos de evolução sedimentar, reviravoltas na crosta terrestre em locais muito distantes, fizeram com que, por um acaso, os sedimentos que resguardavam o que restou desta poça, fossem expostos e erodidos. Foi assim que uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Sul encontrou uma coxilha uma infinidade de coprólitos (fezes fósseis. Sim, fezes podem tornar-se fósseis em determinados locais, e o número de coprólitos nesta localidade é gigantesco (coletados são mais de 500) e são muito variados, sendo enquadrados em 4 padrões distintos e outros ainda não determinados. Isto implica que várias espécies estavam presentes e concentradas naquela poça. O afloramento foi chamado de “Coprolândia” e se tornou um marco neste tipo de estudo, pois se trata de uma área de menos de 80 m² contendo essa rica diversidade de fezes.
Figura 02 – Os padrões encontrados na “Coprolândia”: 
A. Espiralado na borda (Heteropolar na borda), B. Espiralado (Heteropolar), C. Em Nó. D. Helicoidal (Anfipolar).
Retirado de Dentzien-Dias et al 2012.

 Coprólitos podem revelar informações valiosas sobre paleoecologia, não só sobre o indivíduo produtor, mas sobre o ambiente em si. O formato é muito importante, pois (como boa parte dos vestígios fósseis) eles são bastante conservativos ao longo do tempo. O formato espiralado (heteropolar), bastante comum na “Coprolândia”, é diagnosticado como tendo sido produzido por fezes de tubarões, visto que os tubarões atuais possuem intestinos que moldam suas fezes neste formato. O conteúdo é outra ferramenta de análise, já que pequenas estruturas restantes podem identificar a dieta do animal. Conchas, escamas, ossos entre outros elementos animais foram encontrados em muitos dos espécimes analisados.

Figura 03 – Coprólito que tem em seu conteúdo escamas de peixes.
Retirado de Dentzien-Dias et al 2012.

Mas para analisar o conteúdo os pesquisadores devem "destruir" parte da amostra, assim os autores escolheram da amostra de 500 exemplares apenas 14 para serem submetidos a esta análise. Ela consiste em cortar o coprólito em uma fina camada para que ela possa ser estudada na lupa (método empregado em análises de rochas). Eis que analisando um destes coprólitos os pesquisadores tiveram uma imensa surpresa: não haviam somente pequenos pedaços de ossos, mas também, pequenas fileiras de ovos!

 
Figura 04A. Vista em corte da estrutura espiral do coprólito, contendo ovos. B. Detalhe dos ovos, destacando os opérculos e o padrão cilíndrico.
Retirado de Dentzien-Dias et al 2013.

Atônitos, buscaram diferenciar estas estruturas de qualquer artefato mineral, mas acabaram descobrindo que estas estruturas eram na realidade a mais antiga evidência de um grupo particular de parasitas de vertebrados no registro fóssil. Ovos de parasitas (em coprólitos) quase exclusivamente se preservam no registro fóssil desta forma e a dificuldade do método só agrava a situação. Mas a grande ironia é que dentre todos os 500 espécimes apenas 14 foram aleatoriamente seccionados e um deles possuía os tais ovos. 


 Figura 05 – Microscopia óptica de Acanthobothrium zimmeri, um cestoda parasita de elasmobrânquios atuais, no Mar Arafura, Norte da Austrália. Nomeado em homenagem a Carl Zimmer.
Retirado de: Blog de Carl Zimmer da Revista Discover.

Estes ovos são relacionados aos ovos de platelmintos, do grupo dos Cestoda, possivelmente aparentados a ordem Tetraphyllidea (pelas características partilhadas), que atualmente é uma das 4 ordens que parasitam os elasmobrânquios. Os autores apontam que o conhecimento acerca dos ovos de parasitas é ainda extremamente escasso, mas sabem que estes são relativamente maiores que os conhecidos atualmente. Aparentemente poucos “embriões” são observáveis o que leva a crer um desenvolvimento externo ao hospedeiro. Estas características podem trazer informações interessantes sobre a biologia do próprio verme, já que normalmente eles infectam diversos hospedeiros até chegar a seu destino final (neste caso um tubarão de água doce).                                                                                                                             
Não só isso, o período Permiano foi um dos mais marcantes na história da vida na Terra, as relações entre estes organismos é um dos poucos registros de uma parasitose em vertebrados no fim da Era Paleozóica. Isso é importante já que o grupo dos tetrafilídeos é um dos mais bem sucedidos na "arte" de parasitar elasmobrânquios, que são hoje basicamente marinhos. Os autores apontam que, se estes vermes encontravam-se nos intestinos de tubarões de água doce nesta época, talvez seja nesse tipo de ambiente que os cestodas primitivos começaram sua jornada evolutiva para o interior de diversos outros indivíduos, passando por incontáveis gerações de hospedeiros até os dias de hoje.

 
Figura 06 – Ciclo hipotético do cestoda parasita de tubarões de água doce do Permiano de São Gabriel.
A. invertebrados dulcícolas (?), B. peixes (?), C. tubarões de água doce e D. coprólito.

Referências e Leitura Complementar:

Blog de Carl Zimmer da Revista Discover: http://blogs.discovermagazine.com/loom/2009/07/08/a-tapeworm-to-call-my-own/#.URLywB00U6Y


Dentzien-Dias et al 2012 – Paleobiology of a unique vertebrate coprolites concentration from Rio do Rasto Formation (Middle/Upper Permian), Paraná Basin, BrazilJournal of South American Earth Sciences. 40 (2012) 53 - 62.


Dentzien-Dias et al 2013 – Tapeworm eggs in 270 million-year-old shark coprolite. PlosOne. Volume 8. Issue 1.  e55007


Evolutionary and Ecological Parasitology Research Group – Universidade de Otago. Nova Zelândia: http://www.otago.ac.nz/parasitegroup/projects.html

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