quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Passagens e Comentários sobre A Origem - Parte I

"Me transformei num tipo de máquina de observar fatos e formular conclusões." Charles Darwin

Bueno, xiruzeada, pretendo desta vez mostrar alguns trechos de A Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural, de Charles Darwin - um dos mais importantes livros da História da Ciência – e dedilhar alguns comentários sobre as passagens que escolhi. Pra milonga não ficar muito comprida eu vou postar mais de uma vez sobre esse assunto.


A 1ª edição do livro foi publicada em 1859, mas vou me basear na última (6ª edição), que é de 1872. É uma versão dividida em três tomos pela Editora Escala e com tradução de André Campos Mesquita. Lá vai!


“Se a seleção consistisse simplesmente em separar alguma variedade muito diferente e obter filhotes dela, o princípio estaria tão claro que raramente seria digno de menção; mas sua importância consiste no grande efeito produzido pela acumulação, numa direção, durante gerações sucessivas, de diferenças absolutamente inapreciáveis para uma vista não educada, diferenças que eu, por exemplo, tentei inutilmente avaliar.” (Capítulo 1 – Variação em Estado Doméstico; página 47)


Esse trecho é interessante por mostrar que, por mais simples que seja o princípio da seleção, ele normalmente inicia com diferenças individuais minúsculas, o que dificultaria (pelo menos naquela época) a observação do processo de seleção natural, ou seja, vê-lo de fato ocorrendo. Porém, a partir de alguns fatos – como singularidade do indivíduo e herdabilidade de grande parte da variação individual – a seleção é postulada. E o interessante é que, por existirem estes fatos, a seleção se torna um processo inevitável.

Hoje, a seleção deixou de ser uma inferência para ser um fato também, porque já se observou, e se observa, o processo de seleção acontecendo. Por exemplo, quando vemos mudanças na resistência de algumas variedades de plantas a determinados agrotóxicos ou quando vemos certos patógenos adquirirem resistência a antibióticos ou até mesmo quando os Grants analisaram e perceberam a mudança, em uma determinada direção, na morfologia do bico de um dos tentilhões-de-Darwin ao longo do tempo... Podemos ver de fato a seleção ocorrer! Outra questão importante com relação à seleção natural, e que foi dito nesse trecho, é que ela é cumulativa, ou seja, vai acumulando alterações benéficas em uma população diferenciando-a cada vez mais da população original.

“As muitas diferenças pequenas que surgem na descendência dos mesmos pais, ou que se pode presumir que surgiram assim por ter-se observado em indivíduos de uma mesma espécie que habitam uma mesma localidade confinada, podem chamar-se diferenças individuais. Ninguém supõe que todos os indivíduos da mesma espécie estejam fundidos absolutamente no mesmo molde.” (Capítulo 2 – Variação na Natureza pág. 61)

“Por estas observações se verá que considero a palavra espécie como dada arbitrariamente, por razão de conveniência, a um grupo de indivíduos muito semelhantes e que não difere essencialmente da palavra variedade, que se dá a formas menos precisas e mais flutuantes. Por sua vez, a palavra variedade, em comparação com meras diferenças individuais, aplica-se também arbitrariamente por razão de conveniência.” (Capítulo 2; página 71)

Darwin está deixando claro um pensamento – conhecido como pensamento populacional – que é fundamental para a biologia evolutiva e que, além disso, contrasta fortemente com o pensamento tipológico, mais tarde batizado de “essencialismo” pelo filósofo Karl Popper (pra mim, um dos filósofos da ciência mais baguais ao lado de Bertrand Russell). O pensamento tipológico consiste em classificar a variedade encontrada na natureza em tipos fixos (classes), invariáveis e claramente demarcados em relação a outros tipos. Com esse pensamento, seria impossível entender como a seleção funciona e, de modo geral, como ocorre a evolução. Isso porque a variação é a base para toda a mudança evolutiva.

“Por todos estes conceitos, as espécies dos gêneros grandes apresentam suma analogia com as variedades. E podemos compreender claramente estas analogias se as espécies existiram em outro tempo como variedades e destas se originaram; por outro lado, estas analogias são completamente inexplicáveis se as espécies são criações independentes.” (Capítulo 2; página 78)

O que Darwin está dizendo é que um gênero que inclui várias espécies não difere essencialmente de uma espécie que inclui muitas variedades, porque o processo que deu origem às variedades é o mesmo que deu origem às espécies. Isso tem relação com o trecho anterior, na medida em que uma espécie é vista como uma variedade mais bem caracterizada, e uma variedade como uma espécie incipiente. Com relação à teoria das criações independentes (teoria absolutamente não-científica), as variedades seriam coisas completamente diferentes das espécies e a analogia não seria válida.

“Este princípio, pelo qual toda ligeira variação, se é útil, conserva-se, denominei-o com a expressão seleção natural, a fim de observar sua relação com a faculdade de seleção do homem.” (Capítulo 3 – Luta pela Existência; página 80)

Pus esse trecho só para termos a definição de seleção natural nas palavras do próprio criador do conceito. Na verdade, ao longo de todo o livro Darwin fala da seleção natural – e dedicou um capítulo inteiro para explicá-la – porque é, sem dúvida, o conceito-cerne da teoria. Ele a explica e a define de várias maneiras; escolhi a definição mais suscinta.

“Vários autores entenderam mal ou contestaram a expressão seleção natural. Alguns até imaginaram que a seleção natural produz a variabilidade. Na verdade, envolve somente a conservação das variedades que aparecem e que são benéficas ao ser em suas condições de vida. Ninguém contesta os agricultores que falam dos poderosos efeitos da seleção do homem e, neste caso, as diferenças individuais dadas pela natureza, e que o que o homem escolhe com algum objetivo tem necessariamente que existir antes. Outros opuseram que o termo seleção implica a escolha consciente nos animais que se modificam, e até foi argüido que, como as plantas não têm vontade, a seleção natural não é aplicável a elas. No sentido literal da palavra, indubitavelmente, seleção natural é uma expressão falsa; mas quem nunca contestará os químicos que falam das afinidades eletivas dos diferentes elementos? E, no entanto, não se pode dizer rigorosamente que um ácido escolhe uma base com a qual se combina de preferência. Dizem que eu falo da seleção natural como de uma potência ativa ou divindade; mas quem contesta um autor que fala da atração da gravidade como se regulasse o movimento dos planetas? Todos sabemos o que se entende e o que implicam tais expressões metafóricas, que são necessárias para a brevidade. Do mesmo modo, além do mais, é difícil evitar personificar a palavra natureza; mas por natureza quero dizer só a ação e o resultado totais de muitas leis naturais, e por leis a sucessão de fatos, quando são conhecidos com segurança por nós. Familiarizando-se um pouco, estas objeções tão superficiais ficarão esquecidas.” (Capítulo 4 – Seleção Natural; páginas 98 e 99)

Essa questão da crítica às metáforas na ciência é algo que sempre está presente. É feita normalmente por pessoas despreparadas que não compreenderam o assunto ou por pessoas demasiado preparadas que a interpretaram equivocadamente. A questão aqui é saber que o termo é apenas uma metáfora e, portanto, é útil apenas num certo sentido. É essa a natureza das metáforas; elas são obrigatoriamente analogias limitadas, porque se não fossem, seriam a própria “coisa” e não metáforas.

Esse tipo de crítica foi feita também, é claro, à metáfora do gene egoísta. Mary Midgley, uma filósofa da moral, escreveu um artigo criticando o termo cunhado por Richard Dawkins. Em uma frase ela diz o seguinte: “Os genes não podem ser egoístas ou altruístas, do mesmo modo como os átomos não podem ser ciumentos, os elefantes abstratos ou os biscoitos teleológicos.” É óbvio que, estritamente falando, um gene não pode ser egoísta! Porque não existem motivações conscientes de um gene para sê-lo. A metáfora foi inventada pela analogia com o processo, ou o resultado do processo, e não pela motivação do gene. Da mesma maneira, o termo seleção natural não implica que um ser seleciona algo, porque é apenas uma metáfora.

É isso, gauderiada. Um aperto de mão e um quebra costela!

Um comentário:

  1. Muito boa a ideia de dar uma mastigadinha pra quem nunca fez a leitura... e olha que eu me incluo nesses! hehe

    Mas por pouco tempo!

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